Volume II – Arco 6
Capítulo 45: Jeito Errado Pt.1
Quando a dor de seu oponente se transformou em silêncio, Suzaki levou o corpo inconsciente de Ryo. Antes de seguir viagem, certificou-se de amarrar os contrabandistas que encontrava vivo nos troncos da estrada para impedir que fugissem ao acordarem.
Encontrando um cavalo restante, retornou às cavernas. A fumaça havia se dissipado parcialmente de Nokyokai, mas o que antes eram gritos e pedidos de ajuda, agora se transformaram em choros de luto e desespero na medida em que os Heishis recolhiam os corpos carbonizados das casas.
Se apresentando diante isso Heishis de volta as minas, ele jogou seu prisioneiro amarrado e amordaçado aos pés de Toshio, que perguntava:
— O que temos aqui?
— Ele é o responsável por tudo — disse Suzaki, descendo do cavalo — Enganou e roubou metade do minério extraído de Minoru, com os contrabandistas, usando o incêndio como distração para fazê-lo.
— Não esperava menos do Heishi Celestial — sorriu Toshio, batendo no ombro de Suzaki — Você nos poupou de uma longa investigação.
— Então já pode soltar Minoru e principalmente sua família. Eles não tem nada a ver com isso — respondeu tirando o braço do capitão.
— Isso eu não posso mais fazer. Transportamos ele e a família para a capital, onde serão julgados. Se serve de consolo, podemos levar Ryo para comprovar sua inocência.
— Quero Ryo partindo daqui ainda hoje. É uma ordem!
— Sim, Heishi Celestial — se curvou Toshio — Tem minha total obediência, assim que arrumarmos as coisas por aqui em algumas horas. Mais alguma coisa?
— Os contrabandistas que participaram de toda essa destruição estão amarrados na estrada para o leste. Para irmos à julgamento, precisamos levar todos.
— Como queira. Enviarei os homens para isso. Em algumas horas estaremos prontos — disse esboçando um sorriso.
O príncipe deixava os dois para montar em seu cavalo numa viagem para a estrada que descia levando aos Kuro. Em pouco tempo, ele chegava em outra caverna, dessa vez quieta abrigada por apenas uma pessoa.
— Suzaki? — ela corria até a entrada ajudando o garoto a manter-se de pé — O que aconteceu? Está sangrando.
— Eu falhei, Aiuchu — ele cambaleava, tirando sua jaqueta e a jogando no chão.
A garota deixava Suzaki deitar-se sobre os lençóis perto da fogueira tímida, enquanto ela reunia o que podia para tratar suas feridas.
— Como se feriu dessa vez?
— O acordo que consegui para a distribuição do minério foi sabotado — cerrou seus punhos — pessoas inocentes morreram por minha culpa. Eu devia ter previsto.
— Eu… sinto muito — fechava as ataduras, trêmula com seu queixo batendo — mas como?
— Um subordinado meu. Meu pai havia colocado ele sob minha supervisão assim que voltei para o império. Provavelmente já suspeitava dele e me encarregou de vigiá-lo.
— Por que confiou em alguém que seu pai disse para não confiar? Eu não entendo isso — respondeu Aiuchu.
— Ele não me disse exatamente — colocou a mão sob sua testa — Mas tudo se encaixa perfeitamente. Era tudo um teste e eu falhei.
— Então seu pai não te alertou do perigo?
— Ele não tinha como prever, já disse! — se levantou para buscar a jaqueta que deixou para trás — Meu pai provavelmente sabia de algumas coisas, mas não da profundidade do problema. Ele me deu as peças, e eu entendi o jogo errado, como sempre.
— Então o imperador tratou a vida desses inocentes como um jogo? Um teste para você? — se aproximou do príncipe.
— Não é como se meu pai estivesse aqui no norte para fazer alguma coisa.
— Mas — pegou no pulso do garoto — ele ainda é o imperador — se encararam por alguns segundos — Se ele tivesse avisado que suspeitava de Ryo, você tomaria mais cuidado, e todas essas vidas não seriam…
— Chega! — respondeu em voz alta.
O ultimato de Suzaki ecoou sob as paredes rochosas, restando a Aiuchu se recolher abraçando a si mesma sentando próximo a fogueira novamente.
— Me desculpa — disse Suzaki, sentando próximo dela.
Com a jaqueta nas mãos, ele a cobriu com a roupa, fazendo-a agarrar-se nela até parar de tremer.
— A temporada das tempestades começou — explicou o príncipe, ficando de pé — se cubra com isso para não passar frio. Cuide-se, até eu voltar — andou em direção a saída.
— Ou você pode ficar e descansar mais um pouco — sugeriu.
— Sou o único que pode tornar isso tudo menos pior, testemunhando a favor de Minoru. Não posso mais confiar em ninguém para isso.
— Até mais — disse a garota de cabelos vermelhos se encolhendo ao máximo.
A chuva não reduziu de intensidade em nenhum momento durante a volta de Suzaki para Nokyokai, muito menos quando se juntou aos Heishis em seu retorno para a capital. Aproveitando a longa viagem de volta, ele caiu em sono profundo, que chegaria ao fim quando a roda de sua carruagem passou por uma pedra elevada, o acordando de sobressalto. Colocando a cabeça para fora, já podia ver a sua casa, o palácio imperial, surgir por entre as montanhas mais altas da capital.
Ao atravessar a porta levadiça, no instante em que Suzaki colocou os pés para fora de seu transporte, ele foi recebido por membros da nobreza para logo depois ser tomado por uma figura conhecida.
— Senhor! — se aproximou, Masao, pegando em seus braços — O que aconteceu com você?!
— Está tudo bem, Masao — olhava para um lado e para o outro procurando por Toshio que veio em outra carruagem.
— Bem? Olha suas vestes, seu cabelo e machucados — segurou firme em seu pulso, o levando — vou preparar já seu banho.
— Espera, agora não — tentou puxar de volta, mas se conteve para não machucá-lo.
— Foram ordens diretas do imperador — rebateu o criado.
Já dentro do palácio real, Suzaki terminava seu banho. Com uma toalha, ele secava seu cabelo frente a um espelho, sem tirar os olhos da ferida em seu peito e de sua mais antiga cicatriz no ombro.
Enquanto prendia seu cabelo, viu seu rosto através do espelho e reconheceu a face de seu pai por um instante. Coçou seus olhos ferozmente e quando olhou de volta, apenas via seu reflexo como antes, com os cabelos um pouco acima do ombro.
— Alteza? — Masao bateu na porta.
— Já estou saindo — pediu, encarando o elástico que usava para prender seus cabelos.
Após se vestir, continuou em direção ao seu quarto com Masao que ainda estava em seu encalço.
— Por que não amarrou seu cabelo? — questionou o servo — E onde foi parar sua capa nova?
— Há coisas muito mais importantes — respondeu Suzaki, sentando na cama.
— O que há com você? Até seu tom de voz parece ter…
— Masao — interrompeu Suzaki — quero que responda o que vou perguntar sinceramente.
— Cla-claro senhor — se ajoelhou na altura da cama, engolindo seco.
— Me diga — pegou no ombro do mordomo — Você confia no imperador?
— Ora, mas que pergunta. Óbvio que confio.
— Confiaria nele se ele mandasse despejar sua família para um lugar que você não faz a mínima ideia? Assim, de imediato?
— Isso não me parece uma pergunta justa, senhor — disse tentando virar sua cabeça para a porta.
— Me responda — forçou suas mãos contra o criado — esqueça hierarquia, esqueça que sou seu senhor. De pessoa para pessoa, me diga!
— Eu sempre irei confiar no imperador. A palavra dele é uma ordem! — interrompeu elevando o tom — O mundo é sobre os que ordenam e os que obedecem, e apenas isso. Seria ingratidão minha rejeitar isso. Quem se revolta, não tem em quem confiar.
Suzaki então tirou suas mãos de seu servo, que apenas o encarava assustado. A sua espada de duas pontas estava presa na parede, de onde o príncipe a removeu gentilmente depois de amarrar o gancho nas costas com as tiras de couro. Colocando a lâmina nesse suporte, se dirigiu até a porta dizendo:
— É irresponsável, entre os que obedecem e os que ordenam, também existem aqueles que apenas sucumbem.
Suzaki batia a porta de propósito em sua saída, ecoando por todo aquele andar do palácio. Os Heishis espiavam de passagem Masao pela brecha da porta, debruçado sobre a cama, ao passo que aqueles que cruzavam o caminho de Suzaki, o olhavam de canto, por vezes mudando de direção.
Não demorou muito para o silêncio de tensão se tornar sussurros entre a nobreza. De repente, trombetas ressoavam nos muros exteriores para todo o palácio ouvir.
Correndo para encontrar os recém-chegados, no pátio externo, ele se depara com um singelo cavaleiro montado.
— Informação para o imperador — bradou o mensageiro.
Uma pequena multidão de Heishis e nobres se aglomeraram para ver a chegada do homem, porém Suzaki, empurrava cada um deles para o lado até chegar nele.
— O que faz aqui? Minoru já era para ter chegado. O que aconteceu? — perguntou Suzaki ao se fazer visível para o mensageiro.
— Deve estar se referindo aos plebeus — desceu do cavalo — eu sinto muito, alteza, a caravana sofreu um acidente no meio da estrada para cá — informou se curvando.
— Como? — Suzaki inclinou a cabeça — Temos que mandar equipes de buscas imediatamente!
— Seria o apropriado minha alteza — colocou seu chapéu sob o peito — se todos não estivessem mortos.
— Mo-mortos?! — o peito do príncipe apertava.
— Sim. Fui convocado para o julgamento dos contrabandistas e um dos líderes das minas, mas no caminho encontrei a carruagem e seus passageiros mortos na beira da estrada. Vítimas da tempestade da madrugada. Essa não é uma temporada fácil — encostou no ombro do jovem — Eu sinto muito.
— Sente muito? — estapeou o braço do Heishi — Você tem ideia do que falou? Espera que eu acredite nisso?!
— Sua caravana partiu depois e mesmo assim chegou antes da deles, eu vi com meus próprios olhos. Você sabe que é verdade.
— Não pode ser! — Cerrou os punhos.
— Se me der licença, alteza, preciso notificá-lo.
“Maldição, isso não pode ter acontecido por acaso”, chutou o chão de pedra. “Se todos na caravana se foram, só pode ter sido um ataque” pensou, olhando ao redor em desespero.
Quando o mensageiro partiu, sobraram apenas alguns nobres no pátio, que mantinham seus olhos fixos em Suzaki. Eram homens túnicas pretas com estampas bordadas em azul marinho no formato de uma lua minguante.
“Então é assim que vai ser”, concluiu o jovem cerrando sua face.
Nos minutos seguintes, o príncipe tomou nova direção. Próximo das muralhas, ficavam os estábulos, onde uma porta de ferro guardava uma passagem escura, iluminada por tochas. Depois do ranger enferrujado da abertura, Suzaki se deparou com um elevador. Levando uma das tochas consigo, desceu até a masmorra.
Assim que a plataforma atingiu o subterrâneo, correntes se balançaram e grunhidos transpassaram as paredes úmidas de pedra. Passando pelo corredor estreito repleto de celas, ele encontrou uma sala fechada por uma porta grossa de madeira.
Na sala, um sujeito era cercado de correntes, preso da garganta às mãos e aos pés. A boca estava amordaçada, mas seria por pouco tempo. Já os olhos, as tochas que Suzaki acendeu de cada lado da sala antes de liberar sua boca, revelavam o esquerdo cauterizado de qualquer luz.
— Reconheço o barulho das suas botas em qualquer lugar — disse Ryo.
— Não vim aqui para brincar. A caravana de Minoru não voltou. O que a sua corja fez com eles?
— Você que me coloca nessas correntes e sou eu que devo explicações? Como eu poderia matá-los?
— Os Tsuki desse castelo estão de olho nas informações que chegam. Eu sei que estão trabalhando juntos. O que quer que planejem, não vai dar certo comigo aqui.
— Proteger o imperador é o motivo que você está aqui para início de conversa. Todos sabem disso, essa ameaça não é nada nova.
— Vocês agem no desconhecimento das suas vítimas. Quando você for julgado e exposto, não haverá para onde se esconder.
— O jogo das cortes sempre foi sobre discrição. Sabe quantos parentes meus entraram numa carruagem e partiram para nunca mais voltarem? O imperador joga muito bem, não foi diferente com Minoru — sua fala foi interrompida com um tabefe com as costas da mão de Suzaki.
— Esse lugar é pouco para você! — segurou seu pescoço com as duas mãos e pressionou.
— Você realmente acha que eu teria feito tudo aquilo sem os Heishis saberem? — disse Ryo, perdendo o fôlego, mas esboçando um sorriso — É tudo um grande jogo, que termina em uma guerra que vai fazer Nokyokai parecer uma piada. Nem os Tsuki nem o seu pai querem saber de impedir o que está por vir, mas você é diferente. Só precisa de saber a verdade.
— Se descobrir que teve alguma relação com a morte do Minoru, eu juro que volto aqui para terminar o que comecei — soltou.
— Antes de fazer novas promessas — tossia em meio a falas ofegantes — Pode cumprir a primeira? Eu ainda estou guardando aquele nosso segredinho. Serei executado amanhã pela tarde e de manhã costumo ficar mais falante que o normal.
— Se depender de mim, você seria executado hoje — respondeu, abrindo a porta.
— Você está mais sozinho do que pensa, Suzaki. Mas vou te dar uma garantia, pode me agradecer depois. Você tem que ler a história que guardam nas prateleiras antes que a recolham para reescrever as melhores partes.
Fechando a porta atrás de si, Suzaki retornou à superfície pelo elevador. A noite já havia chegado, com relâmpagos que faziam o céu piscar, ao passo que uma chuva fraca caía sobre o palácio. Com a fala de Ryo em sua cabeça, o príncipe voltou para a murada interna, na torre mais alta entre todas nos quatro cantos do castelo.
Escalando a torre pelo lado de fora, Suzaki se viu abrindo a janela devagar para pôr os pés para dentro. Era uma biblioteca, com prateleiras enfileiradas de ponta a ponta, abarrotada de livros, alguns empilhados até mesmo no chão, sem lugar nos móveis. Em especial uma dessas pilhas estava depositada em cima de uma escrivaninha.
Enquanto vasculhava livro a livro da pilha, seus olhos desviaram para um pergaminho, com texto ainda para ser completo na mesa, com a tinta no papel fresca.
— Os arquivos estão fechados à noite — disse uma voz vindo de trás no escuro, ao mesmo tempo que passos podiam ser ouvidos vindo na direção de Suzaki — E além do mais, o que um príncipe iria querer num beco sem saída desse?
— Vim confirmar uma coisa — pegou o pergaminho escrito da mesa e mostrou a ele — Daisuke.
Saindo da escuridão, o homem estava com a barba por fazer e com o cabelo bagunçado. Aproveitou para olhar Suzaki da cabeça aos pés, se projetando para frente, com a cabeça esticada, antes de pegar o documento.
— Esse é apenas o meu trabalho — deu de ombros — O mensageiro me conta tudo, eu escrevo e guardo nesse labirinto — gesticulou vagamente para as prateleiras — Para nunca mais ser visto ou falado.
— E se mais alguém descobrisse isso?
— Todos sabem, só não falam. Aquilo que não é falado, não existe. E o que não existe, não é falado. Algumas coisas estão melhores na escuridão — devolveu o pergaminho.
Um trovão sacudiu a torre, balançando a escrivaninha de forma a derrubar a pilha de livros dela no chão. Suzaki deu as costas ao guardião dos arquivos e voltou a ler o que tinha na mesa.
— “As minas de fulgur estão em nossa posse, finalmente, graças ao sucesso da missão. Todas as testemunhas foram silenciadas como requisitado” — amassou o papel — e isso existe, Daisuke?
— Até que seja colocada junto com as outras, sim.
— Por que eu fui para lá? Para baixar a guarda de Minoru? Fala para mim se eu só fui uma peça nesse jogo todo!
— Dividir a mina nunca foi uma opção, você deveria saber disso — dizia, indo para junto dele, remexendo nos pergaminhos na mesa — Depois do que aconteceu nas vilas, como você espera que os Tsuki sejam confrontados? Com Minoru os assaltos não vão parar e agora que expôs Ryo, estamos à beira de um confronto interno.
— O que vão fazer com tanto fulgur depois que essa disputa acabar? O que é tão importante?
— Você já sabe a resposta para isso — tirou do fundo dos papéis um mapa, com o nome "Hercínia" escrito no rodapé.
O coração de Suzaki pulou uma batida quando se deparou com a localização marcada, perto da fronteira com os Midori.
— Não foi o que você me disse na reunião — levantou a voz.
— Ainda não era a hora certa. Mas com você aqui neste lugar, procurando respostas, julgo que é chegada a hora de saber certas coisas.
— Vocês ainda não desistiram dos Midori e dos Aka mesmo depois de três anos — jogou o mapa na mesa, indo até a janela para ver a tempestade — Enquanto inocentes morrem todos os dias!
— Eu gostaria que essa luta fosse tão recente assim. No entanto, rivalidades antigas são difíceis de curar. Dentro e fora da nossa casa.
— Deve haver um jeito de impedir isso. Eu vi uma alternativa lá fora com os Kiiro, os Midori, até mesmo os Aka. Eles não querem guerra.
— O lado vencedor nunca quer — bateu no ombro de Suzaki.
— Ninguém pode querer! Farei tudo o que for preciso para evitar essa guerra — voltou-se para as prateleiras — está dispensado, Daisuke — ordenou pegando alguns documentos.
— Vou trancar a biblioteca. Volto ao amanhecer — caminhou até a saída — Pode ficar à vontade.
Daisuke fechou a porta, deixando o Heishi Celestial à sós com todos aqueles arquivos. Lembrando-se do que o último membro dos verdes havia lhe falado antes de regressar ao império:
— Você prometeu que mudará as coisas por lá, pois eu te digo que farei o que for preciso para melhorar tudo por aqui.
Sentado na poltrona, tomou o livro que estava no topo da pilha e o colocou na sua frente.
"Eu preciso cumprir essa promessa!", pensou abrindo o livro.