Nisoiro Brasileira

Autor(a): Pedro Caetano


Volume II – Arco 6

Capítulo 42: Os Contrabandistas

Debaixo de uma caverna aberta numa colina, uma fogueira aquecia as duas pessoas ao seu redor, que se protegiam da fraca chuva do lado de fora. Aiuchu explorava as queimaduras nas costas de Suzaki, colocando uma toalha encharcada sobre seus ferimentos. 

— Então deixa eu ver se entendi — disse Aiuchu — veio para o norte do Império a pedido desse Minoru, que agora está sendo acusado pelos Heishis por causar os próprios problemas que ele mesmo quer resolver? 

— Basicamente é isso — respondeu um pouco trêmulo.

— E você acha que ele é inocente — retirava a toalha, deixando-a próxima a fogueira. 

— Que sentido teria ele pedir minha presença no norte? Atrapalhar os planos dele? — se levantava — Eu vi ele salvar aquele trabalhador com meus próprios olhos — completou vestindo sua camisa.

— Talvez a consciência tenha pesado — disse Aiuchu, acariciando seu cabelo.

— Ninguém que conheço arriscaria a vida só por isso.

— Mas só você se feriu desse jeito, né?

— Do que está falando? — vestia sua jaqueta.

— Uma coisa é voltar machucado em viagem, outra é se ferir assim logo que volta para casa. Achei que você podia colocar outras pessoas para lutar nas suas batalhas. Você não é o Heishi Celeste?

— Heishi Celestial, o nome — se sentou do outro lado da fogueira — e não é tão simples assim, não é justo forçar outras pessoas a arriscarem a vida por mim. E se a luta for perigosa, alguém pode morrer. Comigo no controle, posso conter meus poderes e poupar todos. Esse é o jeito certo.

Com as palavras do príncipe, a garota se levantou e foi de volta para as suas costas, dessa vez colocando entrelaçando suas mão nos cabelos lisos de Suzaki.

— Espera, o que tá fazendo? — tentou evitar com uma mão. 

— Seu cabelo está do jeito errado — desamarrou o laço que amarrava o cabelo de Suzaki — Mudaram seu corte todo. Está totalmente diferente de quando ajeitei pra você.

— Tem coisas mais importantes — inclinou sua cabeça abaixo dos ombros.

— Seu pai?

— Não sei dizer ao certo. Uma hora eu sou um exemplo e no outro um ingrato. Sinto como se ele fosse duas pessoas diferentes e não sei qual é a verdadeira — dizia Suzaki, esfregando as mãos.

Aiuchu parava de mexer nos cabelos do príncipe e levou suas mãos para perto das do Heishi Celestial, que parou sua inquietude naquele instante. A jovem se esgueirou para o lado até poder olhar Suzaki nos olhos, ainda com suas mãos nas dele. A chuva já havia passado. Por um momento só era possível escutar o gotejar das estalactites e a fogueira trepidando.

— Se estão pressionadas, as pessoas costumam revelar quem são de verdade.

A troca de olhares durou alguns segundos, até que em um movimento brusco, Suzaki retirou suas mãos e se levantou, indo até suas coisas próximo a saída:

— Devo ouvir conselhos de quem não me conta nada? Ainda vai me esconder quem são seus pais, como veio parar aqui ou por que não volta pro seu território? 

— Você voltou para o seu por um motivo, já eu não tenho motivos para sair daqui — afirmou com os olhos concentrados na fogueira.

— Esse é o problema, eu não sei até quando posso continuar fazendo isso — partindo para a saída. 

— Você vai voltar, certo? — a pergunta fez Suzaki pausar seus passos. 

— Sim, fique a salvo até lá — subiu em seu cavalo. 

A garota apenas consentiu com a cabeça e deixou o príncipe tomar a estrada naquela noite fria.

Suzaki retornava a Nokyokai ainda naquela madrugada, mesmo que dentro das enormes cavernas, dia e noite eram indistinguíveis, exceto por algumas casas mais apagadas que outras. O lugar onde estava hospedado permanecia claro, e dessa vez, particularmente inquieto. Assim que prendeu seu cavalo na porta, dois Heishis passaram às pressas por ele.

— Ei, o que está acontecendo? — Suzaki perguntou.

— Heishi Celestial — um deles se virou, enquanto o outro seguia em frente — Sinto muito mas estamos sem tempo. Capitão Toshio está lá dentro, vai falar com ele — completou, correndo atrás de seu companheiro que partiu.

Entrando no estabelecimento, ele viu Toshio cercado de Heishis, no balcão. Ele estava apoiado lendo alguns papéis, enquanto gritava ordens a alguns. Suzaki se esgueirava por baixo daqueles homens, quando a lâmina em suas costas sobressaltou aos olhos do capitão.

— Crian-, digo Heishi Celestial — apontou na direção de Suzaki. Imediatamente o grupo ao redor do balcão abriu espaço para ele — Pensa que pode fugir das suas obrigações?

— Onde está Ryo? Pensei que fôssemos nos reunir com o trabalhador — disse Suzaki, se aproximando da bancada.

— A testemunha que procura, não chegou até agora. Você tem noção do que isso significa? Do quanto o sumiço desse homem pode nos custar? — bateu na mesa.

— Como isso aconte… — Suzaki parou por um instante — Onde ele estava antes de ser raptado?

— Ryo devia levá-lo para cá, já que vocês insistiram tanto nessa reunião. Olha o resultado agora. Quem vai explicar para o Imperador essa sua irresponsabilidade?

— Responda a pergunta.

— Ora, ele ficava em um hospital improvisado que montamos. Dois Heishis saíram agora para averiguar o que aconteceu, fazendo o trajeto inverso.

— Droga — correu para a saída.

— Eu quero esse homem na minha frente em duas horas, está me ouvindo? — gritou Toshio, sendo ignorado pelo príncipe. 

Montando em seu cavalo, Suzaki disparou para onde viu a dupla de Heishis correr. 

“Eles não vão acreditar que foram os contrabandistas, mas só pode ter sido. Quem mais poderia? Se conseguir pegá-los, posso limpar o nome de Minoru. Posso até mesmo fechar o acordo de divisão das minas”, pensou consigo.

Virando a segunda rua, Suzaki os avistou subindo numa carruagem. Emparelando com ela, o príncipe acenou para o cocheiro.

— Estão indo para o hospital? — questionou.

— Ou o que restou dele — disse o cocheiro estalando as rédeas — Se quiser vim junto, até pode, mas eu não sei o que a gente vai encontrar lá.

— Eu tenho uma ideia. 

Na medida em que se aproximavam de seu destino, viam um número maior de pessoas correndo, além de alguns gritos distantes. Um dos Heishis pediu para estacionar, apontando de dentro do transporte para um prédio com a porta escancarada e a vidraça partida. Logo abaixo, junto aos cacos, estava uma barraca destruída, com um corpo estirado nela.

Suzaki desceu do cavalo para olhar bem de perto. A máscara cobrindo do nariz ao queixo e a tinta nos olhos não deixavam dúvidas. 

— Quem é esse aí? — perguntou o Heishi.

— Um dos responsáveis.

De dentro do prédio, alguém se revelou da janela.

— Suzaki — gritou Ryo — levaram ele.

— E você? — perguntou Suzaki, erguendo a cabeça — Mais alguém sobreviveu?

— A maioria está ferido, eles pegaram o cara e dispararam para longe. Eram duas carruagens. Uma dúzia de homens.

Abaixando a cabeça para ver o homem na sua frente, Suzaki mexeu nas suas roupas e encontrou uma perfuração no peito. Tirando a máscara, notou que ele não estava mais respirando. 

— Esse aí não vai falar nada — alegou um dos Heishis.

— Mas alguém vai falar dele — disse Suzaki, erguendo o cadáver do chão.

— Deixa esse corpo aí — gritou Ryo da janela — é só um corpo sem vida, sem utilidade. 

— Posso provar que esses caras existem — respondeu Suzaki, abrindo a porta da carruagem e colocando o corpo dentro — E depois confirmar umas teorias que tenho a respeito deles.

— Confirma isso aqui, Celestial — o Heishi apontou para marcas na estrada — Dá só uma olhada nessas marcas.

A rua era composta por uma mistura de terra, lama e pedras. Lixo de todas as origens, deixados por qualquer morador. Entretanto, o rastro que levava para fora das cavernas não tinha o formato de rodas comuns. Quando Ryo desceu para se juntar ao grupo, ele e Suzaki subiram no cavalo do príncipe e seguiram as marcas até uma estrada de pedra, onde já não havia nada para ver. Dali a cidade estava distante, com o caminho adiante completamente escuro.

— Talvez leve para fora das cavernas — disse Suzaki, descendo da montaria — Difícil dizer para onde.

— Deve ter sido uma distração para despistar a gente.

— Ninguém usa rodas com arame por distração, elas desaceleram o veículo — agachou para ver o final do rastro mais de perto.

— Rodas com o quê?

— Arame, serve para abrir espaço entre terrenos muito acidentados. Raízes, plantas, pedras — ergueu-se do chão.

— Mas você está olhando para frente e não vê nada — reclamou Ryo, apontando para a escuridão à frente. — E agora?

— Veremos se os Heishis descobriram algo do contrabandista que levamos até eles — concluiu Suzaki, montando de volta no cavalo.

— Duvido que eles falem algo que preste. Até ontem nem acreditavam nesses contrabandistas.

— Nem você. Por isso mesmo que tem alguém que precisamos levar com a gente.

Juntos os Heishi's seguiram a realeza que os guiou até a localização do capitão. 

Na pensão, os subordinados abriam a porta fazendo com que todos parecem seus papos por um momento, notando um cádaver sendo carregado por eles até o balcão. Logo o corpo era estendido no balcão para Toshio ver. O capitão deu de ombros e virou de costas.

— Esse não é o trabalhador. Perderam o respeito que tinham por mim, trazendo um palhaço pintado para cá?

— Capitão, foram ordens do Heishi Celestial.

— Ele está velho demais para pregar peças. Tirem esse corpo da minha frente.

Quando a dupla pegou começou a tirar o corpo do balcão, Suzaki e Ryo entraram às pressas no lugar.

— Deixem onde está — ordenou Suzaki.

— Heishi Celestial, isso é assunto sério — disse Toshio, ainda de costas para ele.

— Por isso mesmo eu trouxe alguém que entende do assunto — olhou para porta — Minoru, você pode entrar.

A porta abria, revelando o dono da mina. Todos os Heishis viraram para a entrada, levando as mãos às espadas na cintura sem desembainhar-las. Toshio cruzou o balcão às pressas, porém Ryo o segurou para que não interrompesse.

— Ficou maluco? Esse homem aqui entre nós? — gritou Toshio — Seu pai saberá disso, criança!

— Minoru, esse é o contrabandista de quem falei. Reconhece o que está nos olhos dele? — perguntou Suzaki.

— Não é simples examinar um corpo morto assim — Minoru tapou o nariz, deslizando os dedos ao redor dos olhos para sentir a tinta escura, embora não tenha perdido a oportunidade de abaixar as pálpebras do cadáver.

— Isso é o que pensei? — questionou Suzaki.

— Com certeza — confirmou Minoru ao cheirar os dedos — Isso é Seiva da Noite.

— E o que isso importa? Trouxe um lunático que arrisca seus próprios empregados para ver qual era o nome de uma tinta? — insistiu Toshio, na medida em que os Heishis se uniam a Ryo para contê-lo — Saiam de perto de mim!

— Seiva da Noite é colhida de fora das cavernas. Eu conheço um lugar, mas não é do tipo que dá para chegar de carruagem — explicou Minoru.

— Deixa eu adivinhar — dizia Ryo — terreno acidentado?

— As raízes ficam na superfície do terreno. São muitas e duras. Se os cavalos se apressarem, e pronto — juntou as mãos e deslizou uma na outra — o carro tomba e desce ladeira abaixo.

— Ninguém chega num lugar assim por acaso. Eles só podem estar ali — disse Suzaki.

— Mas ainda que fosse, você ouviu o que ele disse, não dá para levar transporte. Quantos vão? — questionou Ryo.

— A missão é minha — respondeu o príncipe, se aproximando de Toshio — Soltem ele.

Ryo e os Heishis prontamente soltaram o capitão, que ajeitou suas roupas amassadas durante a contenda.

— Quem você vê naquela bancada é real. Alguém quer uma briga entre vocês dois. Heishis e mineradores. Podemos discutir isso na hora certa, mas agora eu preciso de você para recuperar o que perdemos — disse Suzaki estendendo a mão para Toshio — Você confia em mim?

— Você transgrediu inúmeras normas, criança. Haverá consequências. Contudo, vou garantir que os interesses do Imperador serão atendidos — apertou as mãos com o príncipe — É imprudente deixar tudo nas mãos de uma criança.

— É tudo o que importa no momento — sorriu para o capitão — Minoru, consegue nos dizer com um mapa onde devemos ir? — pediu Suzaki.

O dia já nascia quando uma carruagem solitária estacionava na beira da estrada, vários metros abaixo de Nokyokai. A luz do Sol saía por entre as montanhas, iluminando o caminho à frente. Era um bosque íngreme, de matas fechadas, com raízes expostas no solo. Suzaki foi o primeiro a descer do transporte e rapidamente desceu para olhar as marcas no chão, semelhantes aos rastros que encontrou na noite passada. 

Além do príncipe, um trio de Heishis, Toshio e Ryo também vieram. O capitão hesitou por um instante a descer, ao passo que o grupo disparou adiante, ainda que com cautela. A descida brusca se encerrou, dando lugar a campos de árvores com folhas escuras. Uma delas tinha seu tronco aberto por um machado preso na sua casca.

Ryo chegou perto dela e tomou o líquido com as mãos, passando no rosto.

— Tem certeza que eles terão fulgur para usar contra nós? Minoru não falou de nenhum roubo durante esses dias — questionou Suzaki.

— Eu prefiro não subestimar eles — comentou Ryo — Sem falar que é mais barato que comprando de um mercador. Sabe qual é o preço disso nas cavernas?

— Não, você sabe?

— E nem quero — riu, ao passo que limpava o excesso da seiva nas roupas — Tudo que preciso é bloquear essa luz do Sol insuportável.

De repente, uma flecha cruza os dois, passando rente à face de Suzaki em direção a cabeça de Ryo. Contudo, ele inclina sua cabeça no último instante, mesmo de costas. Virando na direção do agressor, a dupla viu um grupo de cinco contrabandistas, cercando Toshio e os Heshis.

— Por que vocês fizeram isso?! — gritou Ryo, puxando sua espada da cintura e disparando para frente.

— Espera, Ryo. Agora não é a hora — chamou Suzaki, sem sucesso, e se voltou para os Heishis — comigo, imediatamente.

As ordens do Heishi Celestial foram prontamente obedecidas pelos Heishis inclusive por Toshio. O grupo fez um bloqueio no formato de semicírculo na frente de Suzaki, ao mesmo tempo que Ryo tinha sua investida frustrada pelos contrabandistas, que o chutaram de volta aos pés dos guardas imperiais.

— Eu falei para não ir de cara — disse Suzaki, enquanto um Heishi levantava seu amigo.

— Atacar de surpresa me irrita. Covardes, eu vou mostrar para eles…

— Chega, Toshio traga-o para trás da linha. Avancem com cautela, guarda alta.

Como um muro, Suzaki conduzia os Heishis numa linha defensiva um passo de cada vez. Os primeiros bandidos buscavam flanquear o grupo, mas Suzaki saiu da retaguarda para apoiar um de seus companheiros nas extremidades. Com sua espada de duas pontas, ele descarregou uma corrente contra um deles, permitindo que o Heishi ao seu lado estocasse sua arma no peito do inimigo. 

— Não! — gritou Suzaki — Precisamos deles vivos.

— Isso é uma batalha — disse Toshio apoiando o outro lado — Sem prisioneiros.

A enorme lâmina de Toshio atravessou o tronco do contrabandista o partindo em dois. As duas metades sem vida daquele homem, assustaram o resto dos bandidos que recuaram para os arbustos, seguidos pelos Heishis liderados por Suzaki. 

— Isso não era para ser assim — disse Suzaki — Eu quero precisão, invés de força. Devemos ser melhores que isso.

— Olhem só para eles, fugindo como covardes — gritou Toshio.

— Ou talvez estejam reagrupando — murmurou Ryo, que batia na sua coxa com os dedos.

— Você está bem? — perguntou Suzaki reparando no gesto.

— Só estou um pouco nervoso, fique tranquilo!

O rastro dos contrabandistas levava a uma nova caverna. Os gritos dos fugitivos ecoaram pelo local despertando homens de onde nem parecia haver espaço. Das copas das árvores mais próximas, até o menor dos arbustos. Emboscados, os Heishis recuaram, quando Suzaki deu novas ordens.

— Troquem as posições, um em cada direção — gritava — Ryo do meu lado.

Os Heishis formaram um losango, onde cada um era uma ponta, com Suzaki e Ryo em seu centro. Dessa maneira, eles se infiltraram na base, sofrendo ataques por todos os lados. Tiros de cima e ataques em terra, porém com Suzaki equidistante de todos, ele pôde interferir. 

Os atiradores tiveram seus os galhos onde estavam cortados deles, com arremessos da lâmina do Heishi Celestial, que podia puxá-la de volta com os fios de energia que a ligavam a ele. Ryo se emparelhou com o lado mais atacado da formação, afastando os inimigos com seus golpes e em pouco tempo eles atingiram a entrada da caverna para onde o resto dos inimigos havia recuado.

— Cerquem a entrada — dizia Suzaki — Ninguém entra ou sai daqui.

— O que está planejando? — perguntou Toshio — Essa missão não deveria ser nossa?

— Sem mortes. Se eu e Ryo não voltarmos em cinco minutos podem entrar com toda a força que tiverem. 

— Três minutos e nada mais. Esses animais merecem uma lição da qual nunca se esquecerão.

— Até horas atrás eles nem existiam para vocês — apontou o dedo no peito de Toshio — eu sou seu superior e é melhor obedecer.

— Você só pensa estar no controle — disse Toshio, rindo — ainda tem muito a aprender — cruzou os braços.

Ryo olhava para o príncipe durante toda a conversa com os olhos arregalados, enquanto martelava a coxa com os dedos novamente. Quando Suzaki virou as costas para o capitão ele o seguiu de perto para dentro daquela caverna escura.


Ilustradora: Joy (Instagram).

Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.

 



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