Nisōiro Brasileira

Autor(a): Pedro Caetano


Volume II – Arco 6

Capítulo 41: Minas de Fulgur

A vista de Suzaki se abria lentamente para encarar o teto de onde acabara de acordar. Levantou a cabeça e viu um espelho na sua frente, depois a deixou de lado e viu tochas na parede, abaixo delas Ryo descansava em uma cadeira, cabisbaixo. Quando puxou ar com mais força seu acompanhante imediatamente se ergueu. 

— Finalmente acordou — disse Ryo, caminhando até a cama — Que susto você deu na gente.

— Como eles estão? — perguntava Suzaki, com uma voz fraca.

— Nenhuma morte pelo que os Heishis me disseram.

O jovem respirou aliviado, mas alguma coisa atormentava as suas costas. Uma dor a cada movimento. Ele olhou para si mesmo e reparou nos lençóis brancos, cobrindo todo o seu corpo exceto pela cabeça.

— O que aconteceu comigo? — perguntou Suzaki.

— Você pegou a pior parte daquela explosão, e aquela técnica que usou, não sei como mas ela abriu um corte na sua barriga. Te levamos sangrando para cá, mas os Heishis deram um jeito de te deixar inteiro.

— Mas a explosão, o que ela fez comigo?

— É melhor que veja por si mesmo — pegou Suzaki pelos ombros — isso deve doer um pouco.

Quando Ryo ergueu o príncipe, que gritou alto de dor, seus cobertores caíram para o lado e pôde encarar a si mesmo no espelho. O abdômen estava marcado com uma cicatriz que cruzava de um flanco para o outro. Girou o corpo o máximo que pôde e reparou nas costas vermelhas, queimadas superficialmente. 

— Onde está Minoru? — pôs-se de pé e começou a olhar em volta — Preciso das minhas roupas.

Encontrando sua camisa e jaqueta num cabideiro ao lado da porta, Suzaki pôde ouvir passos no corredor do lado de fora. Enquanto vestia sua jaqueta, a porta foi aberta, e dela saíram Toshio e mais dois Heishis.

— Ryo, ele já acord… — viu a cama vazia — Para onde foi a alteza?

Ryo conteve o riso, escondendo a boca com uma das mãos e apontando para atrás da porta.

— Não está muito velho para brincar de esconde-esconde, Heishi Celestial? — perguntou Toshio, cruzando os braços.

— Eu preciso saber o que aconteceu durante o tempo que fiquei aqui — pegou sua espada e colocou nas costas — Quem eram aqueles caras? Foram eles que queimaram o lugar?

— Do que você está falando? Aquilo foi um acidente na fábrica. Irresponsabilidade do dono, como sempre. Sorte dele que estávamos ali para cuidar dos trabalhadores.

— Espera um minuto, foram vocês que se recusaram a ir lá quando vi a fumaça.

— Ryo, o príncipe tomou os seus remédios? Acho que está com problemas para se lembrar do trabalhador que salvamos daquele incêndio.

— Eu o entreguei a vocês, depois que chegaram atrasados e todos já haviam sido evacuados.

— E qual o problema então? Acabou de admitir que ajudamos — colocou as mãos na cintura — E além do mais, eu não vi você depois que o incêndio foi contido. Trabalho demais para um príncipe que nem você?

— Na verdade, foi Suzaki que acalmou aquele fogo todo — interrompeu Ryo.

— Ora, onde já se viu, sendo judiado por um filhinho de papai que nem você? Mas, como eu ia dizendo, Heishi Celestial, acho que devia parar de brincar de herói. Vai acabar se machucando. Deixe isso para nós, Heishis, somos treinados para isso.

— Conheço meus limites, mas vou respeitar o seu conselho. Entretanto, como superior de vocês, exijo que isso nunca mais aconteça. — retrucou Suzaki, os dois trocavam olhares no momento que o capitão revirava o seu murmurando — fui claro? — chamou atenção.

— É para que essas situações nunca mais aconteçam que estamos em processo de confisco da mina. Depois do incêndio, aquele homem não pode mais ficar encarregado do lugar.

— Eu já falei que aquele incêndio foi provocado — justificou Suzaki — Ryo, você estava lá comigo.

— Suzaki — Ryo deu de ombros — Eu não vi ninguém. Houve uma explosão, mas o fulgur pode se comportar mal. Um acidente ou desatenção — bateu palmas —  bum — cruzou as pernas levando as mãos ao queixo. 

— Minoru não me disse isso — disse Suzaki, abaixando a cabeça e cerrando os punhos.

— Pois é — Toshio colocou as mãos atrás das costas — O trabalhador que se feriu nessa confusão toda está tendo os cuidados que o chefe negou a ele. No tempo certo, prestará queixas e em poucos dias você estará voltando para casa, Heishi Celestial, com o dever cumprido.

Um Heishi abriu a porta atrás de Toshio, que se despedia dos dois rapazes com um aceno antes de cruzar a saída com seus companheiros.

— Do jeito que está, melhor você descansar. Já fez bastante e essa mina vai estar com os Heishis em alguns dias — disse Ryo — termine o dia como uma vida comum da realeza, deite e descanse, caro príncipe. 

Após a saída do capitão, Ryo manteve a postura observando seu superior com os olhos ao chão e as sobrancelhas franzidas: 

— Relaxa, Toshio não foi promovido à toa — usava seus dedos batendo sequencialmente no encosto de onde estava sentado.

— Você não estava lá — balançou a cabeça — Havia pessoas armadas, bem treinadas, lá dentro. Elas sabiam que as propriedades do fulgur, jogaram aquilo na gente sabendo o que poderia acontecer.

— Eu posso até acreditar que um ou outro apareceu para tirar vantagem da situação, mas um grupo coordenado? Além do mais, que vantagem um bandido teria atacando a fábrica? Mais sorte e seguro atacando a mina.

— Não sei. Mas o único jeito de começar a entender isso é falando com Minoru — andou até a porta.

— Se for o caso — levantou retomando a postura — Eu vou com você, melhor não sair ferido por aí.

Assim que colocaram os pés para fora da pensão onde estavam, Suzaki foi esbarrado por um dos transeuntes. A rua era estreita, casas coladas umas nas outras, em cima, do lado, todas pequenas e disformes, como se o telhado fosse desabar a qualquer momento. Por dentro delas, a mesma luz fraca que vira quando chegou. O príncipe pôde espiar uma mais de perto, e reparou nas lâmpadas a óleo. 

— Tá vendo? — apontou Ryo — Óleo quase não chega por aqui, pelo que os Heishis me disseram. Quanto tempo essas tempestades duram? Todo esse tempo sem ver um raio de sol.

— A escuridão é a norma — disse Suzaki, virando o rosto na direção da mina, de onde uma luz mais forte emanava ao fundo da caverna — Exceto por um lugar.

— Se quer saber a minha opinião, aqui não é tão escuro como imaginei — provocou Ryo, seguindo logo atrás do príncipe.

Assim que chegaram nas minas, subiram a rampa que leva às jazidas, cruzando as torres de vigia. Suzaki ergueu a cabeça e chamou por um dos homens do alto.

— Eu preciso falar com Minoru! — gritou — Onde ele está?

— Aqui não é lugar para criança, moleque. Sai fora.

— E para um Heishi, é lugar? — retrucou Ryo — Por que é isso que vão ter se não deixar ele entrar.

Imediatamente os trabalhadores circulando por lá interromperam tudo o que faziam, travando olhares no jovem Tsuki.

— É isso mesmo — Ryo estendeu os braços — E se tiverem algum problema podem…

— Só queremos falar com Minoru — Suzaki tapou a boca de seu subordinado num sobressalto — Sou o Heishi Celestial, vim a pedido dele.

Um trabalhador passou por eles, com uma picareta numa das mãos, apoiada nos ombros.

— É uma coragem e tanto aparecer aqui depois do que fez — sussurrou chegando próximo a face do príncipe que não se intimidava.

Outros mineradores cercaram a dupla, cada um com um instrumento diferente nas mãos.

— Ei, vocês realmente querem arrumar confusão aqui? Sabe o que vai rolar se encostarem um dedo nele? — um homem gritou de longe.

De súbito, todos pararam suas ameaças, vendo quem estava falando com eles. Minoru, saía de uma cabana no alto da rampa por onde Suzaki e Ryo subiam até a mina. Dessa vez estava com roupas largas e uma luva enorme, esticada até o antebraço. Seus olhos estavam cobertos por uma tinta preta, que combinava com a impregnada no seu rosto como sempre.

— Patrão, nós pensamos que…

— Pensaram errado — Minoru bateu palmas e apontou para trás dele, onde as jazidas ficavam — Eu convidei ele e fiquei sem tempo para recebê-lo até agora. Vamos alteza — virou de costas — temos o que conversar.

Suzaki e Ryo por sua vez, acompanharam Minoru para dentro de sua cabana, às margens das jazidas. Lá dentro havia somente uma lâmpada, presa no teto, não parecia ser feita de óleo. 

Mesmo contornada por um pano espesso e escuro, seu brilho irradiava todo aquele lugar. Era possível ver, claro como dia, a escrivaninha, com o mapa do local rascunhado em folhas em cima de folhas, camadas de níveis diferentes da caverna. Do lado, alguns desenhos avulsos, e uma poltrona deixada de lado.

— O que os Heishis querem de mim agora, Suzaki? — perguntou Minoru, se aproximando da mesa e remexendo os papéis — Jogaram um empregado contra mim, todo mundo na rua tá com medo depois do incêndio, daqui a pouco levam a mina também. Esse era o acordo que você veio resolver?

— Pensei que estávamos do mesmo lado — disse Suzaki — Eu ouvi uma conversa parecida dos Heishis sobre o seu empregado. Não foi o que salvamos?

— Você viu mais alguém saindo com queimaduras de dentro da fábrica? Eu estava lá, mas não me deixaram chegar perto dele. Quando ouço falar dele de novo, está prestando queixa contra mim? Logo eu, que ajudei a salvar ele.

— Algumas pessoas não sabem ser gratas mesmo — disse Ryo, cruzando os braços.

— Uma coisa de cada vez. Minoru, eu não sou louco, você viu a mesma coisa que vi lá dentro?

— Aqueles marginais? Eu vejo eles toda semana pelo menos, mas o Heishis simplesmente não me escutam. E pelo visto, fizeram o mesmo ouvido de mercador com você, não foi? — Ergueu a cabeça para encarar Suzaki que concordou com a cabeça.

— Acabei de chegar, tenho que saber quem são. Os Heishis não vão me falar nada, então preciso confiar em você.

— Então você não colocou aquele empregado contra a gente?

— Por que eu faria isso?! — insistiu Suzaki, levantando a voz, mas se conteve antes de prosseguir — Primeiro, eu preciso que seja sincero comigo. Quais são os perigos do fulgur?

Minoru coçou a cabeça.

— Os Heishis estão certos de que aquilo é perigoso — apontou uma parte do desenho na mesa — Veja só, essa é maior mina de fulgur da região. Exploramos menos da metade dela e os carrinhos saem por tonelada lá de dentro enquanto nos falamos. Só que o fulgur por si só serve de pouca coisa — tomou a cadeira consigo e a colocou debaixo da lâmpada no teto.

Antes de subir nela, Minoru puxou de uma gaveta em sua escrivaninha um frasco contendo um líquido viscoso preto e entregou aos dois rapazes.

— Passem isso nos olhos. O mineral é fluorescente demais. Exposição prolongada pode ser doloroso.

Abrindo frasco e mergulhando os dedos até o fundo, Suzaki teve seu punho impedido por Ryo.

— Não vai gastar o frasco todo — explicou Ryo, colocando uma de suas mãos dentro do vidro — Deixa eu te mostrar.

O acompanhante do príncipe com apenas dois dedos da sua mão, fechou os olhos e riscou o rosto de uma pálpebra a outra, depois circundou os olhos com o líquido. Suzaki prosseguiu para fazer o mesmo.

— As pessoas aqui tem que fazer o que podem. Chamam isso aí de Seiva da Noite, é extraído de uma planta local e reduz a absorção de luz pelos olhos. A claridade é bem vinda nas cavernas mas esses minérios não são como a luz do sol. São mais perigosos de perto — explicou Minoru.

— Óculos não funcionam? — questionou Suzaki.

— Sem chance, o reflexo ainda é muito perigoso — disse Minoru, já tirando o tecido que isolava a pedra para pegá-la com as mãos — Vejam só ele, um minério tão pequeno, mas quente e brilhante.

Ryo precisou cobrir os olhos ainda mais, mas Suzaki pegou a pedra com cuidado, usando as duas mãos para sentir seu calor entre os dedos.

— Fulgur pode ser aquecido com qualquer coisa a ponto de explodir — explicou Minoru — Óleo, fogo, até mesmo o sol dependendo do tempo. A fábrica criava uma liga mais barata misturando fulgur com ferro. Se esfriado corretamente, dava para fazer utensílios domésticos que durariam uma vida toda e ferramentas de mineração para os empregados. Aqueles homens que você viu lá dentro são contrabandistas. Vez ou outra perco um carregamento de fulgur para eles, mas dessa vez foram longe demais. Eu não sei se devo transportar tudo.

— Transportar? Qual é o plano aqui? — questionou Ryo.

— Eu vou perder a mina, rapazes. Não tem como convencer meu empregado a mudar de ideia. Pedi para eles se esforçarem mais naquele dia, passamos do expediente por horas porque queria tudo pronto para entregar às pessoas. No final a minha ganância falou mais alto, mas é pela a culpa ser minha que não posso deixar ninguém na mão. 

Suzaki arregalou os olhos de repente, enquanto Minoru tomava a pedra das mãos dele, encaixando-a de volta no teto. Depois, ele colocou sua cadeira no lugar e puxou outro papel por baixo do mapa da mina e o pôs no topo daquela pilha.

— Meus homens estão acumulando um carregamento de toneladas de fulgur. Em poucos dias acumularemos metade de toda a jazida. Neste trabalho estão só meus homens de confiança, ninguém vai me passar a perna agora. Quando tudo isso acabar, levaremos todo carregamento para o leste. Conheço um povoado que nos ajudaria.

— Por isso que esperou até as tempestades — disse Suzaki — As nuvens vão permitir o transporte seguro.

— Exatamente. Está tudo nesse armazém, já sendo colocado em baús lacrados e estocado numa frota de vinte carruagens. Eu fiz muito dinheiro com essas minas, e chegou a hora de investir no meu povo. Ninguém vai tirar essa riqueza da gente, nem o Império. Tenho trabalhadores manuais de confiança, eles podem transformar isso em qualidade de vida para essa gente. Não será como nas fábricas, mas é melhor do que viver desse jeito.

— Eu não sei — questionou Ryo, levando a mão na boca — Ainda dá para resolver essa questão do trabalhador. E você falou metade? Os Heishis vão dar falta disso e eu não quero estar lá para ver o que vão fazer contigo. 

— Nada que os contrabandistas já não fizeram.

— Você pode morrer — interrompeu Suzaki — Minoru, eu respeito seu empenho, mas isso está fora de cogitação. Não posso comprar uma briga com os Heishis assim, nem por você. 

— Eu vou fazer isso com ou sem você — cruzou os braços.

— Prometo que vou chegar no seu empregado, eu só preciso de tempo. Sou o Heishi Celestial, lembra? Eu vim para resolver isso.

— Não faça nenhuma besteira até lá — advertiu Ryo, apontando o dedo para Minoru — Quero a sua palavra nisso.

Minoru mastigou o próprio ar em sua boca, antes de responder.

— Tem dois dias para resolver essa questão, não mais que isso.

Com um suspiro, Suzaki estendeu o braço e num aperto de mãos, os dois selaram o acordo. 

Saindo dali, Suzaki e Ryo desciam pela rampa de volta à cidade.

— Eu não esperava que os Heishis fossem tão inflexíveis — disse Suzaki — Ryo, tudo o que você viu aqui, não pode chegar aos ouvidos de ninguém. Nem antes, nem depois de resolvermos isso.

— Relaxa, eu vi o mesmo que você no caminho. Toda essa gente, à mercê dos Heishis, deve haver outro jeito — riu — É engraçado, antes de ver você com aquele homem nos braços na fábrica, eu tinha outra impressão sua.

— Eu tenho medo de qual era.

— De que para ser o Heishi Celestial só precisava ser bom de briga. Quando disputamos a posição, tudo que eu pensava era que não fui forte o bastante. Tem muito mais do que isso, né?

— Eu não sei — respondeu Suzaki — Só quero fazer isso do jeito certo, mas agora tenho poucas certezas sobre o que é isso.

Retornando à pensão onde estavam, dois cavalos presos a um poste aguardavam por eles. Nas celas, uma insígnia da família Sora e outra da Tsuki.

— Já falei, tem que descansar um pouco — Ryo subiu no animal com o símbolo de sua família — Olha para você todo quebrado, deixa que eu me viro com os Heishis. Amanhã, teremos uma audiência com o trabalhador.

— Os Heishis não vão me ouvir. Isso não pode dar errado, Ryo.

— Deve ter algum lugar que você possa ir para refrescar a cabeça. Por que não visita sua tia já que ela tá por aqui?

— Se você já vai cuidar dos Heishis — disse Suzaki, subindo no seu — me permita resolver pelo menos meus assuntos sozinho.

Partindo cada um para um lado, Suzaki e Ryo seguiram seus caminhos com propósitos diferentes. A montaria do príncipe cortou a cidade, em direção a saída, revelando um sol muito próximo do horizonte, cercado por nuvens escuras. Aproveitando o resto do crepúsculo, ele desceu pela estrada que se estendia mais ao norte. 

Cruzando uma ponte levadiça de madeira, Suzaki espiou para o abismo embaixo dele e sentiu um frio na espinha. Gotas de chuva anunciavam uma tímida chuva naquela noite, quando amarrou seu cavalo na árvore mais próxima e andou vagarosamente até uma caverna, muito menor que a de Nokyokai.

A luz da fogueira acesa de dentro  não alcançava o teto, mas revelavam uma mulher de costas para a entrada com as mãos sob seu longo cabelo vermelho que estava molhado. 

— Você demorou — percebia a presença sem ao menos trocar olhares com o visitante.

— Muita coisa aconteceu desde a última vez que estive aqui, Aiuchu — abandonava seus suprimentos no chão. 

Se aproximando finalmente a garota se virou revelando sua pele branca e pálida, junto a seus olhos escuros e profundos com muitas olheiras. 

— Irei adorar ouvir mais de suas histórias — disse tentando esconder seu leve sorriso.


Ilustradora: Joy (Instagram).

Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.

 

 

 

 

 



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