Nisoiro Brasileira

Autor(a): Pedro Caetano


Volume II – Arco 6

Capítulo 40: A Cidade Nas Montanhas

Uma caravana subia as ladeiras de uma alta montanha, quando chegava a parte da estrada mais plana, tangenciando a formação geológica. Abaixo deles, podia-se ver árvores frondosas, descendo até a base. Adiante, acima da estrada, as carruagens eram observadas de cima por árvores secas, com galhos queimados e troncos retorcidos pelo vento. 

Dentro do veículo do meio, enfiado entre outros dois, Suzaki e Ryo descansavam. O príncipe abria as cortinas do transporte, deixando os feixes da luz da manhã invadir seus olhos cansados da noite passada. Seu parceiro por outro lado, já estava desperto, sacudindo as pernas e batendo seus dedos sobre a coxa sem parar.

“A temporada de tempestades está próxima”, pensou Suzaki, olhando para o alto. “A região do norte é a mais alta de nosso território. Treinei uma boa parte de minha infância no Monte Nokyokai, mas agora vamos conhecer as cavernas no seu interior. Aqui fica bem próximo da fronteira com os Kuro. Talvez dê para visitar ela”, finalizou seus pensamentos fechando a cortina.

A estrada passava por uma caverna, com luzes vindas do fundo. Desde que percebeu a claridade diminuir, Ryo manteve as cortinas do seu lado da carruagem abertas de ponta a ponta, jogando a cabeça para fora da janela para ver o que estava acontecendo.

— Já dá para ver as luzes no final — disse Ryo retomando a postura — acho que chegamos. Mas não dava para ser num lugar menos escuro?

— Faz tempo que estamos em Nokyokai, mas nossa expedição é nas cidades subterrâneas — respondeu Suzaki — É impossível morar o ano todo na superfície das montanhas.

— É que eu nunca vim para essas regiões — revirou seus olhos para o príncipe — você pelo visto já a conhece.

— Treinava por aqui nas tempestades — escorou seu cotovelo na porta, com seu punho sob seu queixo. 

— Espera, mas para que? Tem chuva em todo lugar — cruzou os braços, Ryo. 

— Aqui tem uma estação do ano, dura alguns meses, onde há tempestades ininterruptas. Nenhum lugar tem tantos trovões como aqui nessa época — os dois se olharam pelos reflexos de seus vidros na carruagem — São ventos rápidos, relâmpagos que estremecem a terra e provocam incêndios. Não dá para cultivar nada e não há casas que resistem àqueles ventos.

— Então de tantos elementos, tentaram te familiarizar com as tempestades? — virou o rosto para encarar Suzaki, que ainda olhava para a escuridão da caverna.

— A energia iro está em todo lugar, mas o domínio de elementos exige costume, contato com aquilo que você deseja controlar. Meu pai queria seguir com a tradição dos Sora. Se devemos ter conexão total com o céu, por que não com trovões? — reclinou a cabeça para trás, agora encarando o teto da carruagem — Nunca haviam tentado isso na época. 

— Agora que falou, realmente nunca vi nada assim nesses anos todos entre os Heishis — levou uma mão ao queixo — mas, e aí, você conseguiu? 

— Não é como se tempestades oferecessem um ponto para se conectar com elas, diferente da água ou fogo. Riscos foram tomados, mas não fui forte o bastante.

— Engraçado você dizer isso sendo o Heishi Celestial — riu — Quer dizer quem é mais forte que você aqui? Eu não estou vendo.

— Isso é outro assunto — jogou a cabeça para baixo.

— Minha família, os Tsuki, tem outros truques. Acredito que meu pai por exemplo deve ser melhor que você na arte sensorial — disse voltando a bater com os dedos na coxa — isso se deve pela nossa conexão com o luar, dizem que alguns de nós podem enxergar melhor a noite do que um Kuro — encarava suas mãos por um momento — Mas não é fácil, exige muito foco, pelo menos para mim. Não consigo ver e ouvir como os mais velhos ainda.

A claridade voltava, ao menos parcialmente, para o interior da carruagem. Da janela, já era possível ver abaixo, um mar de casas e barracas semi-construídas. Todas com um brilho fraco, que piscava com a incandescência de uma vela gasta, mas, quando unidas, pareciam uma constelação no céu noturno. 

A carruagem parava em um terreno mais elevado, com vista para todo lugar. Além das moradas e ruas estreitas, de onde vagavam pessoas vestidas com trapos, não muito diferentes dos mendigos escorados nas esquinas, exceto que havia estavam mais limpos da fuligem. Atrás da cidade, a caverna penetrava mais fundo na montanha. Duas torres de vigia, na mesma altura de onde Suzaki desembarcava, embora a vários metros de distância, guardavam dois homens gritando ordens para um grupo de baixo, portando picaretas e pás.

— Entrem, está na hora. Querem comer hoje? Me tragam mais daquelas coisas brilhantes — a voz de um deles ecoava pela caverna.

Os dois desciam do veículo, observando as cavernas subterrâneas, enquanto os servos os recebiam, pegando sua bagagem e levando consigo. Recusando-se a entregar as suas para levar consigo mesmo, o Heishi Celestial se recordava da última conversa com seu pai:

— Se você não pode ir, eu posso resolver esse problema para você — jogou os papéis pela mesa onde Koji estava sentado, enquanto seu filho ficava de pé do outro lado — Minoru me falou que o minério de lá ajudou a fazer minha espada. Por que não contou?

— Você está aqui há menos de dois dias — disse Koji, jogando as anotações de Suzaki para o lado, sem lê-las — O tempo para isso chegaria, mas você preferiu dar ouvidos a um qualquer do que ao seu pai.

— Eu estou fazendo isso por você. Por favor, Minoru parece ter gostado de mim. Se está nesse cabo de guerra há tanto tempo, quem sabe ele me escute mais do que você?

Koji levava a mão ao rosto, pensativo.

— E além do mais — prosseguiu Suzaki — Ryo apoiou a ideia. Na verdade, ele ficou bem animado de me acompanhar.

De repente, Koji deixou os braços caírem na mesa. O imperador ergueu a cabeça para olhar seu filho diretamente nos olhos, com um sorriso sutil no rosto.

— Ryo quer ir, né? — perguntou retoricamente, enquanto jogava os ombros para cima — Você me convenceu. Uma viagem para amanhã de madrugada com alguns dos meus Heishis mais próximos te acompanhando. Não desaponte seu pai.

 

Depois que os servos foram embora com as cargas, os Heishis os receberam junto com outras autoridades. Entre elas, estava uma mulher de idade, com cabelos pretos, rosto pálido de tão recheado de maquiagem, vestida com uma jaqueta repleta de pérolas incrustadas no pano, além dos brincos em suas orelhas, que chegavam a tilintar a cada passo que dava. Ela correu até Suzaki, o abraçando bem forte.

— Quanto tempo! E você está tão crescido! Ainda lembra de mim? — perguntou — Vai dizer que esqueceu logo de mim?

— Não, tia Rhea. Eu não esqueci — dizia Suzaki, limpando o excesso da maquiagem que ficou no seu rosto depois do abraço — Só não me contaram que você estava aqui.

— Ah mas agora você sabe — Rhea se voltou para os Heishis que vieram com ela — Ei, vocês, venham falar com meu sobrinho. Ele é o Heishi Celestial! Tenham mais um pouco de compostura frente o herdeiro do trono!

Enquanto a maioria deles se curvava perante o príncipe. Outro se encaminhou sem seguir o gesto dos outros. Era um homem alto, de peito estufado e olhar severo, trouxe sua espada extensa, pesada o bastante para ser segurada com as duas mãos, para frente de si e a colocou bem na frente de Suzaki. 

— Saudações — analisou o jovem da cabeça aos pés — Heishi Celestial.

— É um prazer, senhor… — Suzaki erguia a cabeça para vê-lo.

— Capitão, príncipe. Capitão Toshi. Dono dessas terras, líder das tropas do norte, segundo filho mais velho do ramo principal da família Chisei. Não espero que uma criança não saiba disso, mas logo o Heishi Celestial…

— Esse cara foi promovido tem, tipo, duas semanas no máximo — sussurrou Ryo no ouvido de Suzaki. 

— Quer dizer alguma coisa, Ryo? — perguntou Toshi.

— Não, nada — pegou o braço de Suzaki — Por que não se cumprimentam? Não é isso que as autoridades fazem?

— Sinto muito pela ignorância, Toshi. Longe de mim dar desculpas, mas meu pai achou melhor me introduzir a esse novo Império aos poucos. Para ser sincero, essa visita partiu de mim acima de tudo — Suzaki manteve o braço estendido depois que Ryo tirou suas mãos dele.

— Ora, então deve ter ocorrido um erro — engasgou, oferendo a outra mão para cumprimentá-lo — Koji e eu somos muito próximos. Sou seu confidente.

O príncipe apertava a mão de Toshio, pronto para se despedir, quando escutou uma explosão, a algumas ruas de distância, nos fundos da caverna.

— Aquela não é a mina? — questionou Suzaki.

— Deve ser — respondeu Toshio, cruzando os braços — Minoru deve ter aprontado outra. Enfim, vamos para…

— Para onde? Isso é um perigo, temos que ir — disse Suzaki, disparando naquela direção.

Ryo correu atrás do filho de Koji de imediato, mas não antes de virar-se para Toshi com um sorriso desdenhoso.

Enquanto Rhea via seu sobrinho partindo sorrindo com um certo orgulho, o capitão deixado com seus Heishis bateu os pés:

— Quem ele pensa que é me dando ordens assim? Eu, o homem de confiança do imperador? — gritou, virando-se aos seus subordinados — Estão olhando o quê? Me obedeçam e vão até ele. Ninguém fala comigo assim.

A guarda obedeceu, mas Suzaki já estava no local. As profundezas da mina foram evacuadas, embora a fumaça tenha origem noutro lugar. Um prédio largo, ainda em construção, pelos andaimes e tábuas ao redor, que encarava no incêndio seu fim precoce. As janelas recém colocadas cuspiam fogo e as portas vazavam com pessoas gritando desesperadas.

— Espera — pedia Suzaki para qualquer um que passava — Quem fez isso? Tem alguém lá dentro ainda?

Um homem cambaleou até ele, caindo nos seus braços.

— O chefe — tossiu — Ele ainda tá lá.

Colocando-o nos ombros, Suzaki confiou aquele homem no primeiro que se dispusesse a socorrê-lo e para só então entrar no prédio condenado. Foi o tempo suficiente para Ryo alcançá-lo.

— Suzaki, espera! — acenou enquanto corria — Eu vou junto.

— Cuide dos feridos. Lá pode ser perigoso — tentou afastá-lo com o braço, mas Ryo revidou. 

— Os Heishis já já vão estar aqui. Vamos lá, não seja teimoso.  

Balançando a cabeça negativamente, Suzaki deixou de protestar contra a ajuda. Quando decidiram entrar, a dupla se deparou com uma cortina de fumaça nublando sua visão e uma cacofonia de metal rangendo e madeira trepidando que perfuravam seus ouvidos.

— Minoru — chamou Suzaki — Me escuta, vou tirar você daqui!

De repente, um estalo no telhado pôde ser ouvido por Ryo, que empurrou Suzaki para o lado. Antes que o Heishi Celestial se desse conta, metade do telhado desabou sobre eles. Sem saber se seu subordinado havia sobrevivido, Suzaki chamou por ele sem resposta. Estavam separados pela fumaça e uma montanha de escombros, que deixavam um caminho estreito por onde Suzaki se esgueirou devagar até o outro lado. Cruzando os escombros, seus gritos foram respondidos.

— Eu estou aqui — disse uma voz em meio a tosses — Ajuda!

Suzaki seguiu àquela voz, mas ao invés de Ryo, ele encontrava aquele que buscava desde o princípio. 

— Você veio… — sussurrou Minoru.

O chefe tentava puxar um de seus funcionários debaixo de uma parede que desabou sobre ele. Minoru estava com a pele coberta de fuligem, como antes, mas agora, seus olhos estavam vermelhos e as roupas encardidas, rasgadas nos braços, cujas mãos exibiam juntas machucadas dos incessantes fracassos em salvar seu empregado, que gemia de dor.

— Por que ainda está aqui? — disse Suzaki, colocando as mãos por baixo do concreto para erguê-lo.

 — Eles queimaram minha fábrica. Prenderam alguns trabalhadores, olha esse aí que tá nos seus braços. Pensa que vou deixá-los assim?

— Então trate de tirar esse daqui, enquanto eu… — gritou Suzaki, levantando a parede — seguro isso.

Arrastando o ferido para fora, Minoru o ergueu do chão, apoiando-o nos ombros.

— Você disse que “eles” queimaram sua fábrica? Quem são? — questionou Suzaki, soltando a parede.

A resposta para a pergunta do Heishi Celestial veio por meio da ação. Uma faca cruzava o nevoeiro preto, na direção do rosto de Suzaki, que desvia por reflexo no último instante. 

“Mas o que foi isso?”, pensou.

Das sombras, três homens com máscaras de pano cobrindo das narinas ao queixo, com os olhos pintados por uma tinta escura, atacaram o trio, vindo de lados diferentes.

Suzaki sacou sua espada e defendeu-se do ataque à direita, colidindo sua lâmina com a espada do inimigo. A disputa por espaço durou pouco, pois vendo os outros dois oponentes se aproximando de Minoru e seu trabalhador ferido, o príncipe joga seu peso para o lado, fazendo com que sua lâmina acerte o chão, disparando uma corrente elétrica que paralisa a todos por um instante.

Rapidamente, o jovem soca o primeiro e corre atrás dos que restam, afastando o segundo com um chute, mas ao chegar a hora do terceiro, o efeito de seu ataque com iro, perdia o efeito. Os dois trocam golpes, um tentando penetrar na defesa do outro, batendo metal com metal até que o agressor se vê encurralado pelos escombros atrás de si.

— Não tem como correr — disse Suzaki apontando sua espada — Renda-se e venha comigo.

O homem riu por baixo da máscara, alcançando algo no bolso amarrado na sua cintura. Era uma pedra com um brilho incandescente. Ele a apertou com força, fazendo-a piscar na cor azul, antes de arremessá-la contra Suzaki. 

Durante seu trajeto o pequeno minério explodiu em incontáveis pedaços, liberando também uma corrente de calor intensa. Suzaki ergueu os braços para se proteger do arremesso, porém sentiu sua pele borbulhando ao ponto de arder. Aqueles que estavam nas suas costas, também receberam uma parte da explosão. 

O trabalhador já ferido converteu seus gemidos para gritos de desespero. Minoru perdia o controle sobre aquele homem, deixando-o cair no chão.

— Como esses caras sabem? — balbuciou Minoru, rangendo os dentes de dor.

Assim que a luz da explosão se esvaiu, não havia mais ninguém na frente de Suzaki. Olhando ao redor, reparou que todos os invasores já haviam sumido dali.

“Uma faca atirada na escuridão, pedras explosivas, toda essa organização numa completa cegueira. Existe treino e preparo, mas isso é diferente.” pensou consigo mesmo. Então, os estalos do prédio começaram a ficar mais frequentes. “Esse lugar vai desabar logo. Tenho que correr”.

— Sai daqui — ordenou a Minoru, pegando o trabalhador nos braços — Eu levo ele.

Erguendo-o do chão, a dor do homem aumentava. Seus gritos faziam Suzaki lembrar-se da sua própria angústia, que apesar silenciosa, corroía o príncipe por dentro. Com dois passos, o peso de seu fardo o botou de joelhos, sua visão ficava turva e Minoru disparava em direção a saída. Quando se forçava a levantar para colocar nem que fosse um pé na frente do outro, uma sombra diferente emergia da fumaça.

— Demorei demais? — disse Ryo, pegando o trabalhador ferido para dividir a carga com Suzaki — Ouvi a explosão e soube exatamente onde estava.

— C-Como — Suzaki tentava falar — Eu achei que você…

— Depois explico, vamos logo.

Juntos, os dois conseguiram cruzar a saída. O homem ferido foi tomado das mãos da dupla de jovens pelos Heishis, que já cercavam o local.

— Ei, o que estão fazendo? — Minoru tentava impedir que levassem o homem.

— A situação está sob controle — Toshi chegava, afastando o dono da mina com um empurrão — Nós assumimos daqui, fique junto dos outros.

Por sua vez, Suzaki desabava no chão, recuperando seu fôlego. Poucos minutos depois, o prédio desabou por completo. Uma nuvem de poeira e fumaça crescia para cobrir aquele pequeno quarteirão.

“Essas chamas não vão parar. Numa caverna isso é muito pior. Preciso apagá-las, preciso…”, pensava Suzaki, enquanto se erguia de mãos unidas.

— O que vai fazer? — perguntou Minoru 

— Ficou maluco? — Ryo pegou no seu ombro.

— Só fica longe! — avisou Suzaki, afastando o parceiro.

As mãos do príncipe cintilavam com uma luz branca. Suzaki respirou fundo, suas mãos tremiam. 

“Esse não pode ser um kazedamu qualquer. Se for fraco, posso atiçar as chamas no lugar de extingui-las. Ainda assim, eu preciso resolver as coisas por aqui!”.

Parando por um segundo, ele desferiu o kazedamu contra as chamas. O sopro foi forte o bastante para apagar boa parte do fogo, chegando a atirar alguns escombros menores para longe, embora sem acertar ninguém. A fumaça que se originou da destruição também foi dissipada pela técnica de Suzaki, que direcionou a nuvem negra no caminho da saída. 

Boquiabertos, tanto Heishis, quanto Minoru e Ryo viam Suzaki recuperar-se de seu feito. O jovem cambaleou até ficar de pé no momento que conseguiu, seus olhos só conseguiam ver preto. Suzaki desabou ali mesmo, inconsciente, sendo pego por Ryo por trás. 

 


Ilustradora: Joy (Instagram).

Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.

 

 

 

 

 



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