Volume II – Arco 5
Capítulo 33: Jeito Certo Pt.1
Repousando entre as dunas de um infindável mar de areia, um pequeno povoado de casas incompletas, feitas de madeira, argamassa qualquer coisa que pudessem obter para erguer um teto sobre suas cabeças. O calor árduo evidenciava o sol no caminho do horizonte em mais um dia de trabalho tão árduo quanto o clima seco da região.
No passado, não passava de um aglomerado não maior do que dez moradas, divididas por uma rua estreita, tangenciando um rio que passava a maior parte do ano seco. Por causa disso, a vegetação do local era tímida, se limitando às suas margens. Cultivar qualquer coisa era um desafio que poucos ousariam enfrentar se tivessem outra escolha.
Ainda que esteja longe da grande metrópole no coração do deserto, o lugar cresceu em tamanho. De dez moradas, surgiram mais algumas, além de uma fortaleza, na saída da rua principal, que dava a uma estrada para viajantes, posicionada em confronto com o horizonte. Cercado por muros de pedra e torres de madeira em seus quatro cantos, a base servia de acampamento aos novos guardiões do deserto.
Eram homens de espada nas cinturas, armaduras cintilantes de prata no peito e capas vermelhas, com tecidos apropriados ao clima. Por vezes tomavam alguns cavalos para visitar a população que protegiam.
Um deles, enquanto passeava pelas casas, notou dois garotos sentados do lado de fora de uma, ao pé de uma duna, com uma lápide em seu topo. Um era mais novo, pele bronzeada, no máximo sete anos, cabelos curtos e castanho claro, rosto redondo e nariz arrebitado. Tudo coberto por panos amarronzados de linho da cabeça aos pés.
O outro denunciava ser bem mais velho pelo rosto, apesar da altura. Pele branca, e cabelos azuis soltos, na altura do ombro. Cobria-se com uma lona grossa, também amarelada, porém por baixo dava para ver uma jaqueta azul envolvendo uma camisa preta de gola baixa, na altura do peito. Abaixo da cintura, calças pretas e botas de couro.
A criança soprava um instrumento, mas o observador não entendia sua forma, muito menos como uma melodia tão suave pudesse sair de algo tão pequeno. Riu para si mesmo da sua própria ignorância e continuou sua ronda, deixando os dois à sós.
— O que achou? — dizia a criança, tirando a boca da ocarina para olhar seu instrutor — tava bom, não tava?
— Você melhorou muito, Akio — passou a mão na sua cabeça — Continuando assim, pode ser um grande músico no futuro.
— Mas eu posso ser um grande músico agora — após admirar a ocarina em mãos, voltou seus olhos para o tutor com os olhos esbugalhados — Por favor, deixa eu ficar com ela, Suzaki!
— Eu não posso — repousou suas mãos sobre o instrumento, se unindo com as de Akio — Preciso voltar para casa com ela, foi um presente.
— Hmpf, não é justo — cruzou os braços com a cara emburrada.
— Eu sei — dizia Suzaki, quando guardou a ocarina no bolso da sua jaqueta — Mas eu vou voltar. Só vai levar mais tempo que antes.
— Do jeito que fala eu nem devo saber mais como tocar quando voltar. Como eu vou tocar para mamãe assim?
— Não vai — segurou o menino pelos ombros, sorrindo gentilmente — Durante esse tempo todo você guardou nossos momentos juntos. Então só precisa continuar, mesmo que leve mais tempo. Vai fazer isso pela sua mãe, estou certo?
O garoto tentou desviar o olhar mas após perceber a expressão alegre de Suzaki, não conseguiu segurar sua risada que impulsionou sua resposta:
— Certo — concordava com a cabeça — só porque é pela mamãe.
Da janela, Rie aparecia para chamar os dois garotos para dentro. Ela vestia túnicas parecidas com as do filho, embora sem estar coberta na cabeça. Tinha olhos amarelos e cabelos longos, castanhos claros assim como de Akio, mas seus fios já apareciam brancos na raiz.
O mais novo correu para a porta, porém Suzaki ficou alguns segundos parado de olho no sujeito que passara por eles antes virar de costas e entrar.
Abrindo a porta, reparou no teto e nas janelas gastas pelos ventos e areia. As paredes erguidas descascavam com a pintura que parece ter sido feita pela última vez há décadas, além das tábuas de madeira no chão gemiam a cada passo que dava.
Era como se a casa toda fosse ruir a qualquer momento. Ao mesmo tempo, a mesa posta diante dele, ao centro da sala, estava farta. Não era como a de Onochi, mas aquela era uma visão que o próprio viajante nunca havia testemunhado em outro lugar fora da fazenda do Shiro.
A família já estava sentada de mãos dadas. O chefe de família aproveitou para deixar as luvas de couro que vestiam as mãos calejadas de lado. Era um homem de pele escura, olhos castanhos e quase nenhum fio de cabelo restante na cabeça, apesar da sutil barba branca. Portava túnicas amarelas, que cobriam seu corpo exceto os braços musculosos que usava para trabalhar.
Suzaki tomou sua cadeira e sentou-se de cabeça baixa, dando suas mãos a Okada e a Rie, completando um círculo ao redor da mesa.
— Os últimos anos foram bondosos com a nossa família. Temos muito a agradecer, não só por essa mesa, mas pelo começo de uma nova vida — anunciou o mais alto entre todos — sem miséria nem violência.
— Que continue assim — completou sua esposa.
— E que o deus sol ilumine sempre nosso amanhã! — finalizou o filho com sua voz doce e inocente.
Todos soltaram as mãos e começaram a comer. Akio encheu as mãos com o que podia pegar, ao passo que Suzaki e o casal usaram os talheres na mesa.
— É uma pena não poder contar com você aqui, Suzaki — dizia Okada, com os olhos fixos na comida — Os Senshis trouxeram um carregamento novo de adubo para a vila. Estou pensando em plantar mais esse ano.
— Eu gostaria de ficar — respondia Suzaki, erguendo a cabeça para olhar para Okada — Mas tenho minhas obrigações.
— Todos nós temos, né? — riu, pegando um pão da mesa e mordendo um pedaço — Agora que a coisa aliviou para gente.
— E muito — dizia Rie, mostrando os talheres para Akio comer com eles — Eu não consigo mais imaginar a vida sem os Senshi’s por aqui.
— A última vez que precisei comprar sementes para vocês na capital foi no ano passado. Desde a ocupação, até algumas pessoas de outras vilas se mudaram para cá — disse Suzaki, colocando a colher na boca
— Eu não vou esquecer o que fez pela gente, Suzaki — respondeu Okada, arqueando as sobrancelhas para olhar Suzaki — Foi por causa de você que hoje podemos depender da caridade dos Aka — de repente suas sobrancelhas baixaram — Quero ver até quando um território rival vai fazer isso.
— Mas eles tem nos protegido amor, até os assaltos cessaram na região — disse Rie, usando um papel umedecido para limpar sua boca.
— Ainda assim, a gente tem que se preparar pro pior. Ampliar essa plantação, fazer dinheiro e melhorar essa casa.
— Tenho certeza que vai achar alguém disposto a carregar esse sonho com o senhor — desconversou Suzaki.
— Fala como se tivesse um de você a cada esquina.
— Está superestimando minhas habilidades, senhor.
— Não, estou subestimando a bondade dos outros — disse Okada, agora olhando nos olhos de Suzaki.
Apenas os sons de mastigação e talheres batendo foram ouvidos por um instante. O príncipe inclinou a cabeça com a resposta do chefe de família na sua frente, antes de começar a rir e balançar a cabeça negativamente. Acompanhado pelos outros que riam juntos.
— O Suzaki deu uma boa ideia — Rie tomava a palavra — Podíamos contratar trabalhadores. Sem ele aqui, podemos alimentar mais uma boca, também teríamos alguém para fazer as viagens para nós se precisarmos. Quando vendermos o que sobrar, ele fica com uma parte do lucro.
— Conversamos sobre isso melhor, depois. Agora, filho, eu sei que é exagero meu pedir para ficar, mas sair hoje à noite? A estrada aqui é segura, mas com os Midori é outra história.
— Estarei bem, Okada, sei me cuidar. Além disso, não vou viajar sozinho. Tenho um amigo lá que ficou de me acompanhar.
— Você e os seus amigos. É um dos verdes, outro nos vermelhos. E até lá na capital Oásis, com as princesas.
— Lembro de ver você encontrando uma delas que costuma visitar a vila. Ela era linda, não é, Suzaki? — disse Rie ao lado usando o cotovelo para provocar o garoto.
— Podem esquecer — desviava o olhar.
A resposta do jovem gerou gargalhadas altas do resto da família, que ecoaram pela casa, podendo ser ouvidas de fora por quem passava.
— Esse Suzaki — limpava os olhos lacrimejados de tanto rir — Olha, já que você vai mesmo — Okada levantou da cadeira — Vem comigo. Quero te mostrar uma coisa.
Suzaki levantou da cadeira e logo a colocou de volta no lugar, seguindo Okada para os fundos da casa. Quando o filho pequeno ameaçava se levantar para segui-los:
— Akio, meu filho, vamos lavar essas mãos — dizia Rie, tirando o filho da mesa — Depois vem me ajudar a acender as velas.
— Tá, mãe — respondeu, curvando os ombros em chateação.
O sol já havia partido, as estrelas iluminavam o céu azul escuro, junto a lua que se erguia do horizonte. A terra dos fundos estava bem cavada e irrigada. Parecia um trabalho de pouco tempo. Algumas coisas já foram colhidas, mas ainda sobrava mais da metade da terra cultivada. Uma reserva para os próximos meses enquanto a usada descansa.
O jovem olhou para a bancada e reparou nos sacos de sementes vazios no pé da mesa, nas foices, tesouras, facas gastas, mas também instrumentos diferentes, praticamente novos, que cintilavam com a luz que vinha das velas da casa. Ferramentas pequenas, próprias para uso meticuloso, feitas para um trabalho mais detalhado.
Mas Okada sequer parou para admirar seu trabalho. Estava focado no que havia acima deles: uma lápide nas dunas. Suzaki encontrou seu amigo no topo, com os joelhos sobre a areia abrasiva e o vento no rosto.
— Veja só — passava a mão pelo nome recém talhado na lápide — Hajime — Levou um tempo para revitalizar o nome, mas esse deserto não vai consumir a memória do meu filho.
— Então aquelas ferramentas novas que vi na mesa não eram para a plantação — voltou para a casa lá embaixo.
— Meu filho não merece ser esquecido assim — levantou-se — Pelos Kishi’s tudo bem, mas por nós, a família dele?
— A vida não precisa terminar aqui — dizia Suzaki, pegando no ombro de Okada — talvez Hajime gostaria que vocês seguissem adiante.
— Essa é a minha terra — respondia Okada, colocando sua mão na de Suzaki e afastando seu braço lentamente — Se perder isso, para onde vou? Não dá para levar ele comigo.
— Eu sinto muito, Okada. Não quis te machucar — abaixou a cabeça.
— Você nunca nos machucaria, filho — abaixou a sua altura para abraçá-lo — Durante todo esse tempo se preocupou mais com o nosso bem do que eu mesmo. Perdemos Hajime, mas você foi uma verdadeira benção.
— Bom, eu sei que seu filho era insubstituível, mas anime-se, você tem Akio — se reergueu junto ao dono da família — com certeza será um grande homem como o senhor.
— É — estendeu a mão — você tem razão, obrigado por tudo, Suzaki.
Os olhos de lacrimejaram por um momento, porém suspirando, apenas correspondeu apertando a mão de Okada contendo seus sentimentos:
— Sentirei falta de vocês, mas eu vou voltar, eu prometo.
— Eu sei que vai. Boa viagem.
A família observava, acenando junto a uma vela a partida do príncipe. Ele continuava deserto a fundo por uma trilha que conhecia bem. Seguia o trajeto para topar com o território onde iria cruzar para retornar a sua verdadeira casa.
Ilustradora: Joy (Instagram).
Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.