Volume II – Arco 5
Capítulo 33: Jeito Certo Pt.2
Na calada da noite, em uma pequena cidade fronteiriça à floresta Hercínia, o movimento parecia a de um dia claro comum. As ruas estavam cheias de pessoas, carruagens, cada um indo numa direção. Barracas de comércio com jarros, frutas, entre outras coisas ficavam à beira do caminho, gritando ofertas para quem passasse com dinheiro o bastante no bolso para comprá-las, mas isso não despertava a atenção incorruptível dos homens armados que rondavam as ruas.
Em cada esquina havia um punhado de homens, cinco no mínimo, dez no máximo, rondando uma quadra. Estavam armados com facões e espadas nas cinturas. Embora usassem as mesmas roupas encardidas, sujas e rasgadas dos outros moradores, uma braçadeira verde os distinguiam do cidadão comum. Alguns montavam barricadas nas ruas principais, outros cercavam a primeira carruagem que julgavam suspeita.
O congestionamento das ruas obrigava um dos cocheiros, de veículo fechado, cortinas nas janelas e passageiros ocultos, a costurar pelas ruas paralelas para driblar os homens fortes.
— Mais uma barreira — dizia o homem, apertando as rédeas — Vocês vão me matar. Eu sei disso.
Do carro, Suzaki encosta logo abaixo do assento do motorista para falar-lhe:
— Se tudo piorar, eu os protejo. Não entreguei o dinheiro adiantado à toa.
— Nem mesmo você pode garantir isso — respondeu seu acompanhante no carro, amarrando seus sapatos.
— Mitensai — sussurrou Suzaki — Agora não é o melhor momento.
Após ter falado ao condutor, Suzaki estava no assento oposto ao do seu acompanhante, o qual pôde dar uma boa olhada de frente. Ele havia desistido de seus cadarços desfiados e decidiu escondê-los por dentro do calçado.
Depois de todos esses anos, ainda usava a mesma camisa sem um botão no alto e o calção surrado. Seu cabelo estava volumoso, mas ainda não caiu para os ombros. Apesar da aparência de sempre, um detalhe servia como ímã para os olhos de Suzaki: uma fita verde amarrada em seu tornozelo.
— Eu poderia dizer a mesma coisa. Você sabe como as coisas estão desde toda aquela confusão com os azuis e o rapto da princesa. A gangue não ficou nada feliz.
— Por isso que você está aqui. Para me levar de volta para casa.
— Se formos descobertos, eu nem sei o que fariam comigo. Midori costuma levar as coisas para o pessoal — moveu a cortina para o lado e vislumbrou uma torre se destacando na distância — eu disse que ia te ajudar, mas você mesmo podia passar por cima da gangue por outra região.
— Nem pense nisso — inclinou-se para frente — Vamos fazer isso do jeito certo. Já disse que se a coisa piorar, você pode me entregar e dizer que eu estava te ameaçando. Depois eu me viro.
— Eu não gosto disso — recuou, encostando-se nos fundos do carro, e cruzou os braços — Às vezes você me passa a ideia que mal sabe com quem está lidando.
— Com você ou a gangue?
— Os dois! — saltou para frente com uma voz mais alta, já se contendo com as mãos na boca para abafar a voz — A gangue é mais perigosa do que você pensa. As coisas que eles fazem, com quem se envolvem, não tem princípios. Só cobiça desenfreada. Cada cidade é como um… reino próprio com líder e sua milícia particular.
— É uma hierarquia militar como a dos outros países, mas são amadores — ergueu a mão direita, como um gesto de espera — Amadores perigosos. Com toda intriga que poderia acontecer numa estrutura assim, eu duvido que as cidades possam fazer o que quiserem. Criminosos são territorialistas, mas não são piedosos.
— Se estiver sugerindo que tem alguém acima das facções que comandam cada cidade, pode tirar seu cavalo da chuva — levou a mão esquerda ao queixo, pensativo — Para mim, o chefão não passa de um mito. Ninguém viu o cara. No máximo é um cartel das facções mais fortes, que tributam e sufocam as menores.
— Eu vi outra coisa — dizia Suzaki abrindo um pouco das cortinas, vendo uma guarnição com fitas verdes no braço, revistando um sujeito comum — De fato, as facções não representam a verdadeira gangue. Nesses anos vi de perto todos os grandes comércios de armamento, transporte e outras mercadorias aqui, algumas vindas até da minha terra, e os valores que os líderes recebiam era incompatível. Os membros apelidaram de taxa fantasma, porque os mensageiros que apareciam para cobrar estavam mascarados e encapuzados. Eles se chamavam de fantasmas.
— Eu nunca cheguei tão perto deles — deduziu Mitensai — Mas pode ser só um golpe de um espertinho contando vantagem.
— Sem chance. Entre os homens corriam histórias de pessoas que foram assassinadas por faltarem com o pagamento. A parte estranha é que morriam tendo algum tipo de convulsão.
— Nada impede que tenham sido envenenados.
— Eu consegui contato com apenas um fantasma, levou horas para cercá-lo na Floresta Negra. Quando o desmascarei, estava no meio de uma daquelas convulsões. É impossível que ele tenha ingerido qualquer coisa nesse meio tempo. Alguém está fazendo muito esforço para esconder esse homem. Os líderes locais não passam de cúmplices — apontou para fita no tornozelo de Mitensai.
— Isso é mais complicado do que parece.
— Estar integrado a uma facção que pode te matar a qualquer momento é mais do que complicado, eu diria — o príncipe franziu as sobrancelhas.
— Qual é? Vai me interrogar depois de tudo? Estou me arriscando para te ajudar.
— Não é isso — recuou no assento para olhar seu companheiro no rosto — Mas se eu fosse você, me distanciava dessa gente logo. Você não está envolvido com essa alta cúpula agora, mas nada garante o amanhã. Por que não seguir seu próprio caminho e parar de colaborar com essas pessoas?
— Por que você está deixando o continente para voltar para casa?
Após o questionamento Suzaki se espantou, apenas o barulho da carroça andando, e o som das rédeas era ouvido pelos dois.
— Isso é… É bem diferente. Minha família precisa de mim e…
— É isso aí: você tem os seus motivos, eu tenho os meus — interrompia o amigo, apontando para ele e depois para si mesmo.
— Quando tudo terminar, contarei meus motivos. Prometo.
— Eu confio em você, mesmo que não conte. Em troca, tô pedindo que confie em mim também. Dois anos e nunca vi uma dessas fadas. O que eu vi mesmo foi a galera de quem você escapou três anos atrás te jurando de morte. E eu duvido que esse grande plano do chefão vá mudar uma vírgula se você viver ou morrer aqui.
Subitamente a carruagem para. Os cavalos relincham ao fundo, chamando atenção de Suzaki que olha pela janela de trás e pelos lados para ver o que se passa. Eram a gangue, cercando os veículos para inspeção e estavam em cima do veículo da frente. Sem ruas para escapar.
— Droga, não deu, Mitensai. O que eu faço? — sussurrou o cocheiro.
— Fica calmo — respondia Mitensai — Você já fez bastante.
— Fala para eles investigarem o veículo — propôs Suzaki — Eu tenho um plano.
Do lado de fora, o condutor da frente é chutado para fora do seu veículo por um dos guardas, enquanto outro assume as rédeas.
— Anda, dá o fora daqui antes que eu mude de ideia! — gritou.
O pobre coitado saiu cambaleando para longe, recebendo pedradas e xingamentos dos outros do bando. Todos na rua viravam o olhar para aquela cena, continuando seu cotidiano, alguns desviando de rua caso estivessem a pé. Entretanto, essa alternativa não estava aberta para o próximo da fila da gangue.
— Como é que vai ser? Mostra essa carga logo — disse o homem, chutando uma das rodas da frente.
— P-Pode investigar. Eu vim sozinho a viagem toda.
Apontando com o queixo, o membro da gangue ordenou seus parceiros a abrirem a porta do carro. No entanto, assim que entrelaçaram seus dedos na maçaneta, ela se abriu bruscamente por dentro, acertando a cara de um deles. Saindo por ela, estava Suzaki que partiu por uma barraca de vendas. Ele subiu pela sua tenda e começou a escalar o prédio até o topo. Os guardas olhavam aquilo atônitos, quando foram despertados por uma voz vinda de dentro da carruagem.
— Peguem ele! — gritava Mitensai, saindo do carro e apontando para cima — O maldito escapou de mim.
— Espera como você…
— Isso não importa agora. Atrás dele — saiu correndo.
Os guardas continuavam trocando olhares entre si, quando Mitensai esbarrou naquele que estava bem a sua frente durante sua perseguição a Suzaki. Todos seguiram logo atrás na busca, ouvindo pelas ruas urros de outros homens que reconheciam o príncipe pelo caminho.
— Aquela arma, é ele de novo!
— Alguém manda o aviso!
— Ei — o guarda por quem Mitensai passou checa sua cintura — Alguém pegou meu facão!
O caminho de Suzaki era composto por telhados de madeira, prestes a ceder com o seu peso, pontuado por varais de lanternas que conectam as ruas pelo alto. Um passo em falso e poderia ser o fim. Entretanto, toda quadra coberta pela velocidade do viajante, um novo grupo de perseguidores se juntavam ao pequeno exército no seu encalço.
Mitensai a cada rua virada na sua busca, virava o rosto para encarar a torre, que virá mais cedo como uma compulsão doentia. Era uma construção de tijolos e argamassa como qualquer outra, mas no topo uma grade, guardando um grande braseiro, com saída da fumaça para o céu.
Na terceira olhada, notou o fogo acesso. Seu brilho podia ser visto de qualquer lugar da cidade, assim como a nuvem negra da lenha que se dissipou no céu, cobrindo a lua.
“Isso não é bom. Suzaki, você não tem muito tempo”, pensou consigo mesmo.
O jovem Midori fez um desvio a uma rua paralela. Enquanto Suzaki estava cada vez mais encurralado por todos os lados. Abaixo dele, cerca de quinze homens nas ruas, todos com espadas em mãos. E agora, cinco o rodeavam no telhado íngreme de uma casa. Dois na beirada e três acima dele.
“É, eu tentei evitar ao máximo”, pensou entrando em postura de combate.
Inspirando fundo, ele ergueu seu pé direito, virando o corpo na direção dos três acima dele. Os dois abaixo partiram para atacá-lo quando deu as costas, mas a sola de sua bota desceu sobre as telhas com força no momento certo. O golpe indireto desmanchou o chão onde estavam, derrubando a dupla casa adentro.
Com um rápido salto, Suzaki escapou de sua própria armadilha e, no meio do ar, balançou sua espada contra o trio restante, chegando a empurrar um deles para a queda.
Ao aterrissar, fincou sua lâmina entre as telhas e a levantou, jogando-as nos rostos de seus inimigos. Atordoados, um deles recebeu um chute no peito, que o derrubou em cima de seus companheiros na rua.
O outro balançava seu facão sem ver quem acertava, quando sentiu sua arma se chocar com outra. Suzaki se colocou no caminho do ataque, o interrompendo com sua própria arma e o desarmou, torcendo seu braço. Por fim, o empurrou para o buraco que fizera na casa e o deixou ali.
Sua vitória foi vivida por pouco tempo. Por trás, Suzaki sentiu uma corda amarrada em seu tornozelo direito, que o puxou para as ruas, sem que pudesse cortá-la. Ele foi arrastado para a beirada onde afundou sua espada para se segurar, sem sucesso, por conta do prédio frágil que não suportou o puxão.
O alvo de toda aquela multidão terminava sua fuga mal sucedida caindo de cara na terra batida da rua, cercado por todos aqueles homens. Na sua frente um par de botas se destacava entre o resto. As solas prateadas, as esporas que tilintavam a cada passo de um andar inquieto, quase animado.
Elas se aproximavam do rosto de Suzaki e quanto a ponta chegou a centímetros do seu rosto, notou a perna dobrar, quem quer que seja estava se agachando. Podia ver a espada, embainhada na cintura, não apenas amarrada como a dos outros homens que enfrentou hoje.
— Eu esperei muito por isso — dizia o sujeito, apertando seus cabelos para erguer seu rosto, olhando nos olhos de seu algoz — Dessa vez, você não vai escapar para lugar nenhum.
A visão turva de Suzaki reconhecia a face de seu inimigo aos poucos. Cabelos pretos e curtos com queixo bem definido, embora fosse jovem, como ele. Suas roupas eram pretas, com ornamentos verdes no colarinho e nos ombros. Podia ver também que tinha alguma armadura, cor de grafite, que reluzia por baixo daquela roupa.
“É o filho daquele chefe de quem fugi anos atrás”, concluiu Suzaki.
— Avisem Hideki, o pai! — ordenou, soltando Suzaki e levantando sua voz — diga a ele, que Dai, o desafiante, capturou o príncipe do Império Ao!
Ilustradora: Joy (Instagram).
Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.