Volume I – Arco 2
Capítulo 13: Mundo Colorido
Os olhos do garoto se abriram devagar, revelando o teto de sua casa numa visão turva. Ele virava a cabeça para se situar de onde estava, quando uma silhueta familiar aparece, na medida que sua vista ganha nitidez.
“O que… o que aconteceu ontem mesmo?”, levantou-se com as mãos na cabeça.
— Do jeito que te entregaram aqui, pensei que fosse ter que te amarrar a uma carroça para tirá-lo da cama. Ainda bem, você deve estar se acostumando a levantar cedo — disse Yoroho entrando no quarto com uma vassoura em mãos.
— Agora eu lembrei… — disse observando a palma de suas mãos — Eu consegui brilhar. A aura, eu consegui! — respondeu abraçando o pai, mas logo o afastando — Tenho que ir agora!
— Claro, tudo bem — murmurou.
Notando a resposta diferente do pai, Yanaho se impede de sair do quarto por um instante.
— Está tudo bem? Eu não liguei muito para o que você pensava dessas minhas saídas, mas… — curvou a cabeça.
— Sem desculpas. Isso não é culpa sua — chegou perto e se ajoelhou à altura do garoto, arrumando seus cabelos com as próprias mãos — Eu só fico preocupado, mas acho que é só coisa de pai.
— Se precisar de mim aqui… Quer saber, eu posso encontrar o senhor Shiro amanhã.
— Não! — segurou nos ombros do garoto com força — Essa é sua oportunidade, não pare de viver sua vida por causa de um velho como eu. Vou dar um jeito de me virar. O que mais importa é você não deixar as coisas passarem.
Os dois se abraçaram para Yanaho partir outra vez. Yoroho observava seu filho cruzando a cerca, dessa vez acenando com as mãos antes de seguir em frente. Parado ali na varanda de casa, o pai do camponês se lembrava das palavras de Onochi na noite passada.
“Seu filho tem um potencial tão alto que não sou capaz de medir. Se continuar assim, é certo que ele será capaz de realizar tudo que deseja.”
“Yanaho, que desafios vai enfrentar daqui para frente?”, ponderou Yoroho.
Atravessando as trilhas e o cerco, Yanaho chegava mais uma vez à cidadela restrita. Percorrendo os salões vazios do local, encontrou o campo vazio, exceto por um corpo conhecido estirado na grama.
— Ei, acorda — se aproximou de Suzaki inconsciente, com o colarinho da camisa puxado — Acorda! — chutou o garoto.
Suzaki despertou rolando no chão com um golpe rasteiro que derrubou o camponês.
— Ah, era você — disse Suzaki o reconhecendo — Não faça isso novamente.
— Você podia relaxar mais, sabia? Já tentou dormir melhor?
— Onde está Onochi? — limpou a sujeira do rosto.
— Eu cheguei aqui agora. Achei que você sabia — disse quando viu o príncipe retomando sua meditação — Ei! Onde é que vai? Vai me ignorar assim?
— Preciso continuar meu treinamento. Devia fazer o mesmo.
— E esse ferimento no ombro?
— Isso não é nada — puxou a jaqueta para perto do pescoço, escondendo a ferida.
Yanaho deu de ombros, e começou seu treinamento amontoando as madeiras que encontrava dos restos de ontem para, enfim, ativar sua aura. Dessa vez, a energia veio com facilidade, despertando o olhar encantado do garoto que se admirava das mãos aos pés.
Pegou cada tábua junto a algumas cordas que encontrara e pendurou as tábuas nos galhos das árvores. Seu exercício era cortá-las como devia ter feito no dia anterior.
Seu primeiro avanço terminou com o alvo espatifado em incontáveis pedaços mais uma vez.
“É muito mais difícil do que parece. Quando estou brilhando, consigo empunhar a espada melhor, mas distribuir a energia para os movimentos é outra coisa”, pensou suspirando.
Tomou impulso para outra tentativa, quando tudo ao seu redor começava a estremecer, desequilibrando sua postura. Suzaki tinha feito outro Kazedamu.
— Ei, não dá para treinar isso sem destruir a floresta toda? — exclamou percebendo o outro garoto ao chão.
— Eu falhei — sussurrou Suzaki para si mesmo — De novo! — socou o chão.
— Tá me ouvindo?! — continuou chamando.
Confuso com os gritos, o candidato a Heishi Celestial balançou a cabeça negativamente.
— O que você quer? Ajuda no exercício? — gritou Suzaki, com voz fraca.
— Acho que pode ser, eu não sei bem mais o que fazer com isso — apontou Yanaho, para os fragmentos de madeira.
— Espera — disse Suzaki se aproximando — Eu posso jogar as tábuas para você.
— Quer saber, eu vou jogar para você? Aí eu posso ter uma ideia do que estou errando.
Suzaki concordou sem protestar. O primeiro arremesso seria cortado por um giro de sua lâmina que deslizou pela madeira, separando-a em três partes iguais.
— Como?
— Força é desnecessária. Madeiras não resistem ao golpe como pessoas.
— Não quero cortar pessoas! Só, sei lá, não entendi como fazer. E que conversa é essa de cortar pessoas?
— Esqueça isso, foque no que importa. Você cria a energia, mas precisa parar de tentar segurar a forma. Mire no alvo com sua postura ajustada e passe a energia do seu peito para seu corpo naturalmente.
— Mas já é isso que estou fazendo.
— Você está começando a praticar agora e por isso sua energia ainda precisa de disciplina — disse, virando-se para onde havia um dos troncos do treino do jovem.
“Disciplina, né? Isso deve ser sobre a praticidade então”, pensou Yanaho, enquanto Suzaki se preparava para arremessar.
Quando alertado, o camponês confirmou com a cabeça e o pedaço foi atirado em sua direção. Esperou até o último minuto para balançar sua espada num golpe que, dessa vez, partiu o objeto em menos pedaços.
— Muito bem, vai dominar isso com o tempo — disse Suzaki, indo a campo aberto para reiniciar seu treinamento.
— Ei, por que me ajudou?
— Pensei que tinha me chamado — balançou a cabeça — Talvez só esteja fugindo das minhas obrigações.
— Você não é um viajante? Alguém te obrigou a sair de casa?
— Não foi bem isso que quis dizer.
— Então o que foi? É tão fechado que não consegue responder uma simples pergunta?
— Eu… Consigo ver sua determinação, só isso. Passei pelo mesmo que você.
— Você parece ter a minha idade e mesmo assim está muito mais avançado que eu.
— Comecei mais cedo. Mas por que você está treinando?
— Eu já disse, eu preciso ser alguém importante.
— Seus pais devem ter orgulho da sua determinação.
— Estou treinando por eles também, só que eu deixo meu pai na mão — coçou a cabeça.
— Eu também falho em ajudar meu pai.
— É? O meu trabalha numa fazenda. E o seu?
— Na verdade ele só quer que eu realize seus objetivos, depois de tudo que ele me deu… é o mínimo que eu posso fazer.
— Que estranho, meu pai nunca teve muita coisa para me dar, mas ele sempre diz que pais devem apoiar os objetivos dos filhos.
— Nunca vi por esse lado.
— Ele é demais. Há umas semanas eu acabei… Causando uma confusão e só fui solto graças a meu pai. Meu tio também ajudou, só que acho que você entendeu — riu — Ele poderia muito bem virar as costas pra mim em todas as bobagens que eu fiz. Se não fosse por ele, eu nem estaria aqui.
— Tenho uma dívida parecida. Por isso preciso voltar a treinar, agora.
— Obrigado por me ajudar, Suzaki — sorriu.
Retomando o treinamento, os dois não notaram Onochi observando tudo do alto das ruínas do santuário.
“Suzaki está estagnado, já Yanaho melhora a cada tentativa. Uma pena não conseguir entender o que mexe com Suzaki. De qualquer forma terei que levá-los comigo para resolver os problemas em Kiiro amanhã mesmo.”, refletiu descendo até o local chamando atenção dos dois.
— Onde é que você estava, gorducho? — perguntou Yanaho.
— Olha o respeito! Ainda não quebrei a sua marca de dois atrasos seguidos.
— Deve haver algum motivo para o atraso — disse Suzaki, com pequenas feridas ao redor do corpo.
— Eu tive que participar de uma reunião importante. Sobre a viagem, vamos partir amanhã de manhã.
— Mas eu ainda nem falei com meu pai direito.
— Quando te deixei em casa, pude convencer seu pai. É um bom homem.
“Será que por isso ele falou sobre as coisas de mais cedo?” pensou consigo mesmo.
— Mas ainda não concluí meu treinamento — justificou Suzaki — É injusto atrasá-los, então prefiro ficar..
— Ora, não ligue para o treinamento. Se estou ensinando vocês em conjunto, me seguirão juntos também. Eu quero vocês comigo.
— Isso aí! — gritou Yanaho empolgado.
— Bom… certo — respondeu Suzaki fechando a jaqueta para cobrir o corpo de novo.
— Viagem combinada! Agora, quero que vocês dois lutem outra vez, como antes. Lembrem-se: precisa haver dois vencedores. Não poderei observar o treino, tenho outro encontro — retirou-se.
A ordem do tutor colocou ambos em lados opostos do terreno, fazendo o mesmo comprimento da primeira vez.
— Eu não vou perder — disse Yanaho ativando sua aura, ao passo que Suzaki correspondia brilhando em azul.
— Não vamos. — partiram um em direção ao outro, num embate cruzando as espadas.
O conflito se prolongou por todo aquele dia. Suzaki já não precisava oferecer tantas aberturas, mas conteve-se na força aplicada em seus golpes, enquanto seu oponente tinha um controle maior sobre o corpo, graças a sua confiança redescoberta. Lutaram até após o pôr do sol, quando o camponês começou a cambalear de um lado para outro.
— Acho que que estou… Começando a me… divertir — disse Yanaho, arfando.
“Ele está além do seu limite. Não posso contar que Onochi venha parar a luta como antes. Se segundo ele nada é por acaso, então só resta fazer uma coisa”, ponderava Suzaki.
O príncipe esquivou de um ataque vindo de Yanaho e deu uma carga com os ombros no peito de seu adversário, que o fez cair sentado. Por fim, abandonou sua lâmina no chão e sentou-se também.
— Por que se deitou? Eu ia levantar para...
— Estou cansado, é melhor você descansar também.
— Dessa vez eu venci por insistência — riu Yanaho.
— Talvez a resposta não esteja só na luta — a resposta fez camponês se conter de levantar.
— Nós dois perdemos?
— Onochi quer nos fazer entender algo além, então ainda há tempo.
— Só que você desistiu.
— Não desisti, estou tentando entender o exercício.
— O exercício é lutar. Eu quero lutar! — indagou.
— Nem tudo se resolve na força bruta — suspirou — Por que é tão insistente?
— Eu preciso fazer minha vida valer a pena.
— Isso você já disse diversas vezes, mas por que? Por que você seria mais importante aqui do que na fazenda com seu pai?
— Pela minha mãe! — respondeu à altura, espantando Suzaki.
— Como assim? — questionou, enquanto o jovem camponês baixou a cabeça e começou a riscar a terra com a espada respondendo:
— Ela morreu no meu parto. Todos disseram que ela devia preservar sua vida, só que ela escolheu morrer por mim. Meu pai acabou por viver às custas dessa tragédia. O problema é que ele se conformou com a fazenda e a forma como os outros olham para nós. Não é justo com ele, nem com ela.
— Pensa que seu pai vive uma vida desonrosa e não quer segui-la?
— Não dá para fugir desse sentimento, eu sei. Mas quer saber, acho que meu pai sabe disso também e me deixa vir aqui todos os dias, porque tenho a chance de ser diferente. Senão todo o sacrifício dos meus pais será em vão — parou de mexer na terra e largou a espada — E você? Você está sempre tenso, e mal fala nada.
— Somos mais parecidos do que imaginei, Yanaho — se deitou voltando os olhos para as estrelas.
— Hã?
— Eu também não conheci minha mãe, e meu pai bom… ele precisa de alguém melhor do que consigo ser para ajudá-lo. Eu penso nisso e tento todos os dias, mas estou tão distante.
— E pensa em desistir? — perguntou repetindo o movimento do companheiro.
— Nunca. Se eu não fizer isso, o que resta para mim?
— Eu também não sei o que vai ser de mim se ficar naquela fazenda mais um minuto sem fazer nada a respeito.
Suzaki voltava a abaixar a cabeça cobrindo a boca com as mãos para esconder a risada com a fala de Yanaho, que formava um sorriso debochado, sabendo que havia provocado aquela reação do príncipe.
— Mas… o que houve com sua mãe?
— Meu pai disse que ela morreu quando eu ainda era novo, disse também que ela sempre vai estar me protegendo de alguma forma — voltou seu olhar para a lâmina ao seu lado deslizando a palma da mão quente sobre o metal frio.
— Meu pai diz que ela está me observando, lá de cima. Por isso costumo conversar com ela as noites — estendeu a mão ao céu noturno, quando percebeu uma estrela alaranjada brilhante — Você já viajou para os outros territórios, né, Suzaki?
— Já.
— E como é lá fora?
— Perigoso.
— Eu sempre quis saber como são os outros povos com outras cores. Os pretos, verdes, amarelos, e os azuis também. Só que meu pai sempre disse que não somos boa companhia pra eles.
— O meu também sempre disse o mesmo. Há um pouco de razão nessa fala. Por onde passei, já me julgaram apenas pela minha cor, mas eu vi pessoas diferentes também.
— É o que eu acho. Até porque como eu, você e Onochi conseguimos conversar?
— Quando encontrei essas pessoas, pensei que me ajudariam em troca de algo que tinha. No final de meu tempo com eles, não tinha nada que pudesse compensá-los de verdade. Eu não sei porque nunca cobraram.
— Pode ser que não tenha a ver com dinheiro ou coisas. Vermelho, azul, amarelo ou branco, todos somos humanos.
— Sim, podemos responder isso! — percebeu Suzaki.
— É mesmo? A resposta está além da luta… Agora entendo o que é os dois vencerem a luta, porque não entendi bem da outra vez — se levantava Yanaho coçando os cabelos.
— E para onde vai agora?
— Pra casa, não posso ficar esperando esse gorducho.
— Espera — chamou atenção do camponês — Foi um prazer te conhecer, Yanaho — estendeu a mão.
— É, meu também — apertavam as mãos — Um dia vou te apresentar para o meu pai para ele ver que tem boa companhia lá fora.
— É, talvez um dia.
Após a breve despedida, Yanaho seguiu caminho com Suzaki acenando por trás. Distante dos olhares do príncipe, o jovem Aka se questionava naquela noite.
— Mãe, isso é ter um amigo?
Ilustradora: Joy (Instagram).
Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.