Volume 1

Prólogo: Monstros na escuridão parte 2…

A tensão era palpável, um frio que não vinha apenas da neblina, mas da certeza do perigo. O estrondo reverberou como o desmoronamento de uma montanha, sacudindo o ar ao redor. 

Foi um som tão profundo e poderoso que pareceu arrancar o chão sob seus pés. A poucos metros, a bruma se rasgou como se golpeada por uma força invisível, e um enorme bloco de pedra despencou do céu, esmagando um dos casebres ao lado. 

Hereni sentiu o coração parar por um instante. Ele só podia rezar para que a casa estivesse vazia.  

O soldado reconheceu imediatamente a origem da pedra. Era uma parte da muralha que protegia a cidade. Seu peito apertou com a conclusão inevitável: a criatura havia rompido as defesas e agora estava dentro da cidade.  

Antes que pudesse processar o pensamento, um silêncio inquietante tomou conta do ambiente, como o instante entre o raio e o trovão. 

Então, um tentáculo colossal emergiu da névoa, rasgando-a com brutalidade. A criatura descomunal revelou uma extremidade espinhosa, quase tão alta quanto uma casa, atravessando a rua como uma muralha viva.  

Era uma visão grotesca. O tentáculo parecia uma massa de carne pulsante, translúcida como gelatina, coberta por espinhos gigantescos que se agitavam com movimentos quase hipnóticos enquanto destruíam os destroços ao redor. 

Os espinhos, longos e ameaçadores, reluziam à luz pálida do luar, cada um mais espesso que o galho de uma árvore.  

Hereni mal conseguiu sussurrar enquanto o terror consumia sua voz.  

— Deus nos ajude.

A criatura ergueu o tentáculo lentamente, como se saboreasse o caos ao seu redor, antes de recuá-lo abruptamente para dentro da neblina, desaparecendo tão repentinamente quanto havia surgido.  

Essa breve pausa na ameaça pareceu inspirar coragem nos moradores. Aproveitando a oportunidade, várias pessoas emergiram de seus esconderijos e correram desesperadamente pelas ruas envoltas na névoa. Passavam pela idosa e pelo soldado sem ao menos notar sua presença.  

Por último, um casal surgiu da direção oposta, envolto em capas que pareciam feitas da mesma pele especial que Zeliudes vestia. 

Diferentemente dos outros, não mostravam sinais de queimaduras ou roupas corroídas pelo éter. Sob a capa, a mulher carregava algo delicadamente.  

Quando se aproximaram, Hereni e Zeliudes notaram o que ela segurava. Era um bebê.  

— Vamos! Não podem ficar aqui — o homem disse com urgência, tentando puxar os dois, mas a idosa resistiu com firmeza, libertando-se com movimentos rápidos. — O monstro do éter está devastando a muralha. Logo, ela vai ceder completamente.  

De repente, gritos ecoaram na névoa densa. Eram gritos de terror, acompanhados por estrondos que sacudiam o chão. 

Algo grande, algo monstruoso, estava destruindo tudo em seu caminho. Outro pedaço da muralha caiu, esmagando uma casa ainda mais próxima, levantando uma nuvem de pó e destroços. 

Hereni olhou para o enorme fragmento de pedra, a voz embargada pelo medo.  

— A muralha deve ter caído... olha o tamanho disso.  

O homem que carregava a capa virou-se para a mulher, um olhar de decisão no rosto.  

— Ainda há pessoas lá. Eu não posso deixar esse monstro invadir completamente a cidade.  

A mulher o agarrou pelo braço, lágrimas escorrendo por seu rosto.  

— Você não vai voltar pra lá!  

Ele acariciou o rosto dela com uma mão calejada, a voz suave e firme.  

— Não se preocupe. Você sabe que eu posso resolver isso.

De sob a capa, ele puxou uma espada, cuja lâmina brilhava vermelho ao luar, quase como se estivesse banhada pelo reflexo de um fogo interno. Para Hereni, parecia uma ilusão da neblina, mas não podia negar a impressão de que aquela arma carregava algo estranho.  

— Vocês ficarão bem aqui. O éter está menos intenso nesta área. Eu sou o único que pode fazer isso.  

Ele olhou nos olhos da mulher com uma intensidade que transmitia tanto amor quanto resignação. Beijou-a com ternura, um momento breve, mas profundo, que parecia encapsular tudo o que restava de sua humanidade em meio ao caos.  

Quando a luz do luar finalmente iluminou o rosto dele, Hereni percebeu algo incomum. Não era medo o que o caracterizava, mas uma calma desconcertante. 

O semblante do homem, com feições exóticas e olhos de um vermelho ardente, parecia quase sobrenatural, e apesar de jovem, seus cabelos escuros tinham algumas mechas totalmente brancas que se destacavam na escuridão.

O homem correu de volta às brumas mortais, enquanto a moça permanecia ali, estática, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Por alguns instantes, ela chorou em silêncio, antes de sussurrar para si mesma:  

— Ele não vai conseguir fazer isso sozinho.  

Determinada, enxugou as lágrimas e se voltou para a idosa ao seu lado, entregando-lhe um bebê envolto em mantas.  

— Preciso ajudá-lo. Cuide do Nimbus até eu voltar. — Seus olhos se fixaram profundamente nos da mulher mais velha, com um brilho de súplica e convicção. Outra lágrima, teimosa, escorreu, e ela a limpou antes de continuar.  

Inclinando-se, beijou demoradamente a testa da criança.  

— A mamãe vai voltar logo. Você ficará bem, meu amor. Estou fazendo isso para que um dia você não precise lutar. — Mais uma vez, encarou a idosa. — Cuide do meu filho. Eu prometo, eu vou voltar. 

Ela retirou um arco debaixo da capa e colocou nele uma flecha com ponta esverdeada. Após um último olhar para o bebê que deixava para trás, correu em direção às brumas, desaparecendo nelas.  

A Tenente Zeliudes segurava o bebê com evidente desconforto, como se temesse machucá-lo. Acostumada à brutalidade do campo de batalha, o gesto exigia mais delicadeza do que ela estava habituada a oferecer.  

— Que bebê lindo… Eu e o Ancon sempre quisemos ter um filho. Pena que seus pais vão voltar logo, não é, pequenino?  

Ela começou a caminhar, afastando-se da neblina, enquanto observava a criança aninhada em seus braços. Mas uma voz hesitante a interrompeu:  

— Senhora… Acho que eles não vão voltar.  

Zeliudes parou abruptamente, girando para encarar o soldado com uma expressão confusa.  

— Do que você está falando, Soldado? Eles estão indo em direção à guarda da cidade. Com certeza os canhões estão atacando o monstro agora mesmo.  

Hereni hesitou, mas apontou para o vazio além da neblina.  

— A senhora está ouvindo os canhões?  

A idosa ficou em silêncio, forçando os ouvidos para captar algum som de batalha. Mas tudo estava mortalmente quieto.  

— É verdade… — murmurou, franzindo a testa. — Por que não estão atacando?  

Hereni pigarreou, parecendo engolir em seco antes de falar.  

— Porque não há mais guarda no portão principal.  

— Como assim? Meu marido está lá!  

— Tenente, fui enviado para escoltá-la até um local seguro. O Comandante Ancon deu essa ordem antes que a sala da guarda fosse destruída e ele fosse levado por um tentáculo espinhento para dentro da neblina.  

O silêncio de Zeliudes foi como uma tempestade contida. Quando finalmente explodiu, o som era de dor e raiva.  

— Malditos ossos moles! — gritou, assustando o bebê em seus braços. A criança começou a chorar, e Zeliudes caiu de joelhos, batendo no chão com o punho cerrado.

— Senhora, não tivemos chance. O monstro sabia exatamente onde atacar. O Comandante liderou o contra-ataque com coragem, mas… — Hereni hesitou, desviando o olhar. — A criatura era implacável. 

Zeliudes murmurou, como se para si mesma:  

— Ele não deveria estar lá hoje. Era minha escala. Ele trocou comigo por causa da minha perna… Era para eu estar morta. 

Hereni baixou a cabeça, mas sua voz permaneceu firme.  

— Sinto muito pela sua perda, mas minha missão é levá-la para um local seguro.  

Ela ergueu os olhos, e o ódio em seu olhar fez Hereni recuar.  

— Missão? Local seguro? Você acha que vou abandonar minha cidade enquanto uma criatura dessas a destrói? — Zeliudes se ergueu, ainda segurando o bebê. — Sua missão é lutar! Reúna quem puder e vá para os canhões na muralha. Isto é uma ordem!  

Sem mais argumentos, Hereni assentiu e correu na direção da muralha.  

Zeliudes permaneceu por um momento, sozinha, encarando o bebê em seus braços. Em seguida, largou a bengala que usava para apoio e, mesmo coxeando, desapareceu em direção ao quartel general da guarda.  

Enquanto isso, Hereni corria pela cidade, desviando de escombros e cadáveres. Compartilhou as ordens que havia recebido com todos os soldados que encontrou pelo caminho e logo formou um pequeno esquadrão. 

Quando finalmente alcançou o topo da muralha, o que viu foi desolador: o portão principal estava completamente destruído, e uma massa colossal de carne gelatinosa e tentáculos espinhentos se agitava furiosamente, varrendo tudo em seu caminho. Árvores, animais e pessoas eram arrancados do solo e sugados para seu estômago pulsante.  

Hereni orientou seu esquadrão e foram operar um dos canhões, o ajustou o canhão, disparando uma lança supersônica que atravessou a criatura. Mas, apesar do impacto, o monstro regenerava-se quase instantaneamente. Outro disparo acertou um dos seus cérebros auxiliares, fazendo o monstro desferir urros ensurdecedores, mas o núcleo principal ainda estava intacto.  

De repente, Hereni avistou um homem correndo sobre a criatura, brandindo uma espada de lâmina vermelha que decepava tentáculos com precisão letal. 

Em uma posição elevada, uma mulher disparava flechas incessantemente, cobrindo o avanço do guerreiro. Hereni sorriu ao reconhecê-los: "Eles não estavam brincando."  

Mas  na sua breve distração, um tentáculo gelatinoso o envolveu, erguendo-o no ar e dilacerando sua perna com espinhos. 

Mesmo na dor, Hereni conseguiu cortar o tentáculo e se libertar, mas a queda foi realmente feia, o soldado despencou e caiu diretamente sobre os destroços de uma casa, a pancada foi tão violenta que ele só notou que estava novamente sendo arrastado por um tentáculo quando, à sua frente, uma cratera recheada com várias fileiras de dentes pontiagudos se agigantava sobre ele. 

Nesse instante, ele deixou de lutar, a dor foi embora e seu corpo se entorpeceu quando entrou em contato com aquela substância viscosa e malcheirosa, e no torpor viscoso e sufocante, ele aceitou seu destino.

⸸ ⸸‌ ⸸‌

Monstro do Éter



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