Volume 1

Prólogo: Monstros na escuridão…

Os sinos da imponente torre de vigia ecoaram pelas muralhas da cidade, arrancando seus habitantes de um sono inquieto. Exceto por Hereni. Ele não dormira naquela noite. Não podia. Pois tinha uma missão a cumprir.

Hereni, já não era apenas um guardião das muralhas. Nesta noite, sua tarefa era diferente: cumprir o último desejo de um moribundo. 

O destino o levava a Juramento, o distrito mais pobre da cidade, onde as esperanças definhavam junto às paredes carcomidas das casas.

A lua cheia reinava sobre o céu com um brilho prateado que rivalizava com os salões dos nobres. Era a chamada "Lua do Caçador", belíssima em sua glória fria, mas um presságio nefasto, o presságio da Ressaca de Éter.

No entanto, o brilho lunar não alcançava as entranhas de Juramento. As ruelas apertadas, flanqueadas por casebres de madeira amontoados, formavam um labirinto sombrio. 

Não havia espaço para que mesmo uma pequena carroça passasse, e as ruas pareciam um túnel eterno. Uma neblina densa, impregnada de éter venenoso, transformava o ar em um sopro mortal e envolvia a favela em um silêncio espectral.

O soldado avançava, sua respiração abafada por um pedaço de tecido improvisado. Acima de sua cabeça, o céu estrelado reluzia, uma promessa distante de liberdade. 

Mas ao seu redor, a realidade era muito mais sombria: moradores saíam às pressas de suas casas, a neblina corroendo a calma dos mais valentes. Gritos desesperados cortavam o ar envenenado enquanto famílias chamavam por seus entes queridos.

— Tenente? Dona Zeliudes? Está aí? — A voz de Hereni ressoou enquanto ele se aproximava de um pequeno palacete que erguia-se ali, destoando de seus vizinhos miseráveis. 

As paredes de pedra caiadas de branco ainda mantinham um ar de dignidade, mas mesmo assim, não passavam de um resquício de nobreza aprisionado em meio à favela.

Passos lentos e vacilantes responderam ao chamado, ecoando no interior da casa. Quando a porta finalmente se abriu, uma figura idosa emergiu. Apesar da fragilidade evidente de seus passos, a mulher exalava uma força ancestral.

— Rápido, Dona Zeliudes, a ressaca de éter está devastadora! A neblina cobriu toda a cidade! — apressou-se o soldado, enquanto a observava ajustar sua bengala com firmeza.

A idosa olhou ao redor com um semblante impassível, observando os moradores fugirem. Seus olhos calculavam o ambiente como os de uma estrategista veterana.

— Meu Deus, as pessoas estão… quase derretendo, — murmurou, quase para si mesma. Essa neblina está especialmente corrosiva hoje.

Apesar da situação desesperadora, havia algo quase desafiador em seu tom.

— O que faz aqui, soldado? Acha que eu não consigo sair sozinha?

— Não, senhora… Digo, não é isso, Tenente! — Ele endireitou-se apressadamente, adotando a postura rígida de um soldado diante de um superior. — O Tenente Ancon me enviou para escoltá-la até o abrigo.

A menção do nome arrancou um sorriso irônico de Zeliudes.

— Aquele velhote tolo, — disse ela, balançando a cabeça. — Sempre tentando me proteger, mesmo agora, depois de tantos anos… Será que ele ainda acha que preciso de sua ajuda?

Realmente a ressaca de éter estava assustadora, a nuvem densa de éter continuava a envolver tudo ao redor. O cheiro ácido fazia Hereni engasgar, mesmo com sua armadura especialmente projetada para resistir ao ambiente hostil. O frio parecia congelar sua própria alma.

E aquela mulher à sua frente, uma senhora de idade, não parecia nem um pouco desconfortável perante a situação, era como se a própria neblina tivesse aprendido a respeitá-la.

O soldado respirou fundo, o ar pesado e corrosivo queimando suas narinas mesmo através da máscara improvisada. Ele lançou um olhar preocupado à velha, que permanecia imóvel, examinando a névoa densa ao redor com a calma de alguém que já havia enfrentado horrores maiores. 

— Vamos, Tenente. O éter está cobrindo toda a cidade. Os soldados abriram as portas do abrigo e ordenaram que todos se refugiassem até que a neblina desaparecesse.  

Ela permaneceu em silêncio, os olhos apertados analisando a neblina tóxica como se pudesse encontrar respostas em seu movimento caótico. Sem reação da parte dela, ele insistiu, agora sentindo a própria pele formigar sob o efeito corrosivo da névoa.  

— Senhora, rápido. O éter está me queimando — disse, a voz tremendo de urgência, enquanto a puxava pelo braço.  

A velha reagiu imediatamente, mas não como ele esperava. Ela se desvencilhou com um movimento brusco, os olhos faiscando em indignação.  

— O que pensa que está fazendo, soldado? — Sua voz cortou como uma lâmina, tão afiada quanto a expressão de reprovação em seu rosto. — Não preciso de um soldado me arrastando para lá e para cá como se eu fosse uma inválida. Da próxima vez que me tocar sem permissão, passará a noite no buque. Entendido?  

O soldado endireitou a postura, constrangido.  

— Sim, senhora — respondeu, quase em um sussurro.  

Ela estreitou os olhos, a expressão endurecendo ainda mais.  

— Não ouvi nada, soldado.  

Ele respirou fundo antes de gritar a plenos pulmões.  

— Sim, senhora!  

A idosa balançou a cabeça com um suspiro de exasperação.  

— Maldição. Não fazem mais soldados como antigamente. Vamos logo, antes que o éter consuma o pouco que resta da sua compostura.  

Eles retomaram a marcha, os passos apressados ecoando pelas ruelas envoltas na neblina. A umidade carregada do ar se infiltrava em suas roupas, gelando a pele e tornando cada movimento mais penoso. 

O silêncio mortal que os cercava era interrompido apenas pelo som abafado de seus passos e pela respiração pesada do soldado.  

De repente, um urro atroz rasgou o silêncio. Um som profundo e reverberante, como o rugido de algo colossal e faminto, emergiu do coração da névoa branca. Ambos pararam por um instante, o soldado sentindo o sangue gelar nas veias. Aquele som era inconfundível.  

Era um monstro do éter.  

Sem trocarem uma palavra, os dois aceleraram o passo. A idosa, mesmo com sua bengala, movia-se com uma rapidez impressionante para alguém de sua idade. 

O jovem soldado a seguia, o coração martelando no peito enquanto o rugido ecoava novamente, agora mais próximo. 

⸸ ⸸‌ ⸸‌



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