Volume 1

Capítulo 1: Anos depois…

Finalmente, o garoto deixou para trás a favela onde morava e alcançou a ampla avenida que levava para fora da cidade. 

Após caminhar algumas centenas de metros, cruzou o portão sob as altas muralhas que protegiam a cidade e seguiu pela enseada por mais de um quilômetro. Ao longe, começou a avistar a multidão reunida no porto. 

Determinado, forçou passagem entre as pessoas para se posicionar o mais próximo possível da beirada e conseguir ver a chegada das naves de um ponto privilegiado. Será que conseguiria?

O menino estava ansioso. Dias atrás, foi anunciado que a frota da 52ª Expedição retornaria naquele dia. Dez naves haviam partido há cerca de um ano, sob ordens do Grande Líder, para buscar suprimentos nos outros continentes. 

A chegada da frota era sempre motivo de grande celebração em Cenferum, reunindo pessoas de todas as localidades em Aldair para recepcionar os bravos tripulantes.

Era uma das raras ocasiões em que tantos se reuniam na beirada, o limite do continente. O porto estava em festa, e a agitação contagiava a todos. 

Empurrando-se entre a multidão, o garoto avançava, trocando empurrões e ofensas no caminho. Reconheceu rostos familiares — colegas de escola que, como ele, sonhavam em explorar o mar de éter e conhecer o mundo. 

Também avistou professores e vizinhos da região do Juramento, um lugar conhecido mais pela ironia de seu nome do que pela honestidade de seus moradores.

Quando finalmente alcançou uma posição próxima o suficiente, mesmo que desconfortável, ele contemplou a vastidão do mar de nuvens. 

O mar de éter era um espetáculo por si só: um oceano de neblina densa e corrosiva, estendendo-se sem fim além do continente. Era ali que se escondiam criaturas monstruosas, que ocasionalmente emergiam durante as ressacas e ameaçavam a orla.

De repente, ao longe, o garoto avistou um pequeno ponto movendo-se rapidamente em direção ao porto. Era uma nave, deslizando sobre o éter. 

Sempre que uma expedição retornava, a nau capitânia liderava o grupo, seguida de perto pelas demais, emergindo juntas da névoa. O garoto se empolgava ao ver todas elas. 

Desta vez, a Brand, a nau mais veloz de Cenferum, vinha à frente. Seu formato peculiar, semelhante a um "sapo atropelado", lhe rendia um apelido carinhoso entre o povo.

A Brand era imponente, com mais de duzentos metros de comprimento. Seu design aerodinâmico, com a proa mais larga e a popa afilada, lembrava uma gota metálica. 

Suas turbinas poderosas, alimentadas por hidrogênio roubado das próprias nuvens de éter, a impulsionavam em alta velocidade pelo éter. 

Quando se aproximou perigosamente da orla, a nave reduziu sua velocidade abruptamente. Dois enormes balões inflaram, sustentando-a enquanto deslizava suavemente em direção ao porto.

Mas algo estava errado. Dez naves haviam partido, e apenas uma retornava. A multidão ficou inquieta. Murmúrios e especulações começaram a ecoar. 

Era inédito uma nave viajar sozinha; as expedições sempre mantinham formação, pois aventurar-se isoladamente era praticamente suicídio. O que teria acontecido?

A Brand atracou, lançando cordas que os trabalhadores do porto usaram para ancorá-la. O silêncio tomou conta do local. As portas se abriram, e carregadores começaram a descarregar fardos e caixas de madeira.

Em seguida, os primeiros membros distintos desembarcaram, recebidos por uma comitiva de oficiais do governo. A distância, protegidos por soldados, tornava impossível identificar os rostos ou ouvir o que diziam. Mas suas expressões falavam por si: agitação, cabeças baixas, lágrimas. Alguns membros da tripulação precisaram ser amparados.

O debate na comitiva foi tenso. Quando as carruagens do alto escalão começaram a deixar o cais, a multidão correu para a avenida principal, ansiosa para vê-las passar.

O garoto também seguiu, intrigado. Apesar da estranheza, era uma oportunidade única de se aproximar dos heróis que desafiavam o éter para trazer mantimentos ao continente.

Entre os empurrões, a esperança do garoto era simples: estar perto da coragem dessas pessoas, talvez absorvê-la de alguma forma. Quem sabe isso o ajudaria a suportar a dura realidade daquele mundo cruel e sem perspectivas.

De repente, ele bateu de frente com uma moça no meio da multidão. Baixa como ele, seu rosto não era dos mais belos, mas tinha um olhar sedutor e lábios carnudos. A menina o encarou e abriu um sorriso falso.

— Oi, Nimbus, parabéns por ter sido selecionado para estudar aqui na escola de Doutores.

— Err… Anabele, eu não vou mais ficar em Aldair. Recusei a vaga. Adeus!

Nimbus virou as costas quase imediatamente, caminhando na direção oposta. A moça ficou ali, estática, com uma expressão confusa, como se não tivesse entendido nada. 

Ele, por sua vez, queria se afastar de vez, não depois de tudo o que havia acontecido. Recusar uma oportunidade que menos de 10% dos estudantes recebiam era um preço pequeno a pagar para deixar aquela cidade e a dor que ela representava.

Após minutos se espremendo na multidão, Nimbus conseguiu finalmente uma boa posição. Podia observar os heróis mais de perto, embora grande parte da comitiva já tivesse passado. 

Ele lamentou não ter visto o capitão da frota ou seus cavaleiros, sempre à frente das caravanas. Restavam apenas carroças quase vazias, carregadores trazendo poucos suprimentos e muitos feridos: alguns em macas, outros com muletas ou braços em tipóias.

Intrigado, resolveu perguntar a alguém.

— O senhor sabe o que aconteceu? Por que só uma nave da expedição voltou? — questionou ele a um homem de meia-idade, com cabelos grisalhos.

— Estão dizendo que foram piratas ou monstros do éter — respondeu o homem, sem sequer olhar para o garoto.

Outro menino próximo de Nimbus interrompeu:

— Ou piratas controlando monstros do éter! Sou Aska, filho do açougueiro. Lembra de mim?

Antes que Nimbus pudesse responder, Aska continuou:

— Dizem que muita coisa não veio ou chegou em pouca quantidade, principalmente as especiarias para criar os remédios raros. Ouvi falar de racionamento… Só temos estoque para alguns meses!

Nimbus observou o garoto. Cabelos e olhos castanhos, aparência típica da região. Era um pouco mais baixo, com cerca de 11 anos, e tinha uma expressão inocente.

— Sim, lembro de você — respondeu Nimbus, tentando manter contato visual. Dona Zeliudes sempre insistia nisso, dizendo que era essencial para transmitir confiança.

— Você é Nimbus, o garoto que dizia querer ser cavaleiro! — Aska abriu um largo sorriso.

Nimbus sentiu a vergonha se aproximar, esperando a provocação usual sobre seu sonho. Preparava-se para sair dali quando Aska o surpreendeu:

— Ei, não vá embora! Eu queria agradecer por aquela vez… Quando você me salvou de levar uma surra.

Nimbus sorriu, agora se recordando.

Dois anos antes, após ouvir histórias inspiradoras de um velho marinheiro, ele havia decidido imitar os cavaleiros heróicos. Num dia particularmente inspirado, viu dois garotos ameaçando outro menor — Aska.

— Meu pai ia pagar depois, mas o seu pai não quis vender fiado! Agora vou apanhar por causa de vocês! — gritou um garoto grande e forte que pressionava Aska contra a parede.

— Vai lá, Roger, bate nesse metido. Só porque é filho do açougueiro acha que pode tudo — provocou Truli, um garoto baixo e rechonchudo.

— Se eu vou apanhar, tu também vai! — Roger empurrou Aska com força, fazendo-o chorar ainda mais.

— Não fiz nada! Quero meu pai! — implorou Aska, soluçando.

— Vamos deixar a cara dele marcada pra ninguém se meter com os Culem — disse Truli, incentivando Roger.

Nimbus, observando a cena, resolveu agir. Era sua chance de ser como os cavaleiros das histórias.

— Deixem o garoto em paz! — disse ele com convicção, surpreendendo até a si mesmo.

— Não é da tua conta! Sai fora, moleque — respondeu Truli, enquanto Roger mantinha Aska preso.

— Eu disse: deixem ele em paz! — repetiu Nimbus, melodramático, largando seus livros como um cavaleiro abandonaria sua capa antes de um duelo.

Truli riu, fechando os punhos.

— Vai correr pra mamãe, é?

Foi a gota d'água. Nimbus disparou contra ele, derrubando-o no chão. Montado sobre Truli, começou a socá-lo com força. Os outros garotos ficaram perplexos.

De repente, Nimbus sentiu mãos ásperas o agarrando pelo pescoço. Roger o puxou com força, afastando-o de cima de Truli, que cambaleava ao se levantar. O canto da boca do garoto sangrava enquanto ele cerrava os punhos e cuspia veneno.

— Tu vai se arrepender disso, moleque.

Truli avançou contra Nimbus e socou sua barriga, uma, duas, três vezes. Roger o empurrou com violência, e Nimbus caiu no chão. Antes que pudesse reagir, os três começaram a chutá-lo, golpes vindo de todas as direções. O garoto se encolheu, protegendo o rosto com os braços, mas o corpo inteiro já ardia.

Os agressores pararam de repente. Uma voz estridente cortou o ar.

— Parem! Vão matar o meu menino!

Dona Zeliudes, idosa e cambaleante, avançava pela rua apoiada em sua bengala. O trio fugiu como ratos ao vê-la se aproximar. Nimbus, cheio de hematomas, tinha o olho inchado e a boca em carne viva, sangrando muito.

— Meu Deus, por que eles estavam te batendo, meu filho? Coitadinho... Olha só, está todo machucado!

Ela se ajoelhou ao lado dele, abraçando-o com cuidado enquanto verificava cada centímetro de seu corpo.

— Eles iam bater num garoto inocente, mamãe — disse Nimbus, com dificuldade. Por sorte, nenhum dente havia sido perdido.

— Mas por que você foi defender ele? Quantas vezes já te falei para não se meter com esse tipo de gente? — Dona Zeliudes tinha um tom piedoso, mas a preocupação era evidente.

— Porque é isso que os cavaleiros fazem. E um dia eu vou ser um cavaleiro.

Aska, que ainda estava ali, observava a cena com olhos arregalados. A fantasia nos olhos de Nimbus parecia irrefutável, mesmo que suas palavras saíssem acompanhadas de sangue.

Depois desse dia, Nimbus passou a dizer a todos que queria se tornar Sãr Nimbus, o caçador de monstros. Mas seus sonhos não duraram. Um velho bêbado destruiu suas esperanças nas ruelas do Juramento.

— Garoto, tu é muito burro. Pra ser cavaleiro, tem que ser treinado desde os cinco anos de idade e também ser do governo ou do partido do Grande Líder. Nunca iriam pegar um favelado como tu. Cai na real.

O bêbado riu alto, cambaleando pela rua, sem perceber as lágrimas escorrendo pelo rosto de Nimbus. O garoto sabia que aquelas palavras tinham um fundo de verdade. Ele jamais seria um cavaleiro. Aquilo não passava de uma fantasia distante.

A partir de então, Nimbus abandonou seus sonhos de cavalaria, mas continuou sendo motivo de piadas, especialmente por causa de Anabele. Ainda assim, uma nova ambição crescia dentro dele. Agora, queria viajar pelo éter.

Sabia que a vida como tripulante de nave seria perigosa. Provavelmente, acumularia cicatrizes e poderia até perder partes do corpo. Mas ele desejava isso. Queria explorar os cantos mais remotos do mundo, como o velho marinheiro que o inspirara. E, um dia, planejava contar suas próprias histórias nas tavernas da vida.

Enquanto relembrava o passado, Nimbus esboçou um sorriso. Lembrou-se de como era bom sonhar. 

— Não esquenta. Sei que, se você estivesse no meu lugar, faria a mesma coisa — disse Nimbus, começando a enrubescer.

— Não mesmo! Tem que ter muita coragem pra enfrentar uns valentões daquele jeito.

Nimbus ficou ainda mais vermelho.

— E também tem que ser muito tolo pra fazer isso! 

Aska caiu na gargalhada, e Nimbus revirou os olhos, desapontado, mas sem perder o sorriso.

Estava claro agora o propósito de Nimbus, mas, com ele, veio mais uma onda de escárnio. Era como se a escola inteira o tivesse perseguido naquele momento, com suas risadas e zombarias. O que mais o corroía, no entanto, era que Aska era mais jovem. Isso significava que sua humilhação seria lembrada por gerações. 

Quantas crianças ainda ouviriam sua história? Quantas ririam dele, o idiota favelado que ousou sonhar em ser cavaleiro? 

Esse pensamento o atormentava, e foi o que firmou sua decisão. Ele partiria de Aldair. Fugiria para o mais longe possível, escapando da sombra do passado e das risadas que o perseguiam. Ele navegaria pelo éter, onde a vastidão do universo seria sua nova morada.

Nimbus se virou e saiu sem dizer nada. O silêncio de seus passos contrastava com o burburinho da favela. Mas, ao partir, ele perdeu algo essencial. Não ficou para ouvir as últimas palavras de Aska.

— A verdade é que tem que ser muito tolo para se tornar um cavaleiro.

A frase escapou como um sussurro, quase como se Aska falasse consigo mesmo. Seu olhar seguiu Nimbus até desaparecer, cheio de algo que ninguém ali reconheceria facilmente: admiração. Ele havia visto um herói, o único em meio àquela favela esquecida por todos.

Com um suspiro, Aska voltou sua atenção para a comitiva fúnebre que encerrava seu desfile melancólico, como um lembrete cruel de que até mesmo os mais fortes são levados pelo tempo.

⸸ ⸸‌ ⸸‌



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