Volume 2
Capítulo 27: Camuflagem
A nave voava acima das nuvens. Os tripulantes estavam todos conectados ao sistema Basilisk, operando em sincronia perfeita.
Do interior, era possível ver o sol mudando de um amarelo-alaranjado para o roxo profundo da lua de Emvhar, enquanto o astro-rei brilhava acima deles e as demais luas cintilavam ao redor.
Kinan e Harkin não se falavam desde o dia em que o príncipe fora deserdado.
Não que isso o preocupasse — mas o silêncio incomodava o velho Thaurion.
Adrien, percebendo o desconforto, iniciou uma conversa mental que logo envolveu todos.
Através da conexão do Basilisk, projetou a imagem das nuvens abaixo diretamente nas mentes da tripulação.
— Sabe, Harkin — falou em pensamento —, eu já devia ter me acostumado com as suas maluquices, mas... como é possível que o Vogel não tenha sombra?
A pergunta despertou curiosidade geral.
Pensamentos se cruzaram pelo elo mental, todos impressionados com a tecnologia e estranhando o fato de nunca terem notado isso antes.
— Seria muito complicado de explicar — respondeu o príncipe.
— Ah, qual é, cara! — Adrien provocou. — Tu não sabe, né?
Mesmo conectado ao Basilisk, Harkin permanecia focado em outra coisa.
Entre todos os ligados ao sistema, apenas ele, Adrien e Kinan mantinham conexão ativa o tempo inteiro — e, ainda assim, o príncipe conseguia realizar outras tarefas enquanto estudava o mapa da ilha à frente.
Sua voz mental soou desinteressada:
—Como eu não saberia idiota? Eu que projetei e construí a nave para entender isso, vocês precisariam de noções básicas de magia espacial... ou dos fundamentos do espaço-tempo.
— Lá vem você com essa merda. — Adrien riu. — Só fala logo, para de enrolar.
Os tripulantes, involuntariamente, responderam juntos — reflexo da ligação mental ainda imperfeita.
O treinamento com o Basilisk não fora suficiente pra evitar o vazamento de pensamentos.
— Você disse pra não fazer perguntas desnecessárias — interveio Russell, formal como sempre.
— E o Kinan não tava no treinamento — rebateu Adrien. — Ele tem o direito de perguntar.
— Eu entendo os fundamentos do espaço — disse o Thaurion, sereno. — Mas explica pros que não entendem.
— Certo. — Harkin assentiu.
Ele estendeu a mão e começou a desenhar com a mana no ar.
Primeiro surgiu a silhueta do Vogel, depois o sol e a superfície abaixo, e por fim um quadriculado envolvendo tudo.
— Isso, senhores, é uma versão absurdamente resumida da explicação. — Harkin manteve o tom calmo. —
Quando falamos em “sombra”, falamos da obstrução da luz causada por um objeto que a absorve ou reflete.
Pra que algo tenha sombra, a luz precisa bater nele e ser refletida ou absorvida.
É esse processo que gera as cores.
Linhas de luz se formaram, simbolizando os raios solares atingindo os objetos.
— A parte da luz que é refletida chega aos olhos, e é assim que vemos as cores.
No caso do Vogel, os raios não são refletidos nem absorvidos — eles simplesmente contornam a estrutura.
Por isso ele não projeta sombra... e nem pode ser visto.
— Tá, mas como isso acontece? — Russell perguntou, confuso.
Harkin deu um meio sorriso.
— Magia espacial.
Existe um campo em volta da nave que distorce a luz, curvando-a pra que passe ao redor do casco — e não através dele.
Ele completou o desenho no ar: o Vogel envolto por linhas curvas, mostrando a distorção da luz.
— Isso não deixaria uma bolha visível em volta da nave? — questionou um dos soldados.
— Pra entrar nesse assunto, eu precisaria de umas boas aulas extras... — respondeu o príncipe. —
Que eu até daria, se voltarmos vivos.
Mas o tempo de conversa acabou.
Harkin apontou para o horizonte.
Uma ilha começava a surgir entre as nuvens.
De imediato, todos se aprumaram, assumindo os postos e ativando os protocolos.
— Distância estimada: seiscentas e vinte e uma milhas.
Iniciando descida para altitude de cem pés — anunciou Russell.
Harkin levantou-se, ajustando a armadura e dando as ordens com voz firme:
— Iniciar protocolo de emissão zero.
Ativar runas de controle e estabilidade.
A partir de agora, vamos flutuar até o ponto de desembarque.
Tempo estimado até a chegada?
— Dez minutos, senhor.
— Ótimo. Segunda Divisão, montem os trajes de descida e se equipem.
Em sete minutos quero todo mundo pronto.
— Finalmente vamos sair dessa coisa! Três dias sem respirar ar livre! — reclamou Adrien, ajustando os últimos encaixes de sua armadura.
Os outros o ignoraram e continuaram se aprontando.
À frente de todos, a armadura de Harkin começou a se mover — um metal vivo, fluido, subindo pelos ombros e pescoço até formar um elmo que cobriu por completo a cabeça.
No lugar dos olhos, duas luzes roxas intensas brilharam, com linhas da mesma cor percorrendo cada junção da armadura.
A voz dele saiu mais grave, distorcida pelo modulador interno:
— Não esqueçam de ativar o elmo. Quero todos prontos.
Iremos iniciar a operação em camuflagem total.
Kinan arqueou as orelhas ao ouvir aquilo e respondeu, firme:
— Eu não vou usar essa armadura sua.
— Então fica na nave — retrucou Harkin. — Você está aqui pra acompanhar e garantir que, se algo der errado, a gente ainda tenha uma rota de fuga... ou pelo menos um sobrevivente.
— Você me culpa, jovem mestre? — perguntou o velho Thaurion, com um leve pesar na voz. — Eu irei te acompanhar.
— Te culpar pelo quê, velhote? — Harkin riu. — Eu tô sendo realista. Isso é uma operação secreta, e mesmo com o meu traje, diferente do Adrien, você é quase um transcendental — se não for um. Eu não conseguiria ocultar nem a sua aura, quanto mais a sua mana, a única a opção é a nave.
Kinan percebeu que Harkin não estava irritado. O vínculo entre os dois permanecia intacto, mesmo após as brigas recentes. O príncipe caminhou até ele e pousou a mão em seu ombro. O elmo se retraiu, revelando o sorriso de Harkin.
— Vai ficar tudo bem. Só fica dentro da nave, a postos, ok?
Kinan o abraçou com força, e Harkin retribuiu o gesto. Adrien sorriu com a cena e ativou seu próprio elmo. Os sete minutos se passaram depressa, e quando o visor do Vogel se abriu, a ilha já surgia à frente — imensa, envolta por nuvens e brumas douradas.
— Chegamos, capitão — anunciou Adrien.
— Adrien, assuma a formação. — Harkin soltou o abraço, e o elmo voltou a se fechar, ocultando o rosto.
Kinan segurou o braço dele por um instante.
— Se cuida, garoto. Eu já vivi demais. Não quero perder a última família que tenho.
— Pode deixar — respondeu o príncipe, firme.
A rampa de desembarque abriu em silêncio profundo
Harkin observou a formação ao seu lado: doze homens o acompanhariam, além de Adrien.O grupo incluía Russell, comandante da Segunda Divisão, cinco soldados sob seu comando, três navegadores da Nona e três técnicos da Terceira.
Abaixo deles, a visão da ilha se revelou em toda a sua extensão — vasta, do tamanho de um pequeno país. De cima, podiam ver o pico central elevando-se acima da neblina, enquanto os penhascos se estendiam até encontrar o mar. Não havia praias — apenas rocha viva e falésias cortadas pelo vento.
— A partir de agora, a comunicação será apenas pelo Basilisk — anunciou Harkin. —Atenção máxima, senhores. Russell, como no treinamento, você é o segundo-tenente, Adrien, o primeiro e eu o capitão. Entendido?
— SIM, SENHOR! — a resposta uníssona ecoou pela conexão mental, como um trovão.
Harkin sorriu sob o elmo.
— Perfeito.
Vamos descobrir o que diabos tem de errado nessa iilha.
Nos primeiros passos a fauna e flora pareciam intocadas; o lugar era totalmente dominado pela natureza, uma floresta densa com árvores tão grandes quanto os arranha-céus de Nierr'Dhalar. A luz passava por pequenas frestas e algumas clareiras que se formavam. Para a surpresa de Harkin, eles deram de cara com um rio que se estendia dividindo a floresta e uma pequena planície.
— Capitão? — um dos soldados perguntou.
— Sim?
— O que exatamente estamos procurando? Nós fizemos o treinamento para usar essa armadura e tudo mais, mas não sabemos realmente o que procurar.
As emoções de concordância dos soldados explodiram na rede do Basilisk. Harkin piscou algumas vezes.
“Essa quantidade de informação tá começando a me irritar… mas não é culpa deles. Pouco tempo pra controlar algo tão complexo. Tenho é que agradecer por terem se desenvolvido tão bem.”
— Anomalias — ele respondeu, segurando seus pensamentos — Nossos trajes estão equipados com sensores que podem detectar rastros de energia de até dois anos. As anomalias que procuramos têm um rastro bem específico, então configurei para que, assim que encontrarmos algo do tipo, os sensores dispa…
No momento exato, os sensores entraram em ação. Os visores ficaram com uma faixa de aviso vermelha e um alerta sonoro explodiu na rede, avisando que a assinatura energética fora reconhecida.
— Acho que seu timing nunca foi tão bom quanto agora. — Adrien falou para Harkin. Mesmo com o traje cobrindo o rosto, ele podia sentir o sarcasmo e a ironia que acompanhavam a resposta.
— Puta que pariu! Você tem razão, nem deu pra perceber pelo aviso.
Os soldados riram e Harkin voltou ao modo sério. Seu visor expandiu o alcance e trocou várias vezes a luz identificadora até que mais e mais rastros começaram a ficar visíveis. Depois de achar a frequência certa, os visores de todos se ajustaram.
— Capitão, o que estamos vendo? — Russell perguntou.
— Aparentemente múltiplos sinais de assinatura.
Pulando por cima do rio, todos notaram de cara que a outra margem era totalmente diferente: plantas desconhecidas, algumas com cores vibrantes, outras crescendo com espinhos metálicos, mas todas claramente anormais — e definitivamente não eram de nenhum outro lugar do planeta.
Eles caminharam mais um pouco e começaram a sentir que a mana daquele lugar era diferente. As plantas não tinham a característica de mana natural, e as pegadas de animais eram carregadas da mesma aura. Tudo parecia uma versão alienígena do que eles conheciam.
— Isso tá estranho, Harkin — Adrien falou — Eu sei que sou novo nessa parada de poder acima da média…
— Mas… — completou o capitão.
— Meus sentidos sempre foram aguçados, antes dos sentinelas. Depois ficaram melhores. E agora que eu nem sei se ainda sou humano, parece que tem uma colmeia zunindo no meu cérebro.
Harkin continuou analisando tudo — plantas pequenas, insetos, a própria terra.
— Adrien tem um ponto… essa porra tá toda bagunçada. É quase como quando senti a ressonância do poder do velho.
Colocando os pensamentos de lado, ele seguiu. Não demorou muito até que encontrassem um colosso vegetal distante na planície por onde estavam caminhando.
— O que é aquilo?
— Uma árvore, Russell — Adrien respondeu.
— Jura? Quase não deu pra perceber.
— Acredito que o que ele quis dizer é: por que tem um monólito vivo que estamos vendo de longe, que não do alto? — um dos soldados comentou.
— Vogel, na escuta? — Harkin perguntou pelo Basilisk.
— Com interferência desde que vocês adentraram a área central da ilha.
— A que altitude a nave está?
— Dez mil pés.
— Vocês vêem esse tronco ciclópico?
— Não, senhor.
Depois da resposta, Harkin ordenou que todos parassem. Por alguns segundos, a linha ficou silenciosa e todos entraram em alerta. O silêncio do capitão deixou o grupo inquieto.
Em sua mente, ele tentava entender — milhões de linhas de raciocínio se conectavam e se quebravam, formando novas hipóteses e ideias. O motor mental dele só parou quando ouviu Kinan:
— Garoto, o que exatamente está vendo?
— Estamos em uma planície. Todos vemos a mesma coisa: uma árvore imensa no que aparenta ser o centro da ilha.
— E todos veem a mesma coisa?
— Sim — a resposta coletiva veio.
— O que vocês veem, Kinan?
— Nada. Os sensores indicam que vocês estão andando há horas e mais próximos da área central, e com a interferência não conseguimos ver o que você vêem. Só mata fechada e densa.
— O centro… — Harkin respondeu, começando a ter uma ideia do que estava acontecendo — Antes de abaixarmos a altitude e antes de cruzarmos o rio, havia uma montanha visível de longe no centro. Mas nos últimos minutos ela desapareceu. Eu imaginei que fosse miragem ou algo no terreno… você vê essa montanha, Kinan?
— Nitidamente. Mas nenhuma árvore.
Harkin suspirou fundo e sinalizou aos outros que ficassem tranquilos.
— Kinan, o operador mencionou a interferência mais cedo. Descreva.
— Suas vozes estão distorcidas e chiando. Como isso é possível? Eu achei que esse troço fosse literalmente transmitir seus pensamentos.
— Como você reconheceu que era o capitão?
— A arrogância no tom de voz dele é impossível de confundir.
Harkin ajustou o terminal do traje, reconfigurou o Basilisk e a voz dele saiu normal para Kinan:
— Ainda tem interferência?
— Negativo.
— Bom. Kinan, preciso que você abaixe o Vogel para setecentos pés.
Sem resposta — apenas a presença da nave se aproximando, uma onda de luz iridescente atravessou os visores — como se a realidade piscasse. O ar vibrou. A nave tremeu. Um zunido grave atravessou a embarcação, por um segundo parecia que tudo ia se destruir, até que parou e a luz enfraqueceu dando forma a paisagem que o capitão descreveu.
— O que foi isso, garoto?
— A confirmação que precisávamos. Tenta subir agora.
A nave cessou a descida e voltou a subir. Contrário do que todos imaginavam, o cenário não mudou. Subiram mais e mais, quebrando os dez mil pés, e ainda assim nada mudava.
— O que tá acontecendo?
— Isso, senhores, é algo que eu não achei que fosse possível. Estamos dentro de uma matriz de mana natural.
— Uma o quê?
— Matriz de mana natural, Adrien. Uma quantidade absurda de mana se reuniu aqui a ponto do ambiente condensar uma matriz que faz parecer que estamos em dois lugares diferentes… ou até em uma ilusão. Depois que você entra nela, é impossível sair sem atender certas condições.
— Que seriam?
— Quebrar por força bruta ou encontrar o núcleo da matriz. E, a menos que algum de nós seja um transcendental, a primeira opção é impossível.
— E por que mandar o Vogel descer até aqui então?
— Porque precisamos dos sensores. Equipe de navegação: leituras do ambiente agora. Analisem por camadas de energia. Quero o fluxo de mana.
— Convergindo para a localização da árvore.
— Ótimo. Achamos o núcleo.
— E a missão? — Russell perguntou.
— Voltar vivos é mais importante. Além disso, mesmo com um arranjo natural, essas plantas estão adulteradas e a mana do lugar está longe de ser natural— o que indica que algo ou alguém alterou tudo aqui por debaixo dos narizes dos líderes mundiais.
— Como ninguém percebeu essa matriz antes?
— Porque só é perceptível estando dentro dela.
— Mas é uma ilusão, não é?
— Nesse caso não, meus amigos. Estamos oficialmente em um subespaço criado pela matriz.
— Puta que pariu, tu é nerd demais.
— Eu sou, Adrien.
Os soldados riram dos dois. Mesmo presos, invadidos e cercados por um ambiente desconhecido, os dois ainda conseguiam contagiar o grupo com alguma leveza.
— Bom, senhores — falou o capitão num tom de negócios — nosso objetivo não se perdeu. Pelo contrário: duas etapas já foram concluídas.
Primeiro: descobrimos que existe algo errado com essa ilha.
Segundo: existe interferência externa no ambiente.
E isso nos leva ao terceiro e mais importante objetivo: coletar o máximo de informações possível. Entendido?
— Sim, senhor!
— Ótimo. Kinan, temos sinais de vida à frente?
— Vários, mas nada que pareça remotamente fora do normal. Os animais com certeza não são normais, mas fora isso, nada demais.
— Perfeito. Isso não significa que estamos sozinhos. Camuflagem permanece online. Agora… vamos encontrar quem é o lunático que fez isso.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios