Volume 2
Capítulo 10: Alinhamento.
Em terra, no desembarque de Ramod Nat'aivel, Gabriela, Adrien e Jeff saíam da verificação de identidade conduzida pelos oficiais do porto, procurando algum sinal de quem seria a carona que os aguardava.
— O Harkin não disse que arranjou uma carona? — perguntou Gabriela.
Antes que Jeff pudesse responder, Sputnik surgiu à frente deles, assustando a dama e ativando os instintos dos dois guardas. Jeff puxou Gabriela para trás, enquanto Adrien já estava com uma claymore encostada no pescoço do intruso. A arma exalava a imponência de uma lâmina que já superara inúmeras batalhas.
— Eu recomendo muito cuidado com seus próximos passos, meu amigo — disse Gabriela, fria.
Sputnik recuou devagar, com movimentos suaves e sem demonstrar ameaça. Então, fez uma reverência formal, no estilo clássico dos mordomos:
— Mil perdões pelo susto. Não foi minha intenção causar tal impressão em nosso primeiro encontro. Creio que o jovem mestre Harkin os avisou da minha chegada?
— Avisou quem, cara? Quem é você? — questionou Adrien, tenso.
— Meu nome é Sputnik, senhorita Gabriela. Fui instruído a verificar as identidades de vocês... e a testar os reflexos dos seus guardas — respondeu ele, dirigindo-se a Gabriela sem sequer lançar um olhar aos outros dois.
— Ah, é? Instruído por quem, exatamente? Eu nem sei quem é esse tal de Harkin. E não conheço nenhuma Gabriela — retrucou Adrien, irritado.
Com a mesma calma, Sputnik ajustou o paletó, retirou um cartão do bolso — o mesmo que Harkin havia lhe dado — e o apresentou.
— Acredito que isso basta para provar que não sou um invasor com más intenções. E, como a senhorita e seus guardas devem saber, não seria possível tomar algo assim de seu irmão à força. Portanto, peço que não insulte minha capacidade... nem a inteligência de quem me comanda com esse tipo de teatrinho.
— Então ele já arrumou um cachorrinho leal? — ironizou Adrien.
— Temo que não. Quem solicitou o teste dos guardas foi o mestre Solomon. O jovem mestre apenas me encarregou de buscá-los e entregar o cartão. E por sinal esse cachorro enraivecido fala por você senhorita?
O aperto no cabo da espada de Adrien foi tão forte que deu para ouvir de longe. Antes que ele atacasse o mordomo Gabriela cortou a tensão perguntando:
— E pra quê, exatamente?
— Ele disse que era provável que a senhorita estivesse com fome.
Gabriela observou o cartão à distância e reconheceu o símbolo do Banco Real, junto à uva entalhada. Isso a fez baixar levemente a guarda e se aproximar, apesar da resistência de Jeff e Adrien. Tomou o cartão das mãos do mordomo.
— É do Harkin. Veja — disse, entregando-o a Jeff, que reconheceu imediatamente.
— Provavelmente ele achou que você esqueceria o seu de novo.
— Tanto faz... Vamos logo pra onde precisamos ir. Preciso de um veículo.
— Não se preocupe. Vim com um carro. Vou levá-los até a mansão do jovem mestre.
— Mansão?
— Sim. A mansão e alojamento do mestre. Será o lar de vocês enquanto estiverem no Império.
— Ok... é muita informação pra processar. Mas ele acertou: eu tô com fome. E comida de graça é sempre mais gostosa.
— Sendo assim, foi bom que me preparei com antecedência. Podem me acompanhar?
Quando Gabriela se juntou à Sputnik, Adrien já havia recolhido a claymore. A grande espada pareceu se despedaçar no ar e um bracelete surgiu na mão da espada de Adrien. Ele se ajeitou ao lado de Jeff na retaguarda, observando tudo com o olhar afiado — atento até aos fios de cabelo que flutuavam no ar.
— Jeff?
— Oi?
— Você percebeu, não foi?
— Sim... eu não senti nada vindo daquele cara.
— Por que o Harkin mandaria ele? Com nós dois aqui? Isso é ofensivo. Inapropriado.
— Guarda isso pra você. Se esse cara for quem eu tô pensando... foi o melhor movimento daquele idiota.
— E se passou despercebido por ele?
— Você já entende o Harkin quase tão bem quanto eu. Quando foi a última vez que aquele bastardo fez algo sem pensar... ou deixou passar alguma coisa?
— Você tem um ponto. Mas por que enviar um assassino como escolta?
— Se eu tentar pensar como ele, vou acabar ficando tão louco quanto. Vamos imaginar que é porque esse cara tem sentidos mais aguçados. Detectar uma ameaça antes que ela apareça... nem eu, nem você somos capazes disso. Mas ele é.
— Eu posso não ser mago, mas meus sentidos são apurados.
— Iguais aos dele?
Adrien abriu a boca para responder, mas nenhuma palavra saiu. Quando o silêncio se prolongou, Jeff continuou:
— Não me entenda mal, garoto. Você é capaz — mais do que muitos magos que eu conheço, mas tudo tem seus limites. Concentre-se em ficar melhor naquilo em que já é bom.
— Certo...
— Se tudo correr bem, você vai evoluir. O novo brinquedinho do Harkin vai ser... especial. Principalmente pros sentinelas.
— Isso se ele compartilhar comigo.
— Ele vai.
— Como pode ter tanta certeza?
— Só a Gabriela conhece ele melhor do que eu. Eu sei que ele vai.
— Tá...
Mais à frente, Sputnik indicou o carro:
— Aquele é nosso veículo. Assim que as malas forem guardadas, estaremos prontos para partir.
— E minha comida? — reclamou Gabriela, com um leve tom de braveza.
— O melhor restaurante do porto está no caminho da saída. Acredito que seja o melhor trajeto... e a melhor comida — respondeu o motorista. Diante da expressão impassível da jovem, completou: — E também é o mais caro. Creio que seja uma forma eficaz de atingir o bolso de seu irmão, minha lady.
"Esse cara tá tentando puxar meu saco... Não gosto disso. Mas vai ser divertido ver o Harkin reclamando um pouco."
— Certo. Vamos seguir com seu arranjo, então.
Jeff e Adrien sabiam que se opor não traria nenhum benefício. Trocaram olhares, deram de ombros e seguiram para o carro, que partiu assim que tudo foi carregado.
Além dos corredores de Eldravel, no centro do palácio, onde se dividia a parte residencial, o Imperador Eiden estava de frente para uma bela mulher de longos cabelos prateados e olhos cinzentos. Nem todas as luas de Nexus poderiam rivalizar com sua beleza. Mesmo que o tempo tivesse deixado marcas discretas, ainda se podia contar nos dedos quantas mulheres se igualavam a ela.
— Eu tô tornando sua vida um inferno, não tô? — perguntou Eiden.
A mulher à sua frente riu levemente.
— Querido, estamos casados há quinhentos anos. Já me acostumei com esse tipo de coisa.
O semblante dele se entristeceu com a resposta da esposa.
— Não faça essa cara, meu amor. Não digo isso pra te entristecer. É apenas um fato. Ser a mulher do homem mais poderoso do mundo tem muitos benefícios… mas também tem muitos malefícios. Eu só aprendi a lidar com ambos. E não te culpo por nada.
— Jeanne, eu não sei como teria conseguido sem você.
— Você provavelmente não teria conseguido… Enfim, quando vou conhecer seu filho?
Eiden se tranquilizou ao perceber que a imperatriz não estava ressentida com a chegada de Harkin. Apesar das circunstâncias, aquele era um assunto que poderia ter abalado seu casamento.
— O garoto é complicado. E eu tenho a leve impressão de que ele me odeia.
— Hahaha... Querido, pelo que ouvi sobre ele, ele não te odeia. Ele te ressente. E não só a você — acredito que ele ressente a mãe dele também… e todo o resto da família biológica.
— É uma possibilidade… E eu não posso julgá-lo. Da perspectiva dele, foi largado sozinho.
— Sim. E a única família que teve morreu. Sobrou só a garota...
— Sim...
Jeanne percebeu a culpa crescendo no olhar do marido. Aproximou-se, sentou-se em seu colo e passou a mão pelos cabelos dele.
— Não dá pra consertar o que já foi quebrado, amor. Mas a gente pode tentar resolver, juntos. Igual sempre fizemos. Eu posso não ser um semideus como você... mas dei à luz e criei seus filhos. Quando o assunto é família, eu sou muito mais forte que você.
Eiden riu, pousando a mão na cintura dela.
— Bem... E o que minha expert em assuntos familiares sugere?
— Deixa comigo, ok?
“O Harkin não atacaria a Jeanne. E ela é bem mais esperta que ele… não tenho nada a perder. Se isso ajudar o moleque a se aproximar — e quem sabe até me ajudar —, só tenho a ganhar...” — pensava Eiden.
— Eiden Visra Empera, eu não sou seu peão. E Harkin é seu filho — não uma arma pra você usar. Entendeu?
“O que eu tava pensando…” — o imperador riu, já sabendo que sua esposa leria seus pensamentos.
— Ok, querida. Desculpa. Não foi minha intenção. É que esse moleque pensa dois ou três passos à minha frente. Se eu não me preparar, podemos ter problemas.
— Como eu disse: deixa isso comigo. Agora me dá um beijo antes de eu ir falar com ele.
— Às suas ordens, madame. E boa sorte. Você vai precisar.
Após um beijo carinhoso, a imperatriz se retirou da residência real. Eiden permaneceu alguns segundos imóvel na cadeira, até que se levantou e foi até o telhado de Eldravel.
A vista era magnífica. Dali, era possível ver toda a Acrópole, a borda do Lago Memorial e a capital se estendendo pelos canais que percorriam o Império.
Ele contemplava a grandiosidade de séculos de trabalho — seu e de todos que o apoiaram desde antes dos 600 anos de reinado absoluto.
— Já faz tempo... Será que está chegando nossa hora de passar o bastão, velho amigo?
— Talvez. Eu ainda posso viver mais uns 300 anos com saúde... mas você, existe algum limite pra sua vida? — disse Kaius, surgindo ao seu lado enquanto levitava com calma.
— Antes de eu enlouquecer? Talvez mais uns mil. Agora... sem contar a saúde mental, talvez só meu pai possa responder essa pergunta.
— Já faz mais de um milênio, Eiden. Você precisa se perdoar em algum momento.
— Quem sabe… Ele deveria ser imortal. Hoje entendo que sacrificou o tempo de vida dele pra não ter que me matar. E no fim, eu provei que ele estava certo. Juntos construímos outro balanço delicado no mundo.
— Mas não estamos presos a ele. Eu entendo seu remorso... mas como Haolin te disse: “Pelo menos podemos escolher ser parte disso agora.”
— Talvez. Só o tempo vai dizer. E, graças à minha tia, tempo é a única coisa que eu sempre vou ter de sobra.
— Eternidade... — murmurou Kaius, com a voz rouca, enquanto observavam o horizonte.
Ambos olhavam além das fronteiras da capital. A visão de Kaius não era tão apurada quanto a de Eiden, mas ainda conseguia enxergar os mares tocando a costa de uma ilha distante, no fim do mar imperial.
Naquela praia, os cabelos rubros de Morgana balançavam com o vento, enquanto ela construía quatro tronos — um de frente para o outro.
Ainda observando, Eiden perguntou a Kaius:
— Você vai vir? Erik já está de volta. Com ele e Markus aqui, a capital está segura.
— O moleque já voltou... e nem veio me ver?
— Não cobra tanto dele. Vai ou não?
— É claro que vou.
— Ótimo.
Eiden ergueu a mão — e então, trovões começaram a riscar o céu, mesmo sem nuvens. Um raio desceu sobre os dois, envolvendo-os em uma espiral de luz intensa.
Por um breve instante, tudo se apagou.
Não havia som, nem chão, nem tempo. Apenas o calor da energia pura os atravessando — e, num piscar de olhos, foram tomados pela luz, lançados pelo céu como fragmentos de um relâmpago rumo ao seu destino
Morgana se ajeitava em um dos tronos que havia construído. Ao perceber os trovões se formando no horizonte, ela soube: o imperador estava vindo.
— Melhor fazer mais uma cadeira. Pelo jeito, o Kaius tá vindo junto... Eiden ainda é uma criança que precisa de babá — murmurou em voz alta.
Com um gesto, moldou uma quinta e uma sexta cadeira, ajustando as proporções até formar um círculo completo.
— Pode sair, você e seu convidado, Eros.
— Já havia nos percebido há muito tempo, não? — disse um homem velho, trajando um belo terno, ao lado de uma figura andrógina em armadura completa. Ambos surgiram da vegetação atrás de Morgana.
— Seus métodos foram sutis, mas ainda assim perceptíveis. Além disso, é difícil esconder a aura de um Junkai.
— Hum... de fato, meu colega não passa despercebido.
Sem cerimônia, os dois se sentaram nos tronos à esquerda de Morgana.
— Então, algo novo está acontecendo em Nerio?
— Assim que os outros chegarem, você saberá.
— Ter que esperar o imperador é tedioso...
— Aparentemente, seu velho amigo virá junto.
— Velho amigo?
— Não você, Eros... Mas o seu amigo — ou amiga — de armadura. Vultor está acompanhando Eiden.
A aura ao redor da figura encapuzada oscilou violentamente, distorcendo o espaço ao redor. O descontrole momentâneo foi tão intenso que todos os pássaros da ilha voaram para longe.
— Achei que a paz fosse o motivo para continuarmos com esses encontros das nações aliadas — alfinetou Morgana, com um meio sorriso.
A figura virou-se para ela. Mesmo com o rosto oculto, o desprezo era palpável. Quando falou, a distorção da voz não foi suficiente para mascarar o veneno no tom:
— E é. Vocês só ainda existem pelo bem do mundo. Minha raça despreza Vultor até o fundo da alma. E se continuar assim, você também não será excluída, Bruxa Vermelha.
— Tenta a sorte, pessoinha da lua. Eu adoraria ver o seu pior — retrucou Morgana, com sarcasmo. — Mas, por mais que isso fosse divertido, nossos convidados do mar chegaram.
— O quê? — indagou Eros, surpreso.
Morgana não respondeu. O som da água borbulhando foi suficiente.
Emergindo do mar, um colosso cintilante de metal surgiu. Seu corpo era coberto por inscrições rúnicas e curvas suaves. Sirenes soaram, sinalizando a abertura das portas.
Da escotilha principal, uma mulher desceu calmamente até a areia. Tinha cabelos curtos e usava um sobretudo militar com as insígnias da marinha de Nierr’Dhalar.
— Vejo que a líder das Âncoras ainda conserva sua pose de guerreira imbatível — disse Eros, com um sorriso cínico.
— E vejo que o presidente da Confederação não mudou nada. Os anos te fazem bem — respondeu ela, sentando-se em seu trono.
— A Rainha Vermelha continua bela como sempre. Uma pena sua beleza não alcançar a minha proa.
— Acredito que esse tipo de comentário seja um tanto inapropriado para a almirante de Drenn’Mokh... ainda mais em um evento diplomático — cortou Morgana, seca.
— Não pode me culpar por tentar.
— Não. De fato, sou bela demais. Mas você precisaria de um belo pau pra me agradar — e duvido que tenha um.
— Eu poderia te surpreender...
— Macacos subdesenvolvidos — resmungou a figura de voz distorcida.
— Não ligue pra ele, querida — disse Morgana à almirante da potência comercial. — Posso pensar em algo no futuro. Mas vamos parar por aqui... Os últimos representantes chegaram. E ele vai se exibir, como sempre.
No exato momento em que terminou a frase, um vórtice de poeira se formou no alto. Um relâmpago caiu sobre os dois tronos ainda vazios. A luz era intensa o suficiente para cegar qualquer um que ousasse olhar diretamente. O estrondo que se seguiu seria o último som ouvido por tímpanos despreparados.
Galante e sem qualquer cerimônia, Eiden e Kaius estavam sentados, observando os demais. Os olhos do imperador dissipavam os resquícios de energia da travessia enquanto ele falava:
— Desculpem o atraso. Podemos começar?
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