Volume 1: Sangue e Promessas.

Capítulo 14: Um novo Eu

— NÃÃÃOOOO!

 

O grito ecoou com força.

 

Harkin e Gabriela gritaram juntos, a dor fundida num som que parecia rasgar o ar.

 

Soluços vieram em seguida, e o choro dos dois foi alto, cru, incontrolável.

 

Os corpos tremiam, os rostos se contraíam, e Harkin, suspenso pelas correntes, se debatia com desespero.

 

Seus pulsos começaram a sangrar.

 

— Sabe, moleque... — a voz de Demétrius veio fria e irritada. — Eu ia te dar uma chance. Mas o merda do seu irmão colocou tudo a perder ao insultar minha honra.

 

— VOCÊ É UM CANALHA SEM CORAÇÃO! VAI QUEIMAR NO INFERNO PELA SUA CRUELDADE! — Gabriela gritou, a garganta já rouca.

 

Ela tentou avançar, mas foi contida brutalmente.

 

Seis homens a seguravam. Seis.

 

Para conter uma garota que, para o mundo, seria vista como frágil.

 

Mesmo assim, ela quase se libertava.

 

Demétrius se aproximou dela.

 

Sem hesitar, a estapeou com força.

 

— Eu não ia fazer nada com você... — disse, tragando o cigarro com desdém — mas já que você vai virar uma puta qualquer das favelas, melhor se acostumar logo com a nova realidade.

 

Ele virou-se para os homens que a imobilizavam.

 

— Cuidem dela. Vocês seis primeiro. Depois... todos. Em revezamento. Até que ela implore pela morte.

 

Os homens hesitaram.

 

Mesmo entre criminosos, a ordem parecia um abismo.

 

Mas ao receberem o olhar de Demétrius...

 

obedeceram.

 

— Obedeçam. Ou sofram.

 

Eiden, vivendo a memória, sentia o nó crescer em sua garganta.

 

Mas ele não era Eiden, agora.

 

Era Harkin.

 

E Harkin despertou.

 

Algo dentro dele mudou.

 

Os olhos ainda estavam baixos, mas o tom da voz mudou completamente.

 

— Se a soltarem agora… eu não mato vocês.

 

A voz era calma. Seria até gentil, não fosse o peso inumano que a acompanhava.

 

Os homens pararam.

 

Não por piedade.

 

Mas por medo.

 

Medo verdadeiro.

 

Demétrius se irritou ao ver os capangas congelados.

 

— CONTINUEM, IDIOTAS! VÃO TEMER UM GAROTO DE ONZE ANOS AMARRADO?!

 

Mas era tarde demais.

 

O chão sob Harkin começou a aquecer.

 

Os ventos ao redor se intensificaram.

 

As primeiras gotas de chuva começaram a cair — mas evaporavam ao tocá-lo.

 

Seu corpo vibrava.

 

O cabelo começou a mudar de cor, ganhando tons de cobre em brasa.

 

Os olhos brilharam em púrpura.

 

Os homens recuaram um passo.

 

— IDIOTAS, PARARAM DE NOVO POR QUÊ?!

 

Mas agora ninguém respondia.

 

Armas foram erguidas.

 

Os homens entraram em formação defensiva ao redor de Demétrius.

 

Demétrius ainda não entendia.

 

Mas o garoto acorrentado à sua frente não era mais só um garoto.

 

Era uma tempestade prestes a cair.

 

As correntes que prendiam Harkin começaram a se contorcer, aquecendo até se tornarem incandescentes.

 

Com um estalo metálico, elas derreteram, escorrendo como chumbo liquefeito.

 

As feridas em seus pulsos arderam... e depois sumiram.

 

A carne queimar e se fechar ao mesmo tempo, deixando a pele renovada, sem cicatrizes.

 

Seus olhos brilhavam como o sol ao meio-dia.

 

Num instante, ele desapareceu.

 

No seguinte, Demétrius voava pelo pátio, arremessado como uma folha por uma tempestade.

 

Os guardas entraram em pânico.

 

Um deles sacou a espada, tentando decapitar o garoto no impulso...

 

Mas Harkin já não estava mais ali.

 

Ele surgiu ao lado de Gabriela, pegando-a nos braços, e num sopro de vento a levou para junto do corpo de Edgar.

 

Gabriela o encarou.

 

Os olhos de Harkin estavam irreconhecíveis.

 

Aquilo não era mais um irmão...

 

Era uma fera.

 

Um ser tomado por pura fúria.

 

Sumindo da visão outra vez, ele reapareceu entre os seis homens que a haviam prendido.

 

E os destruiu.

 

Com as mãos.

 

A garganta de um deles foi arrancada num só golpe.

 

Pegando a espada ainda em sua mão, Harkin girou o corpo com precisão mortal, e os outros quatro tombaram num piscar de olhos.

 

Pegando o terno de um deles, envolveu Gabriela com cuidado.

 

Sua voz, dócil e baixa, contrastava com o massacre à sua volta:

 

— Já vou tirar a gente daqui. Aguenta mais um pouco.

 

Ele se virou para o pátio.

 

— Seis já foram. Agora só falta o resto.

 

Vocês vão pagar pelo que fizeram com o Edgar.

 

E então, ele avançou.

 

Os homens armados vieram com tudo.

 

Mas era como tentar deter um furacão com espadas.

 

A cada movimento, sangue jorrava.

 

Corpos caíam.

 

Lâminas partiam ao meio.

 

Em segundos, mais de vinte homens estavam mortos.

 

E ainda assim, Harkin não parava.

 

Seu corpo se movia com precisão sobrenatural, seus sentidos aguçados, e sua raiva transbordando.

 

Os mafiosos congelaram.

 

— Isso não é normal… o que ele é?! — murmurou um deles, antes de ser partido ao meio.

 

— HELLHOUNDS! — Demétrius berrou, e seu anel brilhou com intensidade rubra.

 

O chão estremeceu.

 

Cães infernais, envoltos em chamas, surgiram no campo de batalha.

 

Feras negras, com olhos em brasa e presas de aço.

 

Eles avançaram com selvageria, juntando-se aos soldados.

 

A luta mudou de ritmo.

 

Harkin ainda os cortava aos montes, mas agora precisava se defender.

 

Três, quatro ataques de cada lado.

 

Contra-atacava. Matava.

 

Cabeças voavam.

 

Corpos explodiam.

 

Mas a espada que empunhava rachou ao meio, ao atravessar o crânio de um dos cães infernais.

 

Outro cão avançou.

 

Mordida certeira.

 

O braço direito de Harkin foi rasgado.

 

Jeff observava de longe, paralisado.

 

Devia gritar ordens. Mas não conseguia.

 

Era medo. E respeito.

 

Aquilo era um garoto?

 

Demétrius enxergou uma brecha.

 

— EXPLODAM! — ordenou.

 

Os cães brilharam em vermelho.

 

E explodiram.

 

As explosões cobriram o pátio.

 

Uma onda de fogo e fumaça consumiu tudo ao redor.

 

A terra tremeu.

 

Corpos e armas foram lançados pelos ares.

 

O cheiro de carne carbonizada se espalhou como uma nuvem tóxica.

 

A chuva, que havia começado a cair tímida, agora descia com força, tentando apagar as chamas... sem sucesso.

 

No centro da devastação, Harkin emergiu.

 

Nu. Coberto de fuligem e sangue.

 

Mas de pé.

 

O braço direito, no entanto...

 

Estava em ruínas.

 

Do antebraço para baixo, nada restava além de carne morta, carbonizada.

 

Três dedos já tinham sido consumidos pela explosão.

 

Ele olhou para o ferimento com calma.

 

Sabia que não havia volta.

 

— “O meu braço já era… nem uma poção de cura vai dar jeito nisso.”

 

Sem hesitar, pegou uma das espadas ainda intactas no chão.

 

Ergueu-a com a mão esquerda.

 

Esticou o que restava do braço direito...

 

E, num golpe seco, amputou-o por completo.

 

Nem gritou.

 

O som do metal cortando a carne foi abafado pela chuva.

 

Os soldados assistiam boquiabertos.

 

Jeff também.

 

Ele não gritou. Não hesitou.

 

E aquilo era mais assustador do que qualquer poder mágico.

 

“Como alguém tão jovem pode ser tão implacável?” — Jeff pensava, atônito.

 

“Não é só força… é alguma coisa mais profunda. Mais sombria.”

 

O rosto de Harkin não demonstrava dor. Nem raiva.

 

Apenas determinação.

 

— Com um braço a menos... eu tenho que ser mais rápido.

 

Ele avançou.

 

Como uma tempestade.

 

Os soldados recuaram, olhos arregalados.

 

Alguns tentaram gritar ordens.

 

Outros jogaram as armas no chão e fugiram, tropeçando nos corpos.

 

— Ele é um demônio! — gritou um. — Não temos chance!

 

Harkin o alcançou antes que terminasse a frase.

 

Um golpe.

 

Silêncio.

 

Demétrius observava, estagnado.

 

O horror finalmente tomava seu rosto.

 

Ele tentou recuar.

 

Tarde demais.

 

— Como você pode conti—

 

A frase não terminou.

 

Harkin já estava lá.

 

A espada cortou o pescoço de Demétrius com precisão.

 

A cabeça caiu com um baque surdo.

 

Mesmo no fim, Demétrius sorria.

 

E uma voz ecoou na mente de Harkin.

 

“Você é mais cruel do que eu, garoto...”

 

“Espero que goste desse trono ensanguentado.”

 

Harkin permaneceu parado.

 

O sangue ainda escorria da lâmina.

 

Sem dizer uma palavra, ele cravou a espada no peito do corpo decapitado de Demétrius, empurrando com força até o cabo.

 

Depois, se abaixou lentamente, pegou a cabeça ensanguentada pelos cabelos...

 

E, encarando os olhos mortos por um breve instante, atirou-a aos pés de Jeff, que ainda estava sentado, paralisado.

 

O impacto foi seco.

 

O som do crânio batendo no chão ecoou no pátio silencioso.

 

Jeff engoliu em seco.

 

O garoto à sua frente não era mais o mesmo.

 

Mas o que realmente o assustava...

 

Era o olhar dele.

 

Aquele brilho nos olhos de Harkin dizia tudo:

 

o Trono Touriga tinha um novo dono.

 

— Pegue esse lixo. E coloque numa caixa. — disse Harkin com desdém.

 

Ele se virou para o restante dos presentes.

 

O silêncio do pátio quebrou como vidro ao som da pergunta.

 

— Onde está o capitão que torturou meu irmão?

 

O tom de Harkin não subiu.

 

Mas ninguém ousou fingir que não ouviu.

 

Os olhares se desviaram, alguns recuaram. Outros apenas tremeram.

 

Foi Jeff quem, sem mudar a expressão, levantou o queixo e indicou discretamente com a cabeça.

 

— Ali.

 

Harkin seguiu o olhar.

 

Entre os sobreviventes, um homem tentava se esconder atrás dos outros.

 

Arsen.

 

O responsável pelas ordens no beco.

O que havia marcado Edgar com cicatrizes eternas.

 

O olhar de Harkin encontrou o dele.

 

E Arsen empalideceu.

 

— Não... por favor... eu só obedecia... — ele caiu de joelhos, tremendo. — Foi o Demétrius... foram ordens...

 

Harkin caminhou até ele, passos lentos e decididos, cada movimento como o badalar de um sino fúnebre.

 

Sem dizer nada, agarrou-o pelo colarinho, arrastando-o até o centro do pátio.

 

Gabriela, ainda envolta no terno ensanguentado, se ergueu aos tropeços.

 

— Harkin... por favor. Por favor, não...

 

A voz dela era pura dor.

 

Ela se aproximou, as mãos trêmulas estendidas.

 

— Você já os derrotou! Já acabou!

 

Ele não respondeu.

 

Seus olhos ardiam com a mesma intensidade das chamas.

 

— HARKIN! — ela gritou, em desespero. — Você não é assim! Para!

 

Ele parou por um instante.

 

O olhar caiu brevemente sobre a irmã.

 

Mas não havia hesitação.

 

— Ele riu. — disse, encarando Arsen. — Enquanto quebrava o Edgar.

 

Gabriela caiu de joelhos novamente, as mãos no rosto, em prantos.

 

Harkin ajoelhou-se diante de Arsen.

 

— Você vai me implorar para morrer.

 

O som das palavras foi mais cortante do que qualquer lâmina.

 

E então, começou.

 

Com calma. Com precisão.

 

Sem pressa. Sem raiva.

 

Sem misericórdia.

 

Cada corte era medido. Cada grito era ignorado.

Unhas arrancadas. Tecido rasgado. Ossos fraturados.

 

Os homens ao redor se calaram. Até mesmo os mais sádicos pareciam enjoar.

 

Gabriela, vendo aquilo, gritou para o céu, chorando como nunca antes.

 

Mas Harkin não via mais nada.

 

Ele já não estava mais naquele pátio.

Estava de volta ao beco.

Revivia o que Edgar viveu.

Tornava-se o espelho daquele sofrimento.

 

Quando o corpo de Arsen já não reagia, apenas respirava em espasmos fracos, Harkin cravou uma adaga direto no peito dele.

 

Lento. Frio.

 

— Agora sim... justiça.

 

Levantou-se, coberto de sangue fresco, enquanto o corpo de Arsen escorregava sem vida sobre a poça carmesim que havia criado.

 

Harkin se virou de volta ao centro do pátio.

 

O sangue escorria de sua mão esquerda.

Sua respiração era pesada, mas seu olhar seguia inquebrável.

 

Ele caminhou lentamente até a espada cravada no corpo de Demétrius.

A agarrou. E com um movimento seco, a puxou de volta.

 

Levantando a lâmina, encarou os homens ao redor.

 

— A partir de hoje, eu assumo a Família Touriga.

— E haverá mudanças. Muitas mudanças.

 

O tom era firme. A voz ressoava como uma sentença.

 

— Se alguém tem algum problema com isso… fale agora.

 

Os homens se entreolharam, mudos.

 

Nenhum se moveu.

 

Até que um deu um passo à frente.

 

Alto, arrogante, os olhos cheios de desprezo.

 

Parou diante de Jeff e cuspiu no chão.

 

— Eu não vou obedecer a um pirralho. Descobriu que é mago e agora se acha rei?

 

Harkin nem respondeu.

 

Deu dois passos para trás.

 

Se aproximou de uma lança caída, a lâmina cega.

 

— Vai servir... — murmurou.

 

Com um movimento rápido, chutou a lança como uma flecha.

 

A ponta atravessou o nariz do homem e saiu pela nuca.

 

O corpo caiu com um som surdo, silêncio total no pátio.

 

Jeff enxugou o sangue do rosto.

E se ajoelhou.

 

Mas não por submissão.

 

Era cansaço. E incredulidade.

 

— Mais alguém se opõe? — Harkin perguntou, com tédio.

 

Todos os presentes, em sincronia, se curvaram.

 

— NÓS SAUDAMOS O CHEFE DA FAMÍLIA!

 

— Ótimo. — Harkin girou a espada e a fincou no chão.

— Agora alguém me traga uma roupa e um curandeiro. Meu braço tá doendo pra caralho.

 

— E os que não tiverem fazendo nada... sumam da minha frente. Antes que eu mude de ideia.

 

Jeff entregou a cabeça de Demétrius a um dos homens, repassando as ordens.

Os sobreviventes correram para cumprir cada comando.

 

Mas Jeff não saiu.

 

Em vez disso, pegou um pedaço rasgado de cortina, e se aproximou com calma.

 

— Achei que tivesse dito que queria ficar sozinho. — Harkin comentou, sem emoção.

 

— Você tá pelado, pirralho. Percebeu isso, né?

 

Jeff o envolveu com o pano na cintura, improvisando uma toga, depois enfaixou o braço mutilado.

 

— Pronto. Agora você só parece um mendigo maneta.

 

— Eu devia te matar.

 

— Mas não vai. — Jeff rebateu, sem hesitar. — Você precisa de mim. Pode ser o diabo encarnado, mas sozinho não vai longe. E você sabe disso.

 

Harkin o encarou, os olhos ainda brilhando.

 

Por um segundo, o poder voltou a pulsar.

 

Mas... cedeu.

 

— Fique no canto. Quero conversar com minha irmã.

 

— Ok. — Jeff assentiu, se afastando.

 

Antes de sair, ouviu um murmúrio:

 

— Obrigado.

 

Jeff apenas levantou uma das mãos, sem virar.

 

— Disponha.

 

Encostou-se na parede, acendendo um cigarro.

 

Harkin se aproximou do corpo de Edgar.

 

Com cuidado, fechou os olhos do irmão.

 

— Eu te vinguei. Prometo te dar um enterro digno.

 

— E vou cuidar da Gab. Eu te juro.

 

Ajoelhou-se diante dela.

 

Gabriela chorava, sem forças para falar.

 

O rosto vermelho. Os olhos inchados.

 

Harkin pousou a mão boa sobre o rosto dela.

 

Ela o encarou. E então, o abraçou com força.

 

O rosto molhado encostado no peito ensanguentado.

 

— Seu braço, Harkin... o que fizeram com você...?

 

Mas ela sabia.

 

Não era só o braço.

 

O que doía mais era perceber que seu irmão não era mais o mesmo.

 

Ele era Harkin... mas não era.

 

Os olhos, antes cheios de curiosidade, agora eram brasas.

 

O calor do corpo não era mais humano.

 

Ela não sabia se podia compreendê-lo.

 

E mesmo assim, o abraçou com tudo o que tinha.

 

Harkin retribuiu, apertando forte com a mão boa.

 

Recostou a cabeça no ombro dela, sussurrando:

 

— Não se preocupe. Eu vou cuidar da gente agora.



---



A imagem congelou.

 

A luz do pátio, as vozes, o sangue... tudo foi se apagando.

 

Eiden sentiu a consciência se afastar da lembrança.

 

Seu peito arfava.

 

A mente, pesada.

 

Ele abriu os olhos.

 

Os fundo do Dragão dourado onde estava voltou a existir.

 

Harkin permanecia ali, encostado, fumando um cigarro e olhando para o horizonte.

 

— Eu definitivamente falhei com você, garoto. — sussurrou Eiden, a voz rouca.

 

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