Volume 1

Capítulo 8: Naipe de Adubo, Noite de Agonia

Os gêmeos continuaram:

— ACHA QUE NOS IMPORTAMOS SE O IMPERADOR TIMENS ATUAL AUTORIZOU OU NÃO A CHEGADA ATÉ AQUI? O PACTO DE NÃO ENTRADA JÁ FOI FEITO. O ÚNICO DIREITO QUE A FAMÍLIA REAL TEM É DE PROTEGER A CRIPTA CONTRA QUALQUER TIPO DE SER INTELIGENTE QUE QUEIRA ADENTRAR. MAS PARECE QUE ELE FALHOU MUITO BEM NESSA TAREFA. O TRATO SÓ É INTERROMPIDO QUANDO O CONSELHO DOS GOLEMS (QUE SOMOS TODOS NÓS) ENTRA EM ACORDO NO MOMENTO EM QUE O ATUAL CHEFE SUPREMO DOS TIMENS REVELE AO POVO A VERDADEIRA HISTÓRIA ENTRE NÓS E O PESSOAL DELES DIANTE DA MULTIDÃO — ALGO QUE NENHUM IMPERADOR ANTEPASSADO FEZ. QUANDO ESSE DIA CHEGAR, O IMPERADOR DEVERÁ SER ACOMPANHADO POR SUA MULTIDÃO ATÉ AQUI, E NÃO UM HOMEM, TRÊS LABAREDAS E UM CASAL E MEIO.

 — Filho da... — Mêrigo deixou escapar.

Tá legal, ao menos eles não eram covardes. Criticar um cara que recebe informação de todos os cantos da região não é pra qualquer um.

— De qualquer... forma — Scholisto disse. — Eu tenho o poder para arremessar... vocês...

— NÃO ESTAMOS DESISTINDO POR CAUSA DE VOCÊ, ANÃO. É BEM CAPAZ DE PERDER A CONSCIÊNCIA ANTES DO ATAQUE CONCLUIR, E NÓS SOMOS MUITO RESISTENTES CONTRA O AR. ESTOU FALANDO DELES... E DESSA COISA.

Eles apontaram para mim, o humano de cabelo mais arrepiado que esfregão em final de semana. O que eu era pra ele, um bicho exótico?

— O que que tem eu? Tá com medo que eu c-chute a sua canela? — ousei dizer.

— NÓS NÃO TEMOS CANELA.

Que informação útil.

— ME DIGA: VOCÊ NOS SUBESTIMOU? NEM OUSOU MEXER UM DEDO ENQUANTO SEU COLEGA DE BAIXA ESTATURA TENTOU NOS FURAR COM AR.

— Não é como se eu pudesse fazer algo além de mandar vocês para longe em outro sentido.

Os gêmeos ficaram em silêncio, olhando uns para os outros.

— O QUE É VOCÊ?

— Um humano.

— NOSSA, SÉRIO? PENSEI QUE FOSSE UM DRAGÃO DAS MONTANHAS DO SUL.

“Ao menos um dragão é melhor do que uma toupeira”, pensei. 

— É — Carialista cruzou os braços e disse: — parece que não dá pra terminar essa missão hoje.

— M-mas querida...! — Por um instante, o anão tentou falar mais alguma coisa, porém as aparentes dores musculares causado pelo efeito colateral de muita absorção de mana o oprimiu o suficiente para que ele desequilibrasse e recostasse em Mêrigo.

— Por que homens anãos são tão cabeça oca? Olha pra você, querido. Não vai conseguir nem chutar uma pedra pelo caminho, que dirá uma cripta provavelmente selada.

— ESTÁ SELADA. 

— Viu? Vamos logo pro estábulo do bosque do Túmulo Infinito antes que o sol se ponha.

Não consegui me lembrar desse nome. De fato, há diversos bosques pelas margens da grande floresta ao leste, sendo poucos nomeados de forma memorável. E sim, eu me lembraria de um nome desse tanto quanto “Você é a Vergonha do Nosso Projeto”. Bem, não é um nome, mas levo como se fosse um na minha mente.

Nós assentimos e caminhamos até a mata direita. Os gigantes nos viram ir embora, imóveis.

— Síssio? — disse Fainara, diminuindo os meus passos entre as árvores iniciais.

— S-sim?

— Você está bem?

— Pra alguém que me ameaçou horas atrás, isso é bem curioso — confrontei, num olhar lateral. — Sim, tô bem.

— Eu ameacei caso você fizesse mal a nós. Mas parece que é você que se sente desconfortável. Principalmente quando... 

— Quando...?

— Quando alguém pergunta quem é você.

Ela acelerou calmamente os passos e voltou a ficar perto dos irmãos.

Eu apenas pude coçar a cabeça.  

                                                    ➀ 

Scholisto já tinha se recuperado o bastante para poder ajudar a fazer os preparativos pra fogueira, logo depois que os dois flemeios trouxessem algum bicho de quatro patas pra ser posto no graveto. O que era surpreendente, dada ao tamanho de mana que ele usara.

Nessa brincadeira toda, graças ao meu treinamento do mais alto nível que consistia em me isolar dos prazeres mais simples enquanto sofria bullying em tempo integral, arrancar pedaços tostados sem sal não fora uma tarefa tão difícil. O grande problema era o fato de eu estar, naquele momento, de costas a vários arbustos em torno de uma fogueira junto de uma família mercenária. A cada galho soprado no alto das árvores grossas, mais difícil era manter a postura sem pensar na possibilidade do fogo me engolir e me levar pra um país tropical de outra dimensão, ou de um tronco de quatro metros escorregar — sem querer — na minha espinha dorsal. 

Por isso eu tinha que me distrair da maneira mais fácil e milenar de todas, destruidora de impérios, amizades e casamentos:

Reclamando.

— É impossível entrar lá — comecei. — Tá selado, não podemos quebrar sem ter uma pedra voando na nossa cara após tentar invadir uma cripta de uma dinastia milenar e ainda temos que nos contentar com guardas de dez metros nos dando bom dia. Sem falar dos supostos Ámicos e...  mais alguma coisa?

— Esqueceu — disse Flero, mastigando um pedaço de carne no meu lado — que não temos moedas pra hospedagem.

— Quer que a gente vire uma árvore? — repliquei. — O tanto que estamos andando por essa maldita floresta já sinto que sou parte daqui!

— Pense pelo lado bom: o solo daqui é bem fértil pra sobreviver. Alguém só precisa ser o adubo da família.

Tenho minhas dúvidas se ele levou a sério o plano mais ambiental que o mundo já presenciou.

Eu já podia ser uma planta, toupeira e um dragão das montanhas do Sul. Só faltava uma fada pra materializar a fanfic.

— Para de assustar o humano — disse Scholisto, que preferiu deitar num cobertor fino trazido pela Carialista na sacola. — Pedi moedas extras a Nelino antes de eu sair do quarto, para a missão.

— Ah, agora sim-

— Agora estamos em dívida com ele. Caso a gente não devolva, ele quer você amarrado, independente do resultado da missão. 

Em vez de cuspir pedaço de carne, quase cuspi minha alma por acidente ao ouvir aquilo.

O que ele quis dizer com “amarrado”? Eu tinha que ir numa bandeja e uma maçã na boca, também?

— E o que vamos fazer, depois de acordar? — disse Mêrigo, que cruzou os braços depois que estraçalhou qualquer vestígio do pedaço de carne nas mãos. — Cara... eu queria ter humilhado aqueles grandalhões e cumprido a missão...

— Queria tanto quanto você, filho. Hoje, mesmo que sua mãe use todo o potencial dela terrestre e arranque um pedaço sete vezes maior do que aqueles golems, a missão não seria cumprida. Há situações em que não é a voracidade e a força que determina a vitória, mas sim a reunião de informações em casamento com a sabedoria na aplicação. Por isso...

O pó mágico — interveio Fainara, agarrada nos próprios joelhos depois do pedaço... eu nem sei onde foi parar a parte dela. — Pela região que estamos indo, mamãe deu a ideia de ir de encontro com os rupichiris, e então nós poderíamos entrar e sair pelas frestas da entrada da cripta sem problemas externos.

O que foi aquilo que eu tinha acabado de ouvir? Já não basta ser filha de dois anões caipiras, ainda consegue ser telepata?

— Droga! — Flero grunhiu. — O placar deve tá gigantesco, né?

— Placar? — disse Mêrigo. — Ela venceu todas as previsões das raras missões que fizemos. Como sempre, a mais inteligente de todas.

— Obrigada, maninho.

— M-maninho? — Mêrigo balançou a cabeça. — Fala sério.

Fainara apenas riu da situação. O casal de anãos deu parabéns a sagacidade dela em prever o plano “magnífico” daquela família.

É claro, deveria ter uma oposição ali. Mas eu já tinha uma ideia vaga da resposta. Mesmo assim, é bom acompanhar o raciocínio.

— Acho que vocês não estão entendendo a gravidade da coisa. Ou melhor, de uma cripta milenar capaz de expulsar qualquer ladrão da face da terra. — Me levantei para dar mais impacto nas palavras enquanto limpava as mãos. — Pó mágico nenhum daquele povo não vai conseguir penetrar uma mana enrijecida invencível de selamento. O máximo que nós vamos conseguir é um hematoma na testa por bater a cabeça de cara na barreira.

Todos fizeram o velho costume de se entreolhar depois de alguma fala minha. Nem fizeram questão de se levantar.

— Agiota — disse Mêrigo —, cê sabe que aqueles golems não vão durar muito, né? Nenhum selo vive sem a consciência do criador. Pior é quando um coletivo sustenta o poder.

— Além do mais — disse Scholisto —, por mais espontâneo que parecesse a missão que ele nos deu no calor do momento, Nelino não nos chamaria aqui sem saber da situação dos golems perante os ámicos.

Respirei fundo. “Era óbvio”. 

Mas eu ainda tinha uma carta na manga pra atazaná-los antes de partir.

— Há poucos seres no universo que são páreos contra ámicos em missão. Se chegar a hora de vocês confrontá-los...

Logo depois que eu parei de falar, comecei a ouvir apenas o estalar da fogueira. Os rostos dos cinco ficaram obscuro diante da luz, emudecidos, fazendo com que eu percebesse o quão grande as sombras deles estavam no chão folheado. Ao mesmo tempo, a família se levantou.

— Não nos subestime — disse Carialista, largando o pedaço de comida no chão. 

                                                    ➁ 

Não demorou muito até avistarmos uma trilha larga de terra sombreada por palmeiras, durante o anoitecer. A área aberta antes de um bosque coberto por um manto de flores douradas obscurecidas pelo tempo parecia indicar que eu já estaria próximo do meu tão sonhado descanso.

Isto foi logo confirmado pela aparição de um anão barrigudo sem blusa, que carregava uma bacia de barro na cabeça ao lado de um sorridente rapaz bronzeado, com uma cabeleira eriçada de cor azul turquesa. Ambos vestiam túnicas simples com um colar ornamentado por penas coloridas, combinando com os brincos. 

Os olhos pequenos violetas do sujeito bronzeado só reforçava a ideia de que era um Rochipiri, raça da mesma origem dos Chrupiris que logo se rivalizaram por questões territoriais.

O mesmo olhar cruzou com a família na qual eu acompanhava. Ambos retribuíram com um aceno. O anão e seu amigo alto logo ficaram surpresos com a minha presença.

— Espera — O rochipiri parou os passos junto do anão. — Um humano acompanhando vocês? Isso é bem raro de se ver. Pensei que eles já não conheciam mais a cor de nossas gramas após viver tanto na cidade que eles tanto esbanjam.

— Ah, esse aqui é especial. — disse Scholisto. — Ele é de outro continente. Veio aqui por “negócios” estratégicos. Garanto que não envolve crime nenhum, muito menos posse de terras alheias. 

Por que ele foi tão descritivo?!

Os estranhos deram uma risada furtiva e passaram por nós.

— Ei! — Carialista virou-se para eles. — Sabem se a hospedaria tá funcionando agora?

— No dia em que elas não estiverem será quando a rota comercial for inútil à beira dessa floresta — disse o anão que se afastava.

De fato, ainda sem a presença humana, os interesses no comércio entre tribos e raças na beira da grande floresta ainda era grande. O micro organismo econômico interdependente na região de vez em quando conseguia encarar a face da parceria entre os humanos com os ámicos. 

Porém, o mais curioso era vivenciar a cultura exótica de alguns povos longe da concentração urbana. Pela grande trilha, recebemos diversos acenos com perguntas rotineiras, cansativas e passageiras de rochipiris e anões que trabalhavam juntos, seja carregando caças em torno de panelas em uma aglomeração concentrada em trabalhos manuais, ou de mães trazendo olhares de bebês que estranhavam as foças marianas da minha cara.

No fim, foi estranho chegar no destino depois do caminho que percorremos. Todas as residências pela vila eram compostas por cabanas coletivas vernaculares de babaçu. Já a hospedaria... bem, só da fachada dava para ver que tinha dois andares e era a coisa mais clichê e deslocada possível, pronta para receber forasteiros.

Quando adentramos, subi a escada de dois relances, me tranquei num quarto e me joguei numa cama coberta por um “lençol” de pele, cheirando bucho fervido no calor infernal. Tirar a camisa era questão de sobrevivência, mas arrancar o meu nariz era só desejo, mesmo.

Não tardou nem um segundo até eu apagar. Não lembrei de sonho nenhum, nem mesmo algum lapso de memória que enfatizasse o quão bizarro minha situação estava. Era como estar perdido em uma terra estrangeira contando com a sorte de alguns desconhecidos. Todo aquele dia parecia um tremendo sonho fervente sem perspectiva de fim.

O mais curioso foi não saber o que me levou a abrir meus olhos depois do sono — que pareceu rápido e insuficiente. Foi uma... batida da janela no canto esquerdo da parede frontal? O calor proveniente da lamparina na estante no canto? O quarto não era grande, tendo como possibilidades até a fonte do problema mínima. Me levantei pesado, peguei a lamparina e estreitei os olhos, caminhando até a janela para ver a vila abaixo.

Não estava vazia.

Havia uma criatura rechonchuda no meio da estrada, iluminada por alforjes próximos das cabanas. A sombra daquele ser era enorme. Arrisco dizer que era 50 vezes maior que ele mesmo.

O hamster absoluto estendia um sorriso gélido até mim.

Soltei um grito que consegui parar quase no mesmo instante, levando a mão na boca e respirando forte. Por sorte, a lamparina não caiu da minha mão ocupada quando dei um passo para trás. Porém, fui capaz de enxergar o avanço do pequeno roedor até a entrada da hospedaria.

“O desafio já acabou? É assim que tudo acaba? Dormi por treze dias?”

Ouvi passos pesados pelo corredor. Alguém começou a bater na porta com aspereza lenta.

Engoli seco. Arranjei forças para destravar a tranca de ferro.

Era Fainara.

Estava com os cabelos soltos até o ombro, tão acesos que fez com que eu me sentisse patético com aquela lamparina de luz insignificante na mão.

— Algum problema? — Ela perguntou.

— Eu acho que era eu que devia fazer essa pergunta.

Quem nunca recebeu uma visita no meio da madrugada pra ouvir um “qual é seu problema?” da pessoa?

— Meu único problema é não saber qual é o seu problema. É esse o motivo de eu estar aqui.

Só ficava pior.

— Mas como você vai saber qual é o meu problema se mal me conta o seu problema em procurar pelo meu problema? — retruquei.

— Então você admite que tem um problema?

— Não! Eu... Ah! Por que você pensa que eu estou em apuros?

— Eu nunca falei que você está em apuros. — Fainara estreitou os olhos. — Você está?

Eu estava com raiva. Droga, tinha vários empecilhos em viajar ao passado e receber uma aposta de uma entidade rechonchuda que se afirmava conduzir seres vivos e talvez outros componentes que formavam a natureza. Sim! Havia um nó de problemas naquela situação.

— Você é um deles — murmurei a mim mesmo.



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