Volume 1

Capítulo 7: Sem Canela e Sem Combate

Durante um longo tempo, a humanidade foi assolada pela própria desconfiança contra raças escondidas nas montanhas ou expostas nos campos. E algo agravava muito mais a indiferença: a influência da mana nos seres inteligentes. Ora, os ámicos, com seus voos em grupo nos céus noturnos, os flemeios, portando chamas nos fios de cabelos e os elfos, em seus segredos musicais e medicinais, formavam um conjunto de tormentos na mente insegura dos seres humanos. 

E em nós? Bem, na nossa soberba em ficar sentado o dia inteiro em casa só para estudar o fluxo de mana em vez de inventar logo a internet no tédio rural para culminar na maior criação da história — os memes —, os humanos ficaram assustados em ver gangues voadoras e manos de cabelo aceso passando na esquina das nações. Para estabelecer um status descente, seriam necessárias duas revoluções industriais, rifles de alto calibre que nem existiam, gasolina e um cigarro só para aquecer. Por isso, optamos à covardia: forçamos a mana dentro de nós brotar de nossos corpos para que, enfim, o caminho mais fácil e podre estabelecesse ao poder em nossos territórios. Então sim, houve uma influência por pura estupidez.

Mas para isso tivemos que estudar como a mana atuava nas outras raças. Não é à toa que não me espantei quando vi Scholisto saltar cinco metros do chão em direção aos golems, arrancar a espada da bainha durante o trajeto, retrair a lâmina num impulso e perfurar a onda de vento que ia contra ele. O ataque gerou uma explosão que impulsionou os dois grandes adversários gêmeos voarem para trás. 

Os anões dependiam do ambiente para melhorarem sua performance na batalha, centrados nos elementos naturais. Eles, diferentes dos humanos, não eram autossustentáveis no uso da mana, sendo situados na categoria “dependentes” — seja do ar, da terra, da água... Isso não quer dizer que qualquer um do passado poderia flagrar um anão de quatro tentando comer uma grama no meio da floresta (mas, se houve uma pessoa que flagrou, com certeza ela está morta), até porque o simples contato com determinado ambiente já poderia fortalecer a raça pequena.

De qualquer forma, Scholisto pousou no meu lado, cravando a lâmina no chão. Sua respiração estava forte enquanto os pequenos olhos enrugados fitavam os golems caídos a metros. Não havia tempo para pensar: logo puxou a espada com aspereza, ergueu de modo suave e pediu para que eu me afastasse um pouco, num gesto de mão. 

— O que você vai fazer? — disse eu.

— Vou fazer duas estrelas cadentes subirem para os céus.

Eu entendi o que ele quis dizer.

— Hein? Tem certeza? Tipo, cê não acha que vai voar mais rápido do que duas pedras de 100 toneladas caso aplique um golpe mortífero?

— Por quê?

— Talvez seja pelo simples fato de você ser uma fada com ananismo comparado aos dois grandalhões na nossa frente.

Ele sorriu, confiante.

— Não se preocupe. Eu bebi sopa de feijão com guisado pela manhã. Estou mais pesado do que qualquer mãe humana.

— Em nenhum momento coloquei mães no assunto!

Por um instante me perguntei se um peido dele seria a verdadeira origem do ataque. 

Logo em seguida, a concentração de mana na lâmina gerou uma vertigem de correntes de ar em espiral, ficando semelhante a uma hélice, quase do tamanho do ser de pedra. Em contrapartida, os adversários levantaram-se e flutuaram lentamente até o pequeno. Por que eles estavam tão passíveis? Eles sequer olhavam direito ao anão. Parecia...

— NÓS NÃO QUEREMOS LUTAR COM VOCÊS. NOSSAS CHANCES DE DERROTÁ-LOS É NULA. — proclamou os gêmeos.

O anão encolheu os ombros, ainda com a arma preparada.

— Acha que eu acredito nisso? Ataques surpresas também são precedidos pela covardia — disse o pequeno.   

— VOCÊ DIZ COVARDIA, MAS SE ESQUECE QUEM SÃO OS VERDADEIROS COVARDES DA HISTÓRIA.

Scholisto franziu as sobrancelhas e pressionou ainda mais o punho da espada. A espiral de vento parecia querer engolir todos os que estavam ao redor.

 — O que você quer dizer com isso? — O portador da espada perguntou, forçando uma postura. 

— QUEM INVADE PROPRIEDADE ALHEIA EM BENEFÍCIO PRÓPRIO É O QUÊ? SEMPRE HÁ BARDENEIROS COM GUILDAS QUE QUEREM PEGAR ALGUNS TESOUROS DAQUI. A MAIORIA EU DEIXO PASSAR, POIS LOGO CORREM DAS SURPRESAS GORDUCHAS DENTRO DA CRIPTA E NELINO SABE DISSO. MAS VOCÊS... SÃO TÃO FORTE QUANTO NÓS.

— Deixa a gente entrar imediatamente! —  disse Carialista, que se aproximou mesmo com a espiral esvoaçando suas vestimentas e exercendo pressão. — O impera-

— Mãe! — disse Mêrigo, espantado. 

— O-oh! É mesmo...

A anã quase destrói todas as possibilidades de vitória e segredo só por citar um nome real.

“Por que aquela pedra está reagindo daquela maneira? Será... medo? Medo de quem, do anão?”

De qualquer forma, eu deveria falar o menos possível, seja pra quem for. Assim, eu coletaria mais informações sobre aquele lugar. Poderia haver mais coisas diferentes dos livros do futuro em comparação aos eventos do passado.

— ACHA QUE NOS IMPORTAMOS SE O IMPERADOR TIMENS ATUAL AUTORIZOU OU NÃO A CHEGADA ATÉ AQUI?

Nosso segredo foi totalmente decifrado por uma frase não completada. Isso passa a mesma sensação que dizer o número da pizzaria errada e um cara descobrir o número do seu cartão de crédito.

— O PACTO DE NÃO ENTRADA JÁ FOI FEITO. — continuou. — O ÚNICO DIREITO QUE A DISNATIA TEM É DE PROTEGER A CRIPTA CONTRA QUALQUER TIPO DE SER INTELIGENTE QUE QUEIRA ADENTRAR. MAS PARECE QUE NELINO FALHOU MUITO BEM NESSA TAREFA. O TRATO SÓ É INTERROMPIDO QUANDO O CONSELHO DOS GOLEMS (QUE SOMOS TODOS NÓS) ENTRA EM ACORDO NO MOMENTO EM QUE O ATUAL CHEFE SUPREMO DOS TIMENS REVELE AO POVO A VERDADEIRA HISTÓRIA ENTRE NÓS E O POVO DELE DIANTE DA MULTIDÃO — ALGO QUE NENHUM ANTEPASSADO FEZ. 

Tá legal, ao menos eles não eram covardes. Criticar um cara que recebe informação de todos os cantos da região não é pra qualquer um.

— De qualquer... forma — Scholisto disse com dificuldade. — Eu tenho o poder para arremessar... vocês...

— NÃO ESTAMOS DESISTINDO POR CAUSA DE VOCÊ, ANÃO, ATÉ PORQUE VOCÊ É BEM CAPAZ DE PERDER A CONSCIÊNCIA ANTES DO ATAQUE CONCLUIR. ESTOU FALANDO DELES... E DESSA COISA.

Eles apontaram para mim, o humano de cabelo mais arrepiado que esfregão em final de semana. O que eu era pra ele, um popstar de luta estrangeiro?

— O que que tem eu? Tá com medo que eu c-chute a sua canela? — ousei dizer.

— NÓS NÃO TEMOS UMA CANELA. 

Uma informação que muda todo o rumo da batalha. 

— ME DIGA: VOCÊ NOS SUBESTIMOU? NEM OUSOU MEXER UM DEDO ENQUANTO SEU COLEGA DE BAIXA ESTATURA TENTOU NOS FURAR COM AR. 

— Não é como se eu pudesse fazer algo além de mandar vocês para longe em outro sentido.

Os gêmeos ficaram em silêncio, olhando uns para os outros.

— O QUE É VOCÊ?

— Um humano.

— SÉRIO? PENSEI QUE FOSSE UM DRAGÃO DAS MONTANHAS DO SUL.

“Ao menos um dragão é melhor do que uma toupeira”, pensei.

— É — Carialista cruzou os braços e disse: — parece que não dá pra terminar essa missão hoje.

— M-mas querida...! — Por um instante, o anão tentou falar mais alguma coisa, porém as aparentes dores musculares causado pelo efeito colateral de muita absorção de mana o oprimiu o suficiente para que ele desequilibrasse e recostasse em Mêrigo.

— Por que homens anãos são tão cabeça oca? Olha pra você, querido. Não vai conseguir nem chutar uma pedra pelo caminho, ainda mais uma cripta provavelmente selada.

— ESTÁ SELADA — confirmou os gêmeos. 

— Viu? Vamos logo pro estábulo do bosque do Túmulo Infinito antes que o sol se ponha.

Não consegui me lembrar desse nome. De fato, há diversos bosques pelas margens da grande floresta ao leste, sendo poucos nomeados de forma memorável. E sim, eu me lembraria de um nome desse tanto quanto “Você é a Vergonha do Nosso Projeto”. Levo este como um nome especial na minha mente.

Nós assentimos e caminhamos até a mata direita. Os gigantes nos viram ir embora, imóveis.

— Síssio? — disse Fainara, diminuindo os meus passos entre as árvores iniciais.

— S-sim?

— Você está bem?

— Pra alguém que me ameaçou horas atrás, isso é bem curioso — confrontei, num olhar lateral. — Sim, tô bem.

— Eu ameacei caso você fizesse mal a nós. Mas parece que é você que se sente desconfortável. Principalmente quando...

— Quando...?

— Quando alguém pergunta quem é você.

Ela acelerou calmamente os passos e voltou a ficar perto dos irmãos.

Eu apenas pude coçar a cabeça.  

 

 



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