Volume 1

Capítulo 5: Promovido a Mapa Falante

— Ora, ora se não são os meus estrangeiros favoritos? — O imperador se levantou e largou o cálice no chão reluzente, derramando o líquido. — Estão com sorte. Estou livre nessa manhã caótica.

Todos fizeram reverência. Eu fui um dos últimos.

— Oh, um novo companheiro? — Nelino me fitou. — Um humano, hein? Me parece sinônimo de problema.

Meu pescoço teria um grande problema se alguém me chamasse de agiota naquele momento.

— Talvez seja — disse Carialista, de forma tão natural que me fez suar. — Ele se chama Síssio.

— Prazer, rapaz.

Forcei um sorriso antes de Scholisto dizer:

— Nós estamos aqui porque nossa cabana foi destruída, senhor. Não temos um local para dormir.

— Eu estou sempre de portas abertas para vocês.

Uma porta a trezentos metros do chão com guardas portando lanças maiores do que eles.

— Sabe. Scholisto — disse a majestade — os estrangeiros demonstraram muito mais interesses depois que seu grupo está trabalhando para mim. Histórias dizem que vocês matam monstros invasores constantemente nos períodos de ofício. Que engraçado, não?

Eu tive quase certeza que ninguém matou nenhum monstro além o do temível chão sujo do vale terrível da louça cheia.

— Esses boatos parecem divertidos — disse Flero, curtindo a ideia de ser famoso o suficiente pra causar inveja em outros mercenários.

— Eles aumentariam se vocês morassem nas minhas terras.

— Nós não podemos ficar aqui, majestade — disse o anão. — Nossa cabana no meio dos coqueiros é um lugar que nos completa.

— Bem — Nelino coçou a cabeleira —, há muitos serviços que os militares querem...

Do nada, Nelino emudeceu. Todos nós nos entreolhamos enquanto ele sentava de volta no trono, pensativo.

— Algum problema, majestade? — disse Carialista.

— Espera... tenho uma missão muito mais interessante para vocês.

                                                                     ➀ 

Fomos acompanhados por quatros guardas reais até a porta do quarto real, cujo o piso era banhado de ouro perante estantes de vasos cor de jade ornamentado com flores. Os guardas insistiam em ficar próximo dele caso ocorresse um atentado executado por nós. E o imperador não parecia nada satisfeito com isso.

— Ah, caiam fora! Olhem só pra eles: dois anões e três fogueiras. Levo três pros caixões se eu tacar um balde de água no grupo, agora deixem de pânico!

Ao menos ele nem mesmo me cogitou como um problema no combate hipotético. Talvez eu estivesse com 20 quilos a menos depois da viagem temporal e ninguém mais me levava a sério. Isso explicaria muita coisa...

Os guardas se entreolharam e pediram perdão, saindo da entrada. Nelino pareceu ansioso, pois fechou de forma brusca a entrada e, em seguida, virou-se para nós, encostado na porta, alargando um sorriso.

— Desculpem a grosseria. Vocês sabem mais do que ninguém que admiro o trabalho de vocês, mas eu tinha que disfarçar suas capacidades verdadeiras. Além disso, essa é uma missão secreta que só vocês são capazes de executar nas sombras.

— Essa conversa está tomando um rumo cada vez mais estranho. Às vezes cê é esquisito, Nelino — disse Flero, sem a total atenção nas palavras. E não, o soco no braço dele não foi poupado por Mêrigo. Era como ter certeza que o amanhecer viria.

— Com todo o respeito, majestade: se tiver ouro na jogada, nós agradecemos de imenso coração — disse Carialista. — Afinal, a cabana-

— Ouro? — interrompeu o imperador. — Terá mais. 

Nelino foi até o canto mais escuro onde estava a cama coberta pelo dossel, agachou-se, arrastou um baú que estava debaixo dela, abriu e arrancou duas pedras de diamantes de dentro.

Era uma das coisas mais brilhantes que eu já tinha visto até o momento.

— Se forem mais rápidos, terá mais uma.

— Sim, mestre. — Flero se prostou de cabeça baixa, como se a alma dele já estivesse vendida depois de 0.2 segundos após a sugestão.     

— Mas duvido que consigam em um só dia. A cripta real é um segredo que só a minha linhagem e os golems exploraram por dentro... E talvez alguns porcos subterrâneos mortíferos em seu habitat natural.

Meu otimismo cresce cada vez mais.

Primeiro pensei que eu ia ser surrado na floresta, agora ser amassado por porcos subterrâneos? Nem a ameaça de uma fogueira andante soou tão intimidadora, até porque nenhum balde de água pararia criaturas perfuradoras de ossos.

Eles eram tão temíveis que o uso de cavalos foi abolido na região. As pessoas descobriram que os principais ataques ocorriam quando os cavalos trotavam ou corriam, fazendo com que o som atraísse os porcos subterrâneos, que eram predadores naturais daqueles bichos. 

— Como é? Isso não é um local muito único para outros povos invadirem? — disse Mêrigo.

— É por um bem maior.

Eu diria isso se eu quisesse matar alguém e ocultar o cadáver.

— Sabe? — continuou Nelino — Meu império não para de receber conspirações entre os guerreiros encarregados nessa cidade. A instabilidade parece sugerir uma desordem futura. Barões cada vez mais independentes com suas posses de terras, legiões de exércitos nos setores próximos da capital dos humanos e elfos cada vez mais independentes... Sinto cheiro de cabeças caindo. Por isso, usarei o crânio de um dos meus parentes para que minha popularidade volte e as intrigas sejam reduzidas.

— Usar o crânio de um ancestral não me parece eficiente para parar os adversários. Tem que ter uma mira excelente pra matar alguém utilizando esse troço — disse Carialista.

Era impressão minha ou ela estava seguindo outra linha de raciocínio?!

— Acho que ele não quis dizer isso, mãe... — disse Fainara.

Nelino caminhou até a janela, num ar um pouco teatral, ficando de costas para nós.

— Ora, a popularidade de um líder é definida por suas conquistas. Eu já declarei a população que mandei arqueólogos acompanhados de uma tropa a fim de achar o lendário esqueleto de rubi nas montanhas ao sul. A verdade é que sempre esteve na cripta.

— Caveira de rubi? Isso parece ser grandioso demais.

— É o esqueleto do herói Timens que neutralizou o golem tirano Luraf. — Eu disse. — Depois de uma intensa luta que o levou a morte, seu esqueleto foi transformado em rubi, como prêmio póstumo e levado secretamente à cripta sagrada no território dos golems atuais, os antigos opositores de Luraf.

Todos do grupo olharam para mim, estáticos. Nelino virou o rosto nublado numa escuridão mais ardente do que qualquer raio de sol daquele horário.

— Você sabe até demais, humano. A informação final ninguém, além do comando-geral e eu, deveria saber.

“Por que eu sinto que vou terminar voando daquela janela no final dessa conversa?”

— Desculpe, e-eu juro que não contarei a mais ninguém.     

— Você já contou a cinco pessoas além de nós.

— Mas vossa alteza iria contar mesmo assim! — Quanto mais que eu falava, mais eu sentia a forca dos timens no meu pescoço.

— Sim, "iria". Você já contou.

— Isso não-

— Não acha que já falou demais? — interrompeu Mêrigo.

Eu estava acabado por dentro. Nenhum imperador descente me deixaria vivo depois disso. Mas Nelino sorriu, talvez escondendo o fato de que ele mandaria alguém para me executar depois da missão.

— Não consigo tolerar isso.

Carialista sorriu, girando o machado.

— Ora, n-nós somos os temíveis matadores de dragões, não é assim que as lendas dizem? Já que ele sabe demais, a missão se torna mais fácil.

— Por acaso eu tenho cara de mapa? — reclamei.

— Se nós cinco te enxergarmos assim, você terá.

Que tipo de democracia é essa?!

— Está bem... — O imperador suspirou. — Aceito. Mas, se não trouxerem até amanhã de manhã... Quero este humano acorrentado e entregue no meu palácio. Ouviu... Scholisto?

Nelino franziu o rosto e encarou o anão recostado na parede. Os dois pareciam sintonizados para me jogar da janela há qualquer momento.

O pequeno assentiu.

O dia seria longo demais. Por algum motivo, talvez ficar no palácio e limpar o pinico de ouro do imperador enquanto sou interrogado mais de cem vezes não seria tão ruim se comparado a ser lanchado numa cripta milenar.



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