Volume 1

Capítulo 4: Rolé Imperial

Depois do sumiço de Bérsio, se eu pudesse avisar ao meu eu do passado que chegaria até o império dos timens ao lado de dois anões e três fogueiras andantes, eu sofreria bullying da única pessoa que faltava.

Era um sol eterno, guloso e inchado. Do tamanho da minha fome, naquele momento. Sendo franco, pela primeira vez eu tive vontade de ser uma planta igual como os meus colegas-inimigos (dupla função prática) pensaram. Mas o único que se alimentaria daquela situação era a natureza e, talvez, Víria.

Eu sabia que ela me odiava antes mesmo da nossa última conversa. Não corrigira minhas notas, não avaliara meu desempenho e sequer informara instruções direito. Apenas me mandava fazer o básico e me passava só para que eu esfregasse o chão por mais tempo.

Todo mundo sabia o motivo. 

Eu também tinha consciência de que não havia necessidade de me atacar daquela forma. Iria de bom grado ao passado cumprir a missão. Era algo nobre. Uma chance de livrar minha patética família do destino nojento de carregarem a tradição de serem magos. Ou, seguindo a lógica do efeito temporal, apagar completamente aquele futuro de resistência e criar um novo onde eu não existiria mais.

No entanto, eu estava ali, com mercenários lavadores de pratos que se uniram a um imperador, depois de eu bater boca com um hamster e ser perseguido por macacos.

A verdade é que não fazia diferença. Enquanto eu não estivesse próximo de Heitaro, todas as chances caiam para pior. E aquele grupo não me enganava. Mesmo na apresentação de cada um dos cinco, isto é, Scholisto e Carialista com os três flemeios: Fainara, Flero — o alto — e Mêrigo — o baixinho de elmo —, ainda dava para sentir a desconfiança deles.

A ideia da aventura era simples: pedir uma missão — dessa vez de mercenários — para que a cabana fosse reconstruída com o dinheiro.

— O problema é saber se Nelino tá livre numa hora dessas — disse Mêrigo enquanto nós olhávamos o portal quadricular ornamentado, feito de pedra à nossa frente, depois de degraus coberto por plantas rasteiras.

Era a entrada do império.

Reza a lenda que as fronteiras dos timens eram vazias de propósito, pois os guardas ficavam escondidos a fim de interceptar os invasores na hora certa. Ou seja, minha cabeça poderia voar a qualquer momento se não fosse pelos rostos conhecidos. O que me leva a crer que limpar o chão salva vidas.

— Falem a verdade: como vocês são bem-vindos nesse império? — perguntei. — Favores domésticos não abrem tamanhas portas de possibilidades.

— Olha — Flero sorriu —, eu sei que algumas pessoas são terríveis na sociedade humana que você veio... provável até mesmo que você seja, senhor agiota. 

Sim, eu já tinha apresentado o meu nome a eles. Contudo não seria estranho prever que o imperador me chamaria de senhor agiota em vez de Síssio.

— Mas aqui eles sabem que não temos nada a ver com conflitos passados — continuou. — As crianças até nos agradecem nos finais de semana, lançando presentes dos telhados com toda a vontade para nós.

— Sério?

— Sim, eu já tenho uma coleção de pedras.

— Tacar pedras em visitantes não é forma de agradecimento em nenhum povo!

— Subjetivo.

É, como eu imaginava. Os timens não tinham acabado com a aversão contra os seres de fogo. Me espanto até mesmo pelo fato de que o imperador os permita naquela terra.

Há muito tempo, os timens suspeitaram dos flemeios por conta de vastos incêndios ocorrido nas florestas e decidiram retaliar a presença deles nas áreas próximas. O problema é que um conflito direto geraria mais fogo pela região, então desistiram.

— O importante é que temos o contato com Nelino — disse a anã, andando pelos degraus da entrada milenar.

— Mas por quê? Ser mercenário não devia bastar pra-

— Idiota — Mêrigo me interrompeu —, nós somos filhos adotivos de anões. Por mais que nosso sangue seja flemeio, a lei real não nos considera vilões por completo.

Que contraditório. Não é só o imperador que era desconhecido para mim. Até o sistema parece cada vez mais misterioso.

Mesmo assim, não me espantei quando adentramos a cidade e nos deparamos com os timens. Eram como nos livros: homens sem barbas, mulheres com cabelos um pouco curtos. Eram todos altos, com túnicas junto de calções gordos ou saias artesanais. Tudo bem enfeitado, combinando com as pupilas afiadas e olhares heterocromáticos.

Eu podia apostar que era próximo de meio-dia, já que havia pouca movimentação além de alguns ferreiros negociando em uma tenda e pessoas nas estalagens servindo as mesas nas calçadas. O curioso era a fascinação que eles tinham por plantas, desde ortigas até flores laranjas. Talvez, por lá, havia mais vasos pendurados por correntes nas fachadas do que moradores.

No entanto, mesmo num ambiente tão delicado como aquele, os olhares enrugados fervendo a desconfiança de alguns timens arrepiavam as minhas costas.

— Olha como nós somos amados: todos estão nos olhando — sussurrou Flero.

Quem tem uma autoestima assim!?

— Falem sério. Como conseguiram a confiança do imperador? — Eu persistia.

— Existem técnicas que não devem ser reveladas a ninguém, garoto — disse Carialista. — Principalmente envolvendo temperos e machados.

O que ela quis dizer com aquilo? Alguém cozinhou um guisado pro imperador e ele aceitou uma nova ordem mundial?

Fainara me cutucou, interrompendo minha tensão que só piorava.

— O que foi que eu fiz? — Acabei dizendo no espanto.

— Olha pra cima...

Eu tinha me esquecido.

Aquele povo gostava das alturas.

Havia muitos aglomerados de pessoas penduradas em árvores em cima dos tetos: garotas conversando nas bordas, com suas pernas chutando o ar enquanto aproveitavam o vento, jovens sem blusas pulando sobre galhos enquanto tentavam neutralizar rivais, adultos coletando frutas grandes nos altos e lançando em cestos dos amigos... 

Os timens adoravam adrenalina.

Era quase uma abominação ficar parado por muito tempo ou sem interagir, já que, na essência deles, as atividades com outras pessoas representavam vida por um caminho, e ser inerte, regressão.

O curioso é que eles não possuíam uma constituição física enrijecida. Numa queda de braço, os humanos sempre ganhariam, mas a flexibilidade, coordenação motora e o fôlego contornavam a desvantagem nas guerras.

O problema era o uso execrável da mana que alguns outros povos usavam.

Se por um lado, os timens foram agraciados de não poder usar magia — já que seus corpos não eram capazes de absorvê-la —, por outro essa era a principal fonte de poder e opressão da época. Eles não sobreviveram até o tempo das armas de fogo.

Mas toda a minha admiração pelo lugar exibida nos suaves movimentos das plantas entre as construções deu espaço ao temor quando entramos numa área militar cheia de tendas. Fomos recebidos pelo som dos ferros sendo batidos e pelos olhares dos soldados sem armaduras em toda a parte enquanto passávamos pelos caixotes e lanças espalhadas.

Fora do aglomerado, nos aproximamos de um pequeno velhinho calvo. Ele aproveitava um banho de sol em cima da grama, a metros de distância de uma estratosférica pirâmide de concreto à nossa frente que eu tentei ignorar com todas as minhas forças.

Ele descansava com a cabeça pousada sobre as mãos. É, parece que meu papo sobre ser inerte foi sofreu um ataque nuclear daquele velhinho. Hora de botar as culpas nos livros.

Por outro lado, o idoso foi um dos únicos que não cerrou as sobrancelhas.

— Oh! — Ele se levantou numa velocidade incrível e ocultou as mãos nas costas, exibindo um olhar afável, aproximando-se. — Os nossos intrusos favoritos! Como vocês ainda não morreram?

Retiro o que expressei.

— Eu deveria me orgulhar em ser um intruso favorito ou isso é algum tipo de ameaça de morte? — sussurrei a Flero.

— Depende se você é ou não da espécie dele.

“Será que eu consigo agendar meu enterro antes de dormir?”

Carialista deu um passo à frente e cumprimentou o idoso ao lado de Scholisto. Aquele timens era um pouco maior do que os anões.

— Horário de descanso, senhor Linêrio? — perguntou ela.

— Tempos de tensões internas me fazem repousar. Nunca pensei que diria isso, mas sinto saudades quando o inimigo vinha de fora. — Ele estreitou os olhos, me fitando. — Nossa, um humano no grupo?

— Esqueci de lhe apresentar: o nome dele é... qual é o seu nome mesmo, agiota?

Como alguém pode se esquecer de algo citado há minutos? Amnésia voluntária só acontecia ao meu redor?

— Não sou um agiota! — respondi. — E meu nome é Síssio.

— Bem, são sem graças de perto ou de longe — disse Linêrio.

Eu ainda me iludia.

— Um receptáculo de mana e chatice — continuou. — Contudo, gosto da ideia de mais alguém pra esse grupo de diferentões, afinal, quanto mais pessoas, mais favores para nós!

Não, eu não podia aturar essa vida. Chega de viver aquelas lembranças sórdidas em lavar os pratos e passar o pano. Era mais fácil o prato me lavar e eles esfregarem a minha cara no chão do que aturar mais temporadas longas de trabalhos que não levam a lugar nenhum.

— É o trato, certo? — Carialista assentiu calmamente. — Mais favores, mais dinheiro.

Hora de lavar os pratos com os pés enquanto limpa o chão com a cabeça. Não sei se é possível. Não custa tentar.

— E então? Vão fazer o favor ao tenente? — perguntou o velhinho.

— Necessitamos falar com o imperador. — Scholisto foi curto.

Linêrio fez uma careta, dando de ombros. Em seguida, mancou um pouco pelo gramado e assobiou quatro vezes. O som estridente atraiu sete criaturas que correram até nós.

Eram lagartos alaranjados de dois metros. As costas arredondadas eram cobertas por um pequeno manto de flores. Eu tinha estudado muito pouco sobre essa espécie exótica, porém, era evidente que foi marcada pela domesticação. Os timens os chamavam de dragões floridos — mesmo que não fosse da mesma espécie.

Os répteis pularam em cima do idoso e começaram a lambê-lo. Queria ter a coragem o suficiente para domesticar um animal que tem “dragão” no nome igual um cachorro caramelo.

— Vamos, meus filhos — eles retrocederam e ficaram lado a lado, logo depois do pedido do velho. Um adestramento mágico. — Deixe-os montarem em vocês, está bem?

— Espera aí... — Tive que exteriorizar minha confusão. — Vamos montar neles e eles vão escalar aquele troço monumental?

— “Aquele troço” nada mais é do que parte do grande templo do imperador — disse Mêrigo, de braços cruzados. — Quanto mais alto, mais importante será.

— Aliás... — Scholisto complementou. — Se ele não estiver lá...

Linêrio alargou um sorriso banguela no rosto.

— Pelo visto você já sabe.

Tive que montar no lagarto florido que se aproximava. Parecia que ele estampava um sorriso no rosto esticado que era semelhante a de uma tartaruga. O bom era que o provável mal estar da viagem seria compensado pela sela confortável no meio das flores. Segurei nas rédeas com uma dúvida que me fez ser capaz de falar com a temida companheira, também montada ao lado.

— O que seu pai já sabe? — perguntei a ela.

— Ah, não esquenta. É simples: se Nelino não estiver disponível no templo, vamos ter que pagar o erro com trabalho escravo por ter ido ao templo em vão... Geralmente um do grupo é escolhido para chicotear as costas na frente dele por três dias e algumas noites, mas-

— Cadê as quantidades de noites?!

— Na sua imaginação!

Não tinha como piorar. Era como jogar cara ou coroa, só que sem a moeda e com os olhos vendados. Mesmo assim, era o imperador. Qualquer “a” bem aplicado poderia render uma boa renda... ou uma passagem vip à forca.

— Está certo, quero cair fora daqui — sussurrei para o nada. 

Scholisto assentiu ao timens.

Uma estratégia que os brinda com mais mão de obra. Aliás, pelas facetas calorosas dos timens na nossa presença, não acho que as recompensas cobririam os custos à cabana.

Os lagartos escalaram as montanhas com tanta facilidade que só o sol e o medo foram os únicos desafios na viagem icônica pelo concreto escuro. E digo mais: até que foi divertido ir contra o vento e senti-lo percorrer pelas bochechas enquanto minha vida dependia de um lagarto e duas rédeas milenares compradas provavelmente em uma feira no meio do mato.

Em menos de um minuto, nós já estávamos debaixo da fachada do templo de mármore reluzente, que era apoiado por pilastras enormes enfileiradas. A fidelidade dos animais ao dono era tanta que minha montaria não me jogou do alto igual o ódio de toda a natureza a mim.

Todos saíram dos lagartos, menos Linêrio.

— Ficarei esperando aqui para levá-los depois do fracasso. Tenho que guiar vocês aos serviços da punição.

— Viu? — Flero me deu uma cotovelada. — Ele está nos esperando para nos guiar. Olha como nós somos-

— Cala a boca, por favor — retruquei.

— Quer apostar, velhinho? — disse Mêrigo, que não estava nem aí para minhas costas perante chicotes às três da manhã.

Carialista pigarreou.

— Nós já estamos em uma, filho. — A anã foi na frente, em direção a grande porta protegida por dois guardas segurando lanças. — E vale nossas honras.

"E minhas costas."

Não foi difícil chegar ao salão principal — por mais que o templo fosse bem fiscalizado. Bastou Scholisto dizer que eram os famosos mercenários permitidos pelo imperador que os guerreiros pelo caminho liberavam as passagens pelo grande corredor com paredes de bronze principal. É claro, pensei que eu ia morrer em certos pontos quando meus olhos se encontravam com as pontas das lanças.

Na última entrada, adentramos o salão principal.

O trono ao fundo estava ocupado por um timens insatisfeito.

Era um jovem adulto ostentando um longo cabelo marrom que parecia uma juba de leão. O problema era que jamais combinaria num corpo tão magro como aquele, coberto por uma túnica dourada de mangas longas. Balançava um cálice ornamentado com pedras brilhantes, observando o líquido dançar. Parecia carregar o peso do tédio só para ele.

Até seus pequenos olhos cinzas nos fitarem.

Todo o seu rosto foi vivificado e a atmosfera pesada dele foi transformada num interesse súbito. Aquele dia não iria terminar tão cedo.  

           



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