Volume 1

Capítulo 3: Forasteiro da Desgraça

Era um casal de anões ao lado de três jovens flemeios, que são seres com cabelos de fogos.

Curioso pensar nessas duas raças juntas em um lugar claro como aquele. Ambos os tipos de seres costumavam habitar regiões montanhosas ou cavernas profundas, garantindo pouca interação ao exterior na busca de metais. Os “esquentadinhos” flemeios iluminavam os túneis com seus cabelos flamejantes enquanto os pequenos cúmplices cavavam... Isso até as velas e archotes especiais virarem moda, é claro.

— Filha, está me dizendo que uma pedra gigante saiu da floresta e esmagou nossa cabana enquanto xingava um humano com palavrões que nem sua mãe falou? — disse o anão senhor do grupo à jovem flemeia. Trajava um gibão cor de vinho abotoado e uma calça preta.

— S-sim.

— Não acredito que a pedra xingou tanto assim.

O fato de ela ter xingado mais é quase tão assustador quanto um atropelamento contra a residência?

Porém, por um lado, fiquei feliz em saber que não foram os papagaios que mandaram minha mãe para longe. Por outro, fiquei triste em ser responsável por atrapalhar a linha do tempo daquela família. Sabe lá o que aconteceria no futuro por causa desse evento.

Aliás, a flemeia pareceu receosa em confirmar. Tinha uma aparência delicada que casava muito bem com o jeito de ela cerrar um dos punhos no meio do busto. Apesar disso, ela usava uma armadura cor de ébano, quase como se estivesse preparada para o combate, assim como os dois jovens ao lado — contrastando com a palidez deles. Muito provável que usassem para evitar que a pele causasse incêndios repentinos fora das cavernas.

— Não fique assim, Fainara — disse a anã de vestido plebeu. Ostentava longas tranças castanhas quase tão caídas quanto as bochechas gordinhas abaixo dos pequenos olhos. — Lembra quando nossa casa pegou fogo com seu pai dentro? Isso é normal, acontece.

O “normal” deles soa como comer dinossauro em cima de uma árvore pré-histórica pegando fogo.

— Tem razão, mamãe... — Fainara assentiu. Os dois cachos nas têmporas balançavam como brasas serpentinas.

Eram flemeios adotados. Qualquer historiador acharia isso bizarro demais. Nem nas séries de TV alguém já imaginou tal união familiar.

O mais alto caloroso do grupo começou a rir. Ao contrário do provável irmão, aquele flemeio tinha grandes olhos num rosto sereno. Ele fazia questão de mostrar os dentes claros. O cabelo era raspado, dando maior liberdade às pequenas chamas dos fios serem sopradas pelo vento.  

— É óbvio que foi um golem. — disse ele. — O santuário deles está lá em cima, além do bosque.

O flemeio de elmo cruzou os braços e balançou a cabeça. Era o menor dos esquentadinhos.

— Nossa, Flero, você descobriu isso sozinho? — disse o pequeno. — Pensei que um mega rola-bosta errou a mira e acabou jogando o excremento na nossa casa.

— Olha, Mêrigo, de bosta já basta você-

O baixinho tentou esganar o irmão risonho até a mãe anã levantar a voz.

— Mesmo assim, isso não me parece ser um motivo muito aceitável — disse o pai anão. — Os golems são territoriais por natureza. Só rolam quando se sentem ameaçados.

Um grandalhão de dez metros se sentiu ameaçado com um sujeito de um e setenta? Eu era uma ameaça do nível de um chihuahua desdentado.

Bem, ao menos aquele anão não era normal, apesar de baixo. Posso ser suspeito para falar, já que nunca vi a espécie antiga na vida, mas o punho dele no cabo da espada na bainha, somado ao olhar enrugado cinza acima da barba grisalha me parecia aspectos de um guerreiro experiente — o que me dá mais medo de ser desvendado.

Talvez você dissesse pra mim, naquele instante: “Então saia, imbecil”. Que ilário. Eu sairia se não fosse pela espada e o delicado machado da mãezona ali. Qualquer movimento na moita seria motivo deles lançarem ferro na minha direção — e até eu explicar que não era um animal, eu já estaria na panela com uma maçã na boca respirando tempero.

— Então alguém invadiu o território e um dos golem perseguiu? — perguntou Fainara ao pai.

— Provável. Ou talvez... seja proposital? Não descarto a possibilidade de acidente, já que a floresta parece uma grande ladeira, mas...

Eu não sei se um historiador sentiria inveja dessa situação na qual eu me encontrava. Vê-los interagir me fazia esquecer das picadas de mosquito e do risco de levar um coco atômico na cabeça a qualquer momento. No entanto, o ambiente tornou-se tão insuportável entre as moitas da mata que tive que dar um tapa em um mosquito pousado na minha canela.

O tapa ressoou mais do que trombeta de guerra.

A anã virou o rosto à moita onde eu estava bem na hora do respaldo.

— Talvez aquele humano possa nos ajudar. — Ela apontou para mim.

Tá. Definitivamente ninguém sentiria inveja da minha situação. Respirei fundo e levantei, erguendo os braços para garantir que não houvesse suspeita.

— Não mexa nenhum músculo, rapaz. — O anão sacou a espada. — Para o seu próprio bem.

— Não precisa ser tão agressivo, pai! — Fainara se aproximou do pequeno homem, me fitando assustada.

— Como não? — Mêrigo ajeitou os elmos e cruzou os braços. — Vai que ele tenha feito isso de propósito. Algum de nós poderia estar morto agora... ou todos nós. Qualquer suspeita é válida.

É, estar escondido em uma moita próximo da cena do crime não contribuía em nada na minha situação. Eu deveria ter calculado a suspeita antes mesmo de dar umas lições em companheiros peludos.

A anã apontou o machado judiado e disse:

— Essa floresta costuma ter entrada e saída para pessoas. Por que surgiu logo aqui?

— Eu estava perdido e então decidi me guiar pela destruição do golem.

Fui incapaz de pensar em nada melhor naquela pressão toda. Dizer “eu arrumei treta com um hamster que se diz a própria natureza e resolvi dar uma de escoteiro por aí caçando alguns cogumelos” seria um desastre completo. Além de que foi a única coisa que pensei.

— Quem seria burro o suficiente para seguir um rastro de destruição na esperança de achar algo tranquilo no fim da viagem?

— É porque eu sou um forasteiro.

Eu sei, minha resposta foi horrível, mas é o melhor posicionamento quando se está em uma terra muito diferente dos mapas que certas pessoas forneceram num treinamento que mais parecia um meio-período em forma de aulas.

— Não sabia que ser forasteiro era sinônimo de burrice — declarou Mêrigo, sorrindo. Flero não conseguiu segurar a risada.

— Não sabia que você era de outra região, Mêrigo — disse Flero antes de ser quase esganado pelo companheiro.

A anã não parecia satisfeita com a minha justificativa. Poupar ela de ouvir outras pérolas ou continuar me afundando no poço?

— Explique-se direito antes que eu confunda você com lenhas. — A pequena subjugadora pousava o cabo do machado na outra mão.

— Vi a destruição que o golem causou e fiquei curioso até chegar aqui, tá legal? Ser recebido com tanto carinho já basta pra acabar com a minha pequena exploração pela natureza. E-e além disso, pra que eu planejaria destruir vossa residência? Vocês nem parecem ter grande...

— Grande? Grande o quê?

— Ah... Ah! G-grandes confusões. Inimizades e tal...

— Somos mercenários, rapazinho. Há todo motivo do mundo para nos destruir tendo várias guildas pela região do reino ao redor e o apoio de clandestino do imperador Nelino. Não nos confunda com qualquer um.

Imperador Nelino? Quem diabos era ele?

Estudei diversas dinastias de todas as raças. Sei que minha memória fora praticamente saqueada pelo açúcar da modernidade, mas virar a noite aprendendo história era um trabalho que só eu deveria fazer em troca de dinheiro no bolso e problema na mente.

O “li” no nome parecia familiar. Poderia ser um timens? “Não, impossível”, pensei. “Eles não se davam bem”.

— É, ninguém passa pano ou cozinha como nós pela região! — Flero fechou o punho direito, orgulhoso.

Ele falou de modo tão épico quanto um guerreiro que matou um dragão usando um graveto abençoado. Bem, sem detergente ou sabão de qualidade lavar louças deve ser quase isso, mesmo.

O anão de ombros largos respirou forte e coçou a cabeça.

— Abaixe o machado, Carialista. Não há nada que possamos fazer. Mesmo que o monstro tenha xingado algum homem, é impossível ter alguma prova contra o sujeito.

— Mas querido, ele pode ser algum espião do reino ou de facções rivais!

O quê? Por que eu me envolveria com isso? Destruir o esquema imperial de lavadores de louça?

— Nenhum deles seria descuidado ao ponto de sair da mata perante cinco inimigos. É suicídio. E também, qualquer um já teria fugido antes mesmo de flagrar nossa conversa sobre os destroços.

Céus, aquele papo estava esfolando meu ego.

— Ou alguém que só quer pratos limpinhos — ousei dizer.

— Não entrosa, estranho — respondeu Flero.

— Perdão, mas se quiserem um serviço superior que cubra o prejuízo deixado, eu tenho uma oferta saborosa.

Pode ser que eles tivessem aumentado a suspeita a partir daquela fala. Mas as medidas deveriam ser tomadas de forma rápida antes que escalassem para fazer sopa de cogumelos antes da chuva torrencial de bananas.

E mais: se eles se sentiam como verdadeiros mercenários, então qualquer oferta deveria ser posta em pauta.

Mêrigo revirou os olhos e suspirou.

— Dizer "oferta saborosa" não convence ninguém, seja mais objetivo.

Tá, quase toda oferta.

— Três baús de ouros. Talvez eu descole mais.

— Desembucha — disse Carialista, abaixando o machado.

Era a chance. Uma brecha que nem imaginei ver naquele fim de mundo frenético. Eu tinha que ser marqueteiro o suficiente pra atrai-los o máximo possível.

— Me acompanhem até o Leste. Quero ajudar o polêmico pensador Heitaro, para que uma nova era surge em meio à ignorância ao nosso redor. Daí seremos não só ricos, mas famo- 

Todos me deram a costa e começaram a andar pela grande trilha.

— E-ei! Não me deixem nesse inferno!

Fainara virou-se, um pouco receosa de me olhar.

— Desculpe, moço, mas fama por aqui significa problema.

— E ninguém aqui é maluco de aceitar a oferta de um cara estranho que acabou de sair do mato — disse Mêrigo.

Está bem, bom senso era irrefutável na situação.

— Eu só quero ajudar, ora!

O flemeio baixinho abanou a cabeça e ajeitou o elmo.

— Eu falaria isso se fosse um agiota.

Agora eu era um agiota?!

Por que não me chamar de, sei lá, um explorador ou até escoteiro? A natureza botou todo mundo no modo difícil ou é só impressão minha?

Logo em seguida, o anão parou os passos. Os outros não entenderam e esperaram.

— Venha conosco — disse, coçando a barba.

— Scholisto, não seja cabeça dura! Olha o quão suspeito esse cara é! — Carialista pousou a mão no ombro dele. Por um minuto achei que ela iria chacoalhá-lo.

Era uma pena assisti-la. Não compreendia o julgamento adequado daquele anão, com experiências hábeis em identificar guerreiros através de uma olhadela.

— Querida, mantenha o inimigo por perto e as chances de matá-lo são maiores.

Por que eu ainda tinha expectativas naquele cara?!

— Ou as chances desse humano matar algum de nós durante a noite disparam — retrucou o grande Flero, no motim de suspeitas.

— Não se alguém matá-lo primeiro — sorriu Mêrigo, estampando malícia.

Foram tantas ameaças de morte no mesmo dia que eu me questionei como a própria Morte não veio para perguntar o que estava havendo.

Bem, pelo menos já era um grande passo para me livrar um pouco da natureza insuportável. Cogito que, se eu ficar entre pessoas da época, nenhum fio de raiz me enforcará no meio deles, já que a linha temporal dos outros serão ainda mais afetadas, e o hamster com certeza não quer esse desastre nessa era.

Carialista concordou com a sugestão.

— A decisão já está tomada. Bem-vindo. — Scholisto virou e começou a caminhar na linha de frente. Os dois flemeios deram de ombros, enquanto Carialista apontava para os dois olhos na minha direção. “Estou de olho”, ela deveria pensar. — Nós vamos até ele pedir um certo valor. Comporte-se.

— C-claro.

Confesso que foi mais rápido do que eu esperava. Não precisei segui-los em segredo para achar a civilização mais próxima. Eu já estava em uma comunidade como membro. Um avanço monumental se comparado a poucos minutos atrás na selva no diálogo que me deixou com alguns hematomas... abstratos.

Eis um avanço perigoso.

Quando me aproximei do grupo na caminhada, Fainara diminuiu o ritmo e ficou do meu lado. Sua mão enluvada preta pousou no meu ombro.

— Pois não? — disse eu, tentando ignorar a chaleira que esquentava no meu ombro. O tecido derretia abaixo dos seus dedos.

— Se você mexer com alguém da minha família, eu te mato antes que perceba o sangue descendo na hora derradeira.

A flemeia de armadura se afastou sorrindo e eu diminui os passos.

Parecia que eu tinha provado limão com vinagre.

É, não era só a natureza que poderia me odiar.

Comparado a isso, até que os tratamentos dos primatas não foram tão ruins assim.

Pelo menos eles me davam cocos frescos, não ameaças de mortes.



Comentários