Volume 1

Capítulo 2: Erística Símia

Quando eu era criança, não imaginei que nada pudesse dar mais medo do que as descrições dos monstros da Era Mágica.

Séries, filmes e desenhos retratavam o tempo anterior como um eterno duelo entre homens contra criaturas que habitavam as profundezas da natureza. Pássaros carnívoros esfoladores de crânios, vermes do tamanho de um tronco e o imponente Rei Morcego-rato.

No entanto, estar por ali é pior do que não ter televisão. As coisas só pioram quando minhas pernas tremiam e minha urina me ameaçava ao ver um demônio que eu citei antes.

Se você chutou algumas das criaturas do primeiro parágrafo, parabéns: você errou.

O macaco.

Sim, em posse da arma, ele poderia me desintegrar apertando o gatilho. Eu não queria ir ao mundo dos mortos para ter que explicar como um macaco me transformou em pó numa praia depois de me roubar.

E eu não podia dizer ao peludo: “Poderia, por obséquio, abaixar essa arma, pelo bem das relações interpessoais?”, ou um: “Cara, tem um carrapato na sua testa.”, e aproveitar a distração a fim de pegar a pistola. O problema era que ele era bem capaz de atirar em mim e almoçar o inseto. Além de que símios não falam, mas isso era um mero detalhe.

Assim, rendido, me rebelei, chutei a areia e rolei para o lado. Por sorte, não ouvi nenhum tiro, muito menos vi alguma coisa, já que parte dos grãos foram para minha cara e eu gritei. Sim, tudo fez parte do plano ficar cego na ação... pelo menos quando não custava minha vida.

É claro, o primata piorou. Parecia um furacão socando o nada, girando para um lado e para outro. Assim, tive a chance de cair fora da praia, chegando na temida mata densa.

Existe um problema em superar determinado problema: haverá um risco maior de aparecer outro problema. Antes de dar conta, um coco pode cair na sua cabeça e desfazer toda a sua corrida numa floresta sufocante.        

E foi quase o que aconteceu comigo: um coco numa velocidade suspeita caiu no meu peito e me jogou numa moita acima de raízes. A sorte foi ter a segurança de que, para que o destino tivesse prazer de ver meu sofrimento, eu teria que viver mais.

— Que desgraça é essa?! — Acabei dizendo ao olhar... macacos sendo carregados por gaivotas de bicos metálicos pelos ares?

Os peludos carregavam cocos nas mãos. É.

Bem difícil de engolir um relato desses.

De súbito, desviei dos meteoros de cocos, me camuflei em outra moita e corri no momento em que pararam de lançar. Durante o trajeto, o horizonte denso estava cada vez mais aberto. Caramba. Se eu não tivesse as botas especiais do programa, meus pés já estariam esburacados.

Pude ver o fim radiante da floresta com menos árvores. Pela lógica dos problemas que citei, algo tinha que dar errado, como sempre.

Outro primata quis brincar comigo e pulou nas minhas costas. Para infelicidade das boas maneiras, dei uma cotovelada nas suas presas para longe do meu pescoço e ele grunhiu, dormindo suavemente no chão e, assim, escapei da mata.

Liberdade.

Os animais pararam no limite da mata. Fiquei em pé numa área ampla e rochosa, com várias pilastras de pedra erguidas em cima de conjuntos delas sobre o chão. Bem longe dava para ver a outra região da floresta, só que ostentando troncos maiores do que a anterior.

Mas eu me virei aos macacos e aves. Alarguei um sorriso.

— O que foi? Estão com medo? É terrível ver a vitória alheia, né? Aqui não tem banana pra vocês! Apenas um vencedor!

Ao menos eu poderia ser vergonhoso lá, sendo mitológico nas provocações como um perfeito garoto do jardim da infância que se sente um máximo depois de chamar alguém de bananão na frente da professora. Não é como se eles fossem capazes de me denunciar pro diretor daquela desgraça de região. Zona essa que mais parecia um vale das trevas desgovernado.

De repente, alguns da plateia de primatas olharam ao horizonte atrás de mim, guincharam e deram as costas. As gaivotas bateram as asas, partindo para longe dos galhos.

— Isso, podem fugir! Fujam! O vencedor é o último que fica. Afinal, o... maior...

Uma grande sombra redonda cobriu o chão envolta de mim.

Pestanejei.

Alguma coisa estava atrás de mim, tapando a luz do sol.

Me virei e vi algo parecido com uma rocha redonda de dez metros, que possuía pequenas pernas e braços. Havia rachaduras no peito que revelavam um brilho verde luminoso escondido dentro daquela armadura de pedra. No alto, duas pequenas esmeraldas ocupavam o que parecia ser o rosto.

Eram os olhos. Estavam fixos em mim.

Suor escorria pelo meu rosto.

Aquilo era um ser.

— Com licença, senhor, você sabe onde fica o vilarejo mais próximo? — perguntei de modo tenro.

— SEI ONDE FICA O MUNDO DOS MORTOS — respondeu o grande sujeito com uma voz de trovão. — MAS SÓ VOCÊ PODE IR AGORA.

Botei a mão no queixo e refleti.

— Não sei... parece um pouco longe.

— ESTÁ A SETE PALMOS DO CHÃO.

— Não sou uma toupeira, senhor-

Ele grunhiu, ergueu uma das mãozinhas e tentou afundá-la no meu crânio.

                                                        ➀ 

Eu estava correndo de um golem, era óbvio. Aquele lar de uivos, formações rochosas altas sobre o planalto, a inconveniência da localização... tudo apontava. Isso queria dizer que aquele ser não desistiria tão fácil. Além de que qualquer um que pensasse o contrário na minha situação seria transformado em miojo pelo rolo compressor em forma de golem. E eu não era muito a fim de macarrão artificial, muito menos a ideia de me tornar uma receita exótica amassada.

Depois que eu desviei das investidas constantes do grande ser, a bola gorda pedregosa tropeçou num tronco caído e foi derrubado. Era a chance perfeita de disparar igual um jato com pernas até o outro lado da região, tendo o objetivo claro de chegar na outra parte da floresta. Contudo era necessário atravessar o planalto de rocha.

Quando corri o bastante, recuperei o fôlego, virei-me e vi meu adversário se erguendo de maneira penosa entre as árvores e moitas. Feito isso, o grandalhão saltou alto, ficou igual um tatu e rolou em alta velocidade na minha direção.

— CONTEMPLE MINHA FORÇA, HUMANO!

— P-por quê... eu não posso contemplar de longe!? — disse eu, o mais alto que eu podia.

— SENTIR A FORÇA TAMBÉM É UMA FORMA DE CONTEMPLAÇÃO!

“Não acho que seria muito contemplativo 250 toneladas na minha cara”. 

Assim, correr igual um idiota já não era o bastante, a nova moda seria correr igual um condenado, já que eu sabia que naquela gincana agradável com meu pequeno colega pedregulho, um tropeço significava acordar num isekai sem volta. Por isso, neguei a tentação de virar o rosto para trás novamente. Entretanto, nesse senso de perigo, algo incendiou os meus nervos.

Era vida ou morte, suspiro de alívio ou dor. Eu já conhecia essa situação antes, as extremidades de uma presa, bem como o fluxo estranho dentro da minha mente prestes a regurgitar uma energia ao meu corpo.

Mana.

Ela queria ser exteriorizada.

“Me recuso a trair meus princípios numa situação tão patética como essa!”.

Eu precisava distrai-lo.

 — E aí, grandalhão? Por que você não fala? Está chateado com a minha presença, solitário? Você só está sendo uma pequena pedra na minha bota! — gritei de novo. — Entendeu? Pedra na minha bota...

— SUA PROVOCAÇÃO É TÃO HORRÍVEL QUANTO SEU SENSO DE MODA.

— N-não foi eu que escolhi essas vestimentas, tolo! — respondi. — Além disso, por que não pode conversar civilizadamente?

— EU QUERIA CONVERSAR CONTIGO, PEQUENO HOMEM, MAS VOCÊ NÃO SE APROXIMA DE MIM!

Bem, pelo menos ele falou algo bom.

“Certo, foi um grande mal entendido entre nós dois, isso já facilita muita coisa. Então nós devemos parar e...”

Espera.

Tem algo de errado aí. 

Por que um ser com mais de quatro metros com intenção homicida queria parar pra conversar comigo?

— F-fala sério, grandalhão! O-o que houve contigo? — Confesso que minha voz ofegante estava falhando durante a corrida.

— EU SÓ QUERO CONVERSAR — respondeu, enquanto rolava em alta velocidade.

— Mas já estamos conversando!

— NÃO DO JEITO NORMAL!

— Concordo. O problema é que eu também não acho normal outro indivíduo querer DESTROÇAR o próximo só para conversar com o corpo amassado!

Ele grunhiu.

A sombra do golem que me perseguia crescia cada vez mais à medida em que a grande floresta se revelava mais densa conforme minha aproximação.

— NUNCA PENSEI QUE OS HUMANOS SERIAM TÃO INTELIGENTES A ESSE PONTO!

Acho que alguém me confundiu com chimpanzés. 

— A VERDADE É QUE EU NUNCA ESTIVE NEM AÍ PARA SERES PEQUENOS. TUDO COMEÇOU A MUDAR SEMANA PASSADA! MALDITOS SEJAM...

— S-seria muita ousadia perguntar o que eu tenho a ver com treta de semana passada?

— SEI DA ÍNDOLE DOS SERES ENTRE UM METRO E CINQUENTA E DOIS METROS. NÃO SÃO CONFIÁVEIS!

Então se eu tivesse ananismo eu estaria tomando chá com ele?

Meu fôlego não suportava tamanha bizarrice.

— SEMPRE COM TRUQUES BARATOS NA PONTA DA LÍNGUA! — continuou. — FORAM VOCÊS QUE AJUDARAM A SEQUESTRAR OS MEUS POUCOS IRMÃOS QUE NÃO RESOLVERAM IMIGRAR AO SUL NO RITUAL DO OUTONO. PRESENCIEI TAMANHA MONSTRUSIDADE POR DIAS ATÉ NÃO SOBRAR NENHUM. OS QUE FORAM AINDA NÃO VOLTARAM PARA ME AJUDAR!

— E não fez nada? Com esse tamanho todo aí!?

— COMO EU PODERIA FAZER?

— Sei lá, ESMAGANDO os seres na hora de um sequestro.

— DIFERENTE DE VOCÊ, OS SEQUESTRADORES NÃO ERAM INCOMPENTES AO PONTO DE ESCONDER A MANA NUMA SITUAÇÃO DE AMEAÇA.

Precisava tocar na ferida?

Eu tinha esquecido. Os golems eram um dos poucos seres com espírito que tinham a visão interior sobre algum indivíduo. Assim, conseguiam distinguir aqueles que eram introvertidos ou extrovertidos, seus dons e fluxo da mana de cada um.

A floresta estava muito próxima. Droga, meu fôlego estava igual vaso de vidro perto de criança com bola de futebol. Então tive a ideia de dar uma oferta quase irrecusável para quem era minimamente inteligente:

— P-posso ajudar você a avisar os outros golems que estão no ritual ao sul, que tal?

— ELES JÁ DEVEM ESTAR TODOS MORTOS. QUEM SABE NO OUTRO MUNDO VOCÊ AVISA?

Acho que ele ainda me confunde com uma toupeira.

Com essa tensão se expandindo, saltei entre grandes folhas até as sombras das árvores gigantescas me cobrirem. Na correria, percebi que a floresta seria um declive sem fim, favorecendo a velocidade do golem que atropelava as árvores pelo caminho.

Meus pés pareciam duas rodas descontroladas saltitando entre as raízes que estavam pelo caminho. Mesmo assim, a resposta veio na minha cara... literalmente.

Pude sentir alguns cipós encostando em mim enquanto a sombra da grande pedra aumentava conforme sua aproximação. Se era seguro ou não se pendurar em um deles, era melhor do que viajar para outro mundo depois de tropeçar numa jaca.

Num instante, agarrei um dos cipós, tirei minhas pernas no chão e, no lapso do impulso instantâneo, girei sobre uma árvore que abrigava o cipó igual um homem da selva. Juro que senti a crosta do golem chegar a encostar nas minhas costas no momento em que decolei do caminho. Mas nem sua curva desesperada ao lado foi capaz de me seguir.

Ele continuou seu trajeto desenfreado sem mim. O ser reverberou palavras estridentes que eu não consegui entender.

Eu tinha vencido a batalha. Minhas nádegas estavam intactas.

Levantei, limpei o traseiro e esfreguei as mãos. A sombra da floresta era perturbadora. Cobria todo os detalhes do chão inclinado, igual uma grande divindade acima do caos disfarçado. Nem parecia que a floresta queria me matar. 

— Nossa, hamster, cê só perde — eu disse, rindo para o nada com as mãos nas cinturas. — E sabe por quê? Por que o futuro está comigo. Nós temos canudinhos o suficiente para aniquilar todo o seu eco sistema-

Num susto, ouvi guizos pretensiosos chacoalharem.

Me virei e vários macacos pousaram na terra. Todos carregavam cobras cascavéis nos ombros. O grito era muito mais bizarro na companhia daqueles répteis peçonhentos.

— Se ao menos vocês soubessem falar...

                                                       

Não, dessa vez os macacos não responderam minha fala igual o pedregulho descontrolado. Tive que partir para uma “comunicação” pré-histórica, como alguns chamam, que consiste em rebater argumentações dolorosas com outras mais ainda. Por isso, omitirei partes da descrição da lu... quer dizer, da comunicação.

A experiência foi única. Depois de levar uma coronhada de ad hominem nas costas, tentativas de altercações por parte das cobras e um pontapé dialético na canela (tudo um pouco rústico, pelo calor do debate, é claro), só faltou algum macaco xingar a minha mãe no meio do furdunço, mas acho que os papagaios da floresta fizeram esse favor. O importante é que eles me incentivaram, mesmo que de forma um pouco brusca, a sair da mata.

O estranho era que eu não esperava achar rastros civilizacionais tão cedo. Pois logo quando terminei o declive acabei me deparando com uma trilha de terra no meio de uma paisagem tropical, que era repleta de açaizeiros e palmeiras esvoaçantes pelo gramado. Por sorte, o Sol foi amenizado pelas nuvens.

“Saí do inferno para entrar do paraíso”, pensei igual alguém que ignora o fato de ter enfrentado o apocalipse durante uma hemorroida grave.

Sabe o golem que saiu rolando pela floresta igual um desgovernado? Pois é. Ele atingiu uma residência de madeira que estava do outro lado da trilha. E advinha? Sim.

Tinha pessoas olhando para os destroços na cena do crime. Recuei e fiquei ajoelhado numa moita na borda da mata.

E não eram seres humanos.

Na minha frente, eu via pela primeira vez outras raças além da humana fora da TV e dos livros de história.



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