Volume 1

Capítulo 10: Três Macacos Celestes e Um Camaleão Trincado

Mana sempre foi um problema gerador de separações e formador daquilo que chamamos de barreiras sociais.

Quando olhei todo aquele ambiente de confiança, com os chrupiris e cia tratando favores e missões como se tudo aquilo fosse eterno, senti como se ouvisse uma piada cujo a punchline fosse o fato dela acabar antes mesmo da conclusão. Era óbvio demais que se manter numa árvore jamais resolveria o problema que os levaram a provavelmente ficar ali, então por que insistiam em aderir o que os ancestrais mandavam?

Os chrupiris são arteristas — classificação a raças especialistas no ofício da criação de efeitos corporais e ambientais, modificação de objetos e de elementos naturais, especialmente o líquido, incluindo encantamento. É quase o poder daquele mago clichê sapeca com chapéu pontudo e barba do tamanho de uma copa de árvore, com a diferença de que é ele quem cria os ingredientes e fornece-os. São únicos que podem executar com sucesso as palavras mágicas pra alguém virar um coelho ou um carro rebaixado prestes a ser vendido pelo seu pior inimigo de forma parcelada.

Só no parágrafo acima já dá para ter uma ideia do quão problemático essa habilidade pode ser, quando revelada a outros. Os únicos que foram livres de quaisquer tentativas de escravidão foram os elfos, pois o uso da arte como forma de projeção à magia era pouco atraente ao o que grande parte das sociedades buscavam... E também porque eles eram bregas demais e gostavam de abraçar árvore, dizem as lendas.

Porém, para que a mana deles fossem fortalecidas o suficiente para atuar em grandes ofícios, como o que o grupelho de mercenários queria, os chrupiris deveriam consumir um certo combustível em certos períodos.

— Percorrendo o lago marrom, vocês irão avistar uma cabana humilde à beira daquelas águas — disse a rainha. — Batam cinco vezes na porta entre intervalos de seis segundos para que a realidade em volta de vocês revele um sítio em campo aberto no local em que o lago deveria estar.

— Vossa majestade nunca nos contou sobre isso — disse Scholisto. 

— Oh — ela arqueou as sobrancelhas. — Não se sinta excluído, Scho. Faz parte do pacto que nós fizemos com os fraternaristas, e como é uma emergência, eu posso contar a vocês. Mas Já ouviu falar deles?

— O nome parece que é de um grupo de jovens que curte espinafre enquanto bate palma pra uma fogueira na praia — disse Flero, com uma teatralidade impressionante ao falar.

— Calado! — disse Rischeta, ao passo que seus chrupiris apontaram as lanças de madeira encantada para o queixo dele... ou ao menos tentaram, já que a altura deles não passava da virilha dos flemeios. — Mais um piu e vocês três serão as fogueiras deles! 

Bem, ser a foguera deles parecia quase igual a atravessar um lago marrom pra se encontrar com uma irmandade oculta da erva.

— Em resumo: — o avô disse — eles têm uma compaixão imensa a situação do nosso povo graças a filosofia deles de tratarem todos com igualdade. Acreditam que um dia serão recompensados pelo destino e pelas divindades por toda a justiça que semearam em favor dos oprimidos.

— Isso é... — Fainara juntou as palmas das mãos e respirou fundo, empolgada. — Tão maravilhoso-!

— Por 30 moedas de bronze, a hora — completou. — E calada, mocinha.

— Isso aí! — disse Rischeta. — Espera aí, vô... eles não fazem a produção de algas celestes gratuita pra nós?

— De fato, você me lembrou. É grátis, contudo somente para nós, os chrupiris.

— E-então eles não vão nos cobrar?! — Carialista tentava fazer um sorriso no rosto rechonchudo, mas só transparecia a ansiedade dela quando envolvia renda no meio.

— Claro que vão. Em nenhum momento citei a questão do cachê quando os entregadores são humanos ou anões.

Meu cérebro não esperava a palavra cachê desde que eu pedi um livro na internet de outro continente e veio um pote de sorvete com feijão semelhante a homúnculo dentro.

Olhei para baixo e vi Carialista murchar de desgosto.

— Não temos tempo para lamentações — disse o anão. — São as algas celestes, certo? 

— Sim. — Rischesta virou-se. — É só dizer o favor que irão pedir para nós que o recepcionista vai saber qual é a quantidade que precisamos. Só tomem cuidado na ida e na volta quando percorrerem as margens do rio. Ah, e recomendo que não desmate muito pelo caminho, senhor humano. Os macacos próximos do lago são bem territoriais.

Por algum motivo ela chamou minha atenção, sendo que tinha uma senhora tampinha do meu lado com um machado na cintura.

— Não se preocupe — respondi. — Macacos são os meus mais novos fãs.

Todo mundo me olhou. Só faltava uma interrogação gigantesca pairando no céu para aquela paisagem falar o que queria.

“São tão meus fãs ao ponto de quererem me estrangular de abraço”, pensei.

                                                 

A caminhada rumo às profundezas da floresta não parecia tão complicado para Scholisto, que se guiava por uma bússola velha de cobre enegrecido em vez de um mapa. Eu perguntaria se a bússola era movida por mana, se eu tivesse um pouco mais de disposição sobre a origem daquele objeto, mas minha noite tinha sido estragada por aquela jovem adulta stalker, levando minha vontade de falar pro saco.

Porém, havia uma baixinha que estampava incômodo no rosto fechado, com uma mão no queixo. Carialista andava na velocidade de um jabuti que tentava escalar uma árvore do tamanho de um edifício. Nem parecia que uma vida estava em jogo naquele dia cheio de palhaçadinhas e brincadeiras alegres ao lado de um trato de escravidão no qual Nelino esperava o desfecho sentado no trono.

— Senhorita Carialista — comecei —, sei que não é o futuro do grupo que está em jogo, até porque vocês podem completar a missão outro dia, mas poderia acelerar os passos pra gente completar essa missão nesta manhã, pelo bem da minha vida? Ou existe algum problema?

Em seguida, parei os passos junto do anão e me virei. Ela ainda andava olhando pro chão, com a mente em outro planeta.                                                            

— Hã? O quê? Ah! É mesmo, a aposta, eu tinha até esquecido dessa gincana.

Tratou meu destino como uma gincana.

— Mas não estou pensando nisso, desculpe, rapaz. É que eu estava com uma dúvida meio estranha sobre essa pequena missão que estamos fazendo.

Scholisto ergueu o rosto para olhar pra mim e voltou a andar.

— Vamos, Síssio, ela não vai parar de falar. É melhor ouvir andando do que parado, confie em mim.

— E-ei, cabeça de vento! Não fale assim de sua esposa!

— É por ser minha esposa que eu estou alertando o nosso companheiro — disse Scholisto.

Conheça o seu inimigo...? 

— Isso é um grande argumento — me intrometi.

Ela fechou os punhos e rangeu os dentes, andando mais rápido. Por um instante, olhando para trás, jurei que ela estava abrindo a mão direita e aproximando até o cabo do machado, mas acho que só foi impressão... e um grande arrepio nas minhas costas.

— Nós... nós precisamos das algas celestes, certo? Elas são a fonte de que precisamos para que os pequeninos lá consigam o que querem. Está no sítio de Labaredas. Os que estão lá são nossos aliados deles e fazem favores. Não acham estranho o fato de que nós estamos sendo provavelmente monitorados e vamos para uma comunidade escondida? Não seria muita imprudência? 

— Talvez — falei. — Mas uma fala ultra expositiva igual a sua, minha amiga, eu acho que será de grande ajuda para os pássaros. 

“Do jeito que as coisas estão indo, acho que os gaviões conseguem até reproduzir um rap pro Nelino. Entender palavras deve ser o mínimo”, pensei. 

— O imperador cultua enormes segredos, vide essa epopeia que estamos executando — respondeu Scholisto. — Um líder como esse consome os seus próprios segredos para entender o dos outros. É assim que funciona sua mentalidade.

— Céus, querido, isso é uma resposta? — perguntou a anã.

— Entenda como uma maneira de eu dizer que não importa o fato de estarmos sendo observados ou não, ou se a gente está contribuindo com a queda do reinado secreto dos chrupiris. Se ele quisesse, já teria destrinchado toda a civilização dos pequenos que vagam por aqui.

— Acho que ele deve está reservando isso quando estiver numa crise. — Cruzei os braços. — Daí ele arruinará tudo de uma vez no momento que mais precisar. Talvez um tráfico e vendê-los para mercenários, quem sabe...

— Para nós? — Carialista indagou. 

— Para os verdadeiros, lógi-

Ela tocou no punho do machado. Agora sem impressão. Engoli em seco e olhei para o horizonte.

— A-a única ameaça é a natureza — declarei. — Ela é uma caixinha de surpresas maldita, ao ponto de ser peluda. Bem peluda... Com dentes grandes um grito estridente.

— S-só vamos tomar cuidado com as grandes criaturas que habitam por aqui, tudo bem? O rei-morcego rato, vermes titânicos, pássaros carnívoros esfoladores de crânios... Ei, por que estão me olhando assim?

Eles estavam cerrando as sobrancelhas com as bocas entreabertas, como se eu fosse uma espécie de metamorfose irônica vomitando palavras.

— De onde você ouviu essas coisas? — perguntou Carialista. — De um bardo desempregado num beco escuro? Eu tinha um primo assim. Ele era um bardo anão, sempre inventava histórias. 

Estranhei a indagação. De novo me tratavam como palhaço?

— Ouvir “bardo anão” sempre é engraçado, querida — disse Scholisto, o grande homem cheio de risadas, com uma cara mais simpática e afável do que estagiário numa segunda-feira.  

“Como eles não sabem? São espécies predatórias famosas na região, assim como o porco subterrâneo!”

— Mas como não conhecem? O temido Rei-Morcego Rato, ele caça recém nascidos quando são expostos geralmente em redes a céu aberto, sem a supervisão dos pais!

— Senhor expositivo — disse Carialista —, um rato jamais voaria por essa região ou em qualquer outra. Nem verme é titânico e muito menos veste algum tipo de ferro, até porque armaduras hoje em dia estão caras e bichos como eles estão dentro das barrigas dos animais. O bardo que te falou isso certamente estava estirado numa praia vivendo loucuras de verão. Não adianta falar “rei-morcego rato” com letras maiúsculas para enfatizar o argumento. Eles não existem.

Ela se vingou de mim em uma única fala e ainda decifrou a realidade.

— Mas eu vi, eu juro que vi uma gaivota de bico metálico! Eles carregavam macacos que iam... atirar...

Pestanejei.

Ela já estava rindo, apoiando a mão no ombro do marido. Até Scholisto alargou um sorriso e balançou a cabeça, parando os passos ao seu lado.

Dois seres que mal pouco ultrapassavam a altura da minha virilha estavam rindo de mim. O mais amargo era saber que eu trataria meu próprio relato como uma loucura que só um mago diria. 

— Nossa... humanos forasteiros são hilários! — Carialista mal conseguiu falar, em meio as próprias risadas. — Ainda bem que eu não te decepei como pretendia na primeira vez que você nos encontrou.

— Obrigado?

— Só por isso eu vou te ajudar: não há como ter tantas criaturas colossais ou mortíferas como os pescadores e bardos falam...

“Ou que o futuro fala, não é, espertinha?”

— Porém, há dois grandes seres voadores bem conhecidas por aqui: o dragão Jacurutixo e o Abominável Urso Sem Pele.

— Abominável Urso Sem Pele, que irônico. E depois vocês riem quando eu falo de gaivota com bico metálico, né? O que ele faz, morre de infecção na frente da presa?

De fato, é uma morte abominável, mesmo.

Nós voltamos a andar pela mata sombreada.

— É uma criatura de pele vermelha com veias esbranquiçadas pelo corpo — disse Scholisto, como se falasse de um cachorro qualquer. — Tem dentes semelhantes ao de um roedor, só que afiados e do tamanho de sua mão, é claro. Vale destacar seu modo de agir: eles se escondem em arbustos ou cavam buracos no chão. A presa passa e vai direto ao outro mundo. Curioso é que aqui é o ambiente favorito deles.

Virei o olhar para os dois lados, com as mãos. Talvez haja um cara de foice e capuz preto me olhando, agachado na moita.

Eu tinha que respirar.

Minhas pernas poderiam desmontar e eu cair igual um boneco de pano.

As informações que o projeto me dera eram incompletas? Eles me odiavam tanto a esse ponto? Era tão simples, pegar arquivos da história conservados e ensiná-los!

“Distrair a mente. Distrair a mente!”, pensei.

— E a-a outra criatura? Um dragão, hein? É daqui da mata, também? 

Scholisto assentiu.

— Ele é o único dragão que não cospe fogo e que não ultrapassa dez metros, na fase adulta. Tem escamas verdes com leve tons carmesins nos enormes braços com garras, que usa para impulsionar na hora do pulo altíssimo.

— A cara dele parece a de um calango — disse Carialista. — Sorte que eles são muito pouco vistos pelas comunidades, até porque odeiam matas abertas e são herbívoros. Uma pena. 

— Uma pena?!

— Sim, ué. Minha panela é pequena, mas pode caber um braço cheio de escamas. É só a fome agir que todo mundo dá um jeito.

— Vocês são um bando de amaldiçoados, isso si-

Meu horizonte se borrou no mesmo instante que senti um frio no meu peito até meu joelho. 

O casal de anões não tiveram tempo para arregalar os olhos depois que viraram para me ver.

O sangue do meu corpo flutuou até as folhas das copas que nos sombreavam para só depois eu me tocar que quase todo o meu corpo estava preso em uma enorme força, levando-me até as alturas e me expondo ao sol matinal. 

Eu estava em alta velocidade. Grito estridente, mas não era meu.

Olhei para cima.

Era um enorme lagarto, revestido de escamas quase espinhosas, que se assemelhavam a uma armadura lendária verde-musgo, me segurando. Porém, o que mais se destacava era o olhar lateral dele, possuindo uma pequena abertura central no meio da pálpebra, semelhante ao de um camaleão, abaixo de uma cabeleira carmesim que ia das costas até a testa. Os fios enfrentavam a ventania como uma bandeira hasteada.

Era o Jacurutixo. 

Foram longos minutos subindo até as alturas da floresta. Eu guardava meu horror dentro de mim e ele apenas me olhava na sua mão e soltava um som de boca fechada tão grave quanto de um sapo gigante, ao mesmo tempo tão feroz quanto de um leão. 

Eu não mexi nenhum músculo ao ver o enorme tapete de árvores profundamente embaixo de mim. Aquele mundo abissal só não acaba pra mim, pois o dragão era piedoso o suficiente para não me estrangular, me jogar no chão, pousar em cima de mim e comer o resto.

“Espera...”, pensei. “Aquele papo conveniente antes dessa grande piada da natureza... Carialista disse que ele é herbívoro!”

Então era isso.

Era por isso que minhas costelas não tinham virado espaguete, nem meu corpo tinha ido pra goela dele para que eu visitasse meus ancestrais no outro mundo? Não... toda a natureza estava em guerra comigo, e aquilo era uma situação perfeita para me destruir. O hamster estava me caçoando?

O dragão descia em alta velocidade, prestes a ir de encontro com as árvores da paisagem. Eu, como um bom profissional treinado, gritei tanto que quase abri um portal interdimensional para voltar ao futuro, mas acabei indo pro chão junto do lagarto, de qualquer jeito. 

Ali, fui recebido por folhas e galhos, que arranharam a manga da minha roupa de jogador de RPG. Contudo, foi rápido: o lagarto grunhiu, agarrou a terra com as imensas mãos, impulsionou o corpo para baixo e por fim saltou.

Em meio a alta velocidade, senti um corpo me agarrar pelas costas e um cheiro forte oprimiu meu nariz, mesmo com a ventania contra mim.

A luz do sol iluminou três macacos que se penduravam no braço do monstro. 

— Por que vocês não vão caçar uma banana em vez de mim, hein?

— U U, A A! — disse um dos poetas.

Eles aproveitaram  a deixa entre as árvores e embarcaram tno meu avião mortífero particular próximos da mão em que eu estava preso. O que estava nas minhas costas não parava de gritar estrofes. 

Dessa vez, talvez o dragão subiria tanto que ele me levaria no paraíso.

“Hoje... não!”

Dei três cotoveladas profundas no macaco que gritava nas minhas costas antes que eu perdesse minha audição. Em seguida, segurei ele utilizando as duas mãos e lancei na direção do primata que se aproximava de mim com cuidado.

Ambos caíram gritando de desespero... por perder a argumentação, é claro. 

Mas ainda faltava um. A maior ameaça, que segurava uma estaca de madeira.

Ele ficou sentado na parte superior da mão do dragão e ergueu a arma improvisada. Por sorte, pensei rápido.

Cuspi na cara dele e dei uma investida de punho na barriga. Ao mesmo tempo, agarrei o punho que segurava a adaga e consegui arrancá-la, além de eu aproveitar o instante e puxar o seu braço para trás. Ele fugiu do debate por pura espontânea pressão, mergulhando no ar.

“Consegui?!”, pensei. O dragão tinha me segurado o tempo todo, como se quisesse me ajudar a não cair.

Até a gravidade começar a agir.

A criatura começou a cair em alta velocidade. Eu não podia confiar mais uma vez em seu pouso, teria uma grande chance de eu cortar meu pescoço na queda ou bater a cabeça num tronco, até porque o dragão não era minha mãe para me proteger tanto assim, no máximo eu parecia um filhote de burro.

Por isso, comecei a apunhalar a mão dele, focando minha visão no rio em que ele se aproximava. O grito dele foi uma tortura de se ouvir, mas felizmente eu já presenciei uma gravação minha cantando na escola. Aquilo era apenas uma sonata fofa se comparado ao vídeo.

O monstro perdeu as forças e me largou a poucos metros das águas marrons profundas.

Finalmente eu estava livre.

 



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