Volume 1

Capítulo 11: Casal Rebaixado VS Fã Clube Peludo

Eu sabia que algo dentro de mim pedia para sair.

A mana escorre pelas veias dos amaldiçoados. O destino me odiava, e o mistério que está intrínseco a todos os humanos sempre quis me ocultar a razão pela minha família ser descendentes de magos vassalos que negaram sua função. Fui sobrevivente da perseguição que foi imposta em cima deles, e então fui salvo pelo Estado por misericórdia, até ser levado ao projeto de viagem do tempo.

Porém, não sabia que a vontade natural de externalizar essa desgraça fosse tão intensa no passado. Seria a quantidade de energia solta no ar a verdadeira influência dessa vontade? Quer dizer, uma praga atraí a mesma espécie invasora. Talvez fosse essa a razão.

O exemplo perfeito foi quando penetrei a superfície da água e afundei no mundo marrom, tão denso que quase pensei ter algo além de líquido. Assim, o principal problema, além da minha vontade de canalizar mana, eram os meus braços e pernas que não queriam me obedecer de tão pesado que meu corpo estava. 

Eu me afogaria em pouco tempo.

Pra piorar, enxerguei acima de mim uma cascavel incandescente, que se revelou após a nuvem de bolhas desaparecer envolta dela.

Ela entortou a cabeça, como se tentasse me decifrar na minha situação sufocante.

— Por que você nega, Síssio?

A voz dela ressoou somente na minha cabeça cada vez mais estrangulada.

“Não acredito que...”

— Por que você não se transformou em serpente em vez de hamster na primeira vez que nos encontramos, Natureza? — respondi no pensamento. — Agora eu sempre vou te imaginar como uma bola peluda rabugenta. Parabéns.

— Não critique meu senso estético!

— Burrice não é ser fashion, burro.

Na minha cabeça, aquele diálogo era os meus últimos momentos, então eu tinha que causar dano antes de me afogar.

— Eu gosto de ser subestimado, assim como você — respondeu a cobra iluminada. — É desse jeito que minha superioridade será valiosa ao ponto de eu mostrá-la só em momentos oportunos.

— Mostrá-la pra quem? Cê não tem nem amigos. Já sei que você fala com macacos sozinho e depois diz: nossa, odeio falar de política, ninguém me entende. Conheço seu tipo.

Eu conhecia muito bem, só substituir macacos por cachorro falecido e os sentimentos serão semelhantes.

— Nada do que vem da sua boca me atinge, ser inferior. 

— Da minha boca? 

— Da sua mente! — Ele soltou um suspiro metafísico tão grande que quase estourou meu cérebro num micro-ondas. — Até parece que você não está escondendo seu potencial agora. Vejo o padrão da sua espécie, humano.

Meu enorme potencial em perder qualquer disputa? Bem, em um minuto eu vou te mostrar e ainda ficar hidratado o suficiente pra voar até as nuvens e nunca mais voltar. Esse é o meu instinto superior secreto. 

Sua impaciência manifestada como trovão era mais cruel do que meu fôlego se esvaindo aos poucos. 

— Diga a verdadeira razão para guardar seu poder numa situação dessas.

Não tenho nada a declarar. — Ergui o queixo e encarei a cobra, enquanto o peso me puxava para baixo. — Uma pessoa normal não precisa provar que não é uma aberração a ninguém. 

— E você ainda me chama de burro! Ora, que ironia, hein? Alguém que nega o que de melhor tem a manifestar. — A serpente avançou até mim e se enrolou pelo meu ombro e pescoço. A pele peçonhenta era algo glacial em comparação com a água daquele escuro abissal. — Cada vez que seu coração pulsa em momentos extremos, mais sua herança mágica ruiva em sua alma, não é? 

Minha visão estava ficando turva e obscura. Tão obscura quanto a imensidão que sugava minhas costas até o que tanto lutei... Ao ponto de só as batidas do meu coração serem ouvidas.

A Natureza estava certa.

— Sim. Sinto como se fosse apenas uma coceira rotineira, sabe? Sei lá, como se um lagarto nojento estivesse esfregando a bunda na minha nuca tentando me convencer a usar ópio. 

— C-cobras não tem bunda, idiota!

— Não acredito que você perdeu seu tempo corrigindo uma piada enquanto eu morro.

Ele apertou a pele sobre mim, ecoando uma risada na minha alma.

— Mas de qualquer forma eu apenas estou ganhando. O que estou te oferecendo é apenas um conselho para que eu e você tenhamos, quem sabe, algo menos tedioso do que uma derrota se afogando. 

Aquela vontade pulsante estava me matando mais do que a fraqueza dos meus pulmões.

Não.

Eu não queria obedecer a ordens até em meu leito, como fiz em quase toda a minha vida. O ultimato é um momento especial que não deve ser igual aos outros.

“Que seja esse o meu ataque final.”

Me acorde quando entrarmos na era Cyber — pensei, fechando os olhos. — Até mais, hamster. 

O quê? Aceita logo a desgraça da proposta, verm... Síssio! 

Permaneci em silêncio. O som acelerado do meu coração já engolira toda a profundidade do lago. 

Estúpido! Estúpido! Estúpido! — declarava o peçonhento, apertando meus ombros e balançando meu corpo.

Saia da minha mente, por favor. E massageie minhas costas, não quero dormir dolorido-

O peso frio do animal desapareceu.

Abri os olhos com dificuldade e não vi a Natureza. Alarguei um sorriso.

Ao menos eu morreria sozinho, assim como quase toda a minha vida... se não fosse uma força sobrenatural começar a se solidificar nas minhas costas.

Virei o rosto e percebi um pequeno redemoinho crescer logo abaixo e formar uma espécie de pedaço de lama, ao ponto de ficar maior do que eu. Em seguida, o troço subiu de forma voraz, levando consigo meu corpo, que enfrentou a legião de bolhas até a superfície iluminada.

Minha consciência não acompanhou o ritmo dos eventos.

                                                     ➀ 

Pensei que tudo aquilo fora um sonho quando minha visão ficou fixa para o céu maculado de folhas e galhos... até eu ver um anão barbudo e uma anã rechonchuda fixando olhares de desconfiança caipira em cima de mim.

— Está tudo bem, Síssio? — perguntou Carialista, com os cabelos um pouco molhados, escorrendo pela roupa úmida. — Se não estiver, eu te mato mesmo assim.

Sem entender, ergui meu tronco mais rápido do que a luz do sol que batia no meu rosto.

— Pode repetir o que disse?

A anã respirou fundo e levantou-se, junto do esposo.

— O processo de salvar você foi tão cansativo que eu poderia te matar se você estivesse debilitado. Céus, nunca gastei tanta mana desde que a guerra acabou.

— Foi tão complicado assim?

— Ah, nem tanto. Dragões saltitantes são tão fáceis de se seguir quanto rebater uma estrela cadente com uma panela pegando fogo.

O fato de a panela pegar fogo foi a coisa mais impactante naquele sarcasmo.

— Basicamente — Síssio me ajudou a levantar enquanto falava —, usei a grande ventania que o dragão despejava para te seguir com mais precisão, além de impedir que alguns macacos de subirem no ser. junto contigo. Porém uma minoria conseguiu. De fato, eles são os seus maiores fãs. Me pergunto qual é o segredo de sua fama.

“Infelizmente não é por traficar banana ou andar de tanga na floresta.”    

— Um mágico nunca conta seus segredos. — Declarei. — É o que eu diria se fosse um.

Ele balançou a cabeça, confuso.

— Enfim, enquanto eu carregava a Carialista, vi que você mergulhou no lago marrom. Então a Carialista deu um mergulho e viu você se afundando perto de uma cobra... luminosa? É isso mesmo?

— Sim, Scholisto, eu juro que vi. Não acredita na sua própria esposa?

— Não quando ela começa a reproduzir história de pescador — Scholisto pigarreou enquanto ela revirava os olhos. — Então ela solidificou a lama acumulada do lago e lhe elevou até a superfície. Não preciso dizer que estamos destruídos e queremos ir logo cumprir essa missão, certo?

— Espera — eu disse —, então o “marrom” do lago não era fezes?

Ambos ficaram em silêncio. Carialista pareceu soturna.

Eles começaram a andar na direção contrária onde eu andava.

— E-ei! 

— Você acabou dizer que eu controlo bosta em vez de terra.

— J-jamais! — menti. — E mesmo que fosse...

— Vamos logo, rapaz. — Scholisto ordenou.

Após caminharmos por um tempo por moitas e árvores, chegamos na beira do lago e começamos a rodeá-lo por um tempo considerável. Por um momento pensei que era na verdade um rio, mas parei de pensar após enxergar uma cabana decaída perto de um pequeno talude barroso perto da superfície aquática, a nossa esquerda.

— Aquilo só pode ser um portal pra outro mundo — disse eu. — Tipo o submundo.

— Que otimismo, hein? — disse Carialista. — É impossível escorregar ali e quebrar o pescoço.

Eu sequer cogitei isso.

Nos aproximamos pelo solo íngreme e paramos a frente dela. A decadência das paredes de madeira parecia ser escamas de uma aberração esquecida no fundo da floresta.

— Essa cabana morde? — Acabei falando.

— Eu mordo, garoto — disse a anã. — Está feliz?

— Não percam o foco — disse o anão. — Vamos acabar logo com isso... Alguém se lembra do que era pra fazer na porta?

Ele perdeu o foco. 

Depois que eu lembrei do processo, fui o premiado a bater na porta conforme a minha lembrança cinco vezes entre seis segundos em cada uma das vezes. Ao terminar, esperei algum tipo de terremoto me engolir até o centro da terra.

Porém, tudo mudou quando olhei ao redor e vi uma nuvem branca engolir toda a paisagem que estava na minha frente, até avançar sobre nós.

Acabei protegendo minha cabeça por instinto, até minha vestimenta ter parado de esvoaçar.

Em uma tranquilidade avassaladora, o que era o lago marrom tornou-se um campo de girassóis sob um céu alvo engolido por nuvens.

Tudo havia se transformado.



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