Volume 1 – Arco 3
Capítulo 47: A Lâmina Sente, A Vontade Acende
— Ella, espera! — gritou Mariah, tentando acompanhá-la.
Atlas, o cavalo de Ella, galopava numa velocidade vertiginosa em meio a chuva.
Ella ignorou o chamado de Mariah. Naquele momento, tudo que queria era ficar sozinha.
“Porra de garota teimosa” resmungou Mariah mentalmente, cerrando os dentes.
No meio daquela névoa densa causada pelo temporal, uma entidade os surpreendeu. Camuflada no ambiente como se fosse um espectro, quase invisível.
Sua camuflagem se quebrou quando seu braço se envolveu em um raio negro que pulsava a energia do Vazio. Sua mão, aparentemente mortal, quase tocou o peito de Atlas... mas algo o deteve.
Thwack!
Um disparo certeiro de um rifle de precisão perfurou a cortina da chuva, explodindo a mão da criatura.
Atlas relinchou, assustado com o estampido a pouquíssimos centímetros de si, recuou bruscamente, derrapando no solo encharcado.
Ella caiu do cavalo, amortecendo a queda com seu ombro direito, de modo que saiu rolando pelo chão lamacento.
O cavalo, tomado pelo pânico, disparou para longe.
A entidade abandonou completamente a camuflagem, revelando sua forma diante de Ella, caída no barro.
Era um ser com a estatura de um humano comum. Não possuía a força dos Caçadores, tampouco a imponência dos Emissários.
Vestia um manto longo e esfarrapado, rasgado nas extremidades. De tecido negro, era manchado por veias púrpuras, como se o Vazio estivesse se espalhando pela roupa.
O capuz projetado para sempre ocultava quase todo seu rosto, mas naquela posição, Ella conseguia enxergar claramente.
Era um rosto feminino... mas havia algo perturbador nele. Apesar de parecer humano, não era. Seu semblante estava no vale da estranheza. Pele pálida, cabelos negros como carvão e olhos castanhos profundos.
A criatura desviou o olhar para a origem do disparo. Um homem descia de uma árvore com uma velocidade excepcional, quase sobre-humana. Ele correu pelo terreno escorregadio enquanto buscava uma cobertura. Seus movimentos eram tão rápidos que parecia um vulto.
— Ella! — gritou Mariah, agarrando a garota e puxando-a para trás.
Mariah colocou-se entre Ella e a entidade, assumindo a linha de frente.
— Ora... não achei que te veria tão cedo — disse o ser, numa voz masculina grave. — Não depois do nosso último encontro.
O contraste entre o rosto feminino e a voz masculina assustou Ella. Jurava que era uma mulher.
O ser imbuiu seu dedo indicador com uma espécie de raio negro e disparou contra o céu. Segundos depois, múltiplos raios desabaram sobre a posição do franco-atirador.
Quando o homem saltou para fora da cobertura, sua identidade foi revelada: Kalel.
Continuava com o mesmo elmo templário de quando Ella o conheceu, mas agora trajava um manto branco com capuz.
— Vim aqui atrás de cobre, mas veja só quem eu encontrei — disse ele, num tom irônico. — Mariah, a feiticeira... e Kalel, o último caçador de Vaskov. Isso é ouro!
Ella se ergueu, posicionando-se atrás de Mariah, com a mão em sua bainha.
— Oh, e você? — Ele apontou para Ella, com um olhar surpreso. — Olhar pra você é como olhar para a Giulia. Deve ser a filha, imagino. Ainda me lembro de quando ela estava grávida e o Chaos a infectou. Que crueldade... mas filho de peixe, peixinho é. Não consegui sentir pena.
O ódio que tomou o rosto de Ella era evidente — ele sabia como mexer com as emoções das pessoas.
— O que você quer, Lyendell? — perguntou Mariah, com um olhar frio e desconfiado.
— Fui convocado para investigar a abertura de uma fenda do Vazio. Não é todo dia que isso acontece. Você sabe bem. E não pense que eu não estou te vendo, Kalel — exclamou Lyendell, olhando de lado.
— Estamos em três. Acha mesmo que tem alguma chance contra a gente? — respondeu Kalel, largando o rifle de precisão e desembainhando sua espada.
— Vá embora. Eu não quero te ferir... — pediu Mariah.
— Você não quer me ferir? Engraçado... será que pensou a mesma coisa quando me usou para entrar na CCV?
— Do que ele está falando? — perguntou Ella, séria.
— Você não sabia? Sua amiga era só uma civil comum. Veio até mim com a intenção de se tornar uma jornalista como eu era. Ela apenas me usou para criar conexões dentro da comissão e depois... me abandonou como se eu fosse um verme indigno.
Ella olhou para Mariah, o nojo estampado em seu rosto.
— Você é pior do que eu pensava.
— Agora não, Ella — respondeu Mariah, bruta.
Mariah imbuiu suas mãos com a Vontade Sagrada.
Ella desembainhou sua rapieira lentamente — o silêncio da tensão fez o som da lâmina ecoar.
— Estou te rastreando há meses, Lyendell — disse Kalel, avançando com passos calculados. — Você será o noningentésimo octogésimo terceiro inimigo que o Vazio colocou diante de mim. E como todos os outros, você cairá.
Ella ficou abismada com o número de criaturas do Vazio que o Kalel já havia exterminado. Mas para Mariah, aquilo não era novidade.
Foram 982 criaturas antes desse momento. Não apenas bestas, mas Emissários e todos os tipos de aberrações.
Kalel era o caçador mais aficionado que a CCV já teve. Ele não caçava por dinheiro, fama ou dever — era uma obsessão.
— O caçador com o maior número de abates na CCV e um dos únicos que nunca causou nenhuma morte colateral — disse Lyendell, com um tom quase de admiração. — Mesmo sendo um Emissário, eu te respeito. Farei sua morte rápida e indolor.
Num piscar de olhos, Kalel avançou como um trovão. Que velocidade!
Sua espada cortou o ar num golpe horizontal, mirando o pescoço de Lyendell.
— É fascinante quando a aniquilação de matéria entra em contato com o indestrutível — bradou Lyendell, bloqueando o corte com as mãos nuas.
Ella tentou avançar com sua rapieira, mas Mariah se interpôs.
— Para trás. Essa luta não é sua.
— Não preciso da sua proteção! — rebateu Ella, empurrando-a com o ombro.
“Merda!” pensou Mariah, logo em seguida batendo a palma da mão contra o chão.
Um rastro de Vontade Sagrada percorreu subterraneamente até chegar aos pés de Lyendell, rachando o solo sob seus pés. Uma nuvem de destroços elevou-se ao redor deles.
Ella, por sua vez, imbuiu a lâmina de sua rapieira em chamas.
No tempo em que passou com Haldreth, ela não aprendeu apenas a entrar no Plano Espiritual, mas também a conjurar as técnicas e encantamentos mentalmente.
Com passos ágeis, Ella irrompeu pela fumaça com uma estocada flamejante, empalando o oblíquo de Lyendell.
“Eu a subestimei... não senti nenhum poder vindo dela e achei que fosse fraca. Merda! Caí nesses truquezinhos de ocultação” pensou Lyendell, encarando-a, surpreso.
Seu olhar era perturbador, mas não era só isso — a máscara humana que ocultava sua verdadeira identidade tinha o poder de implantar ilusões e falsas memórias na mente de quem ousava encará-lo.
Ella sentiu algo puxando sua perna esquerda.
— É sua culpa... — murmurava Susan, com os olhos vazios, agarrando-se nas pernas de Ella. — Você podia ter me salvado...
— Isso não é real... isso não...
Mariah percebeu o transe de Ella no último instante. Com um empurrão brusco, jogou-a para o lado, salvando-a de uma esfera compacta de energia.
A esfera atravessou apagando tudo que tocava, aniquilando a matéria numa linha reta.
— Não olhe para os olhos dele, Ella! — gritou Kalel.
Lyendell, indiferente ao caos ao seu redor, puxou a rapieira de Ella cravada no seu oblíquo. A ferida se regenerou instantaneamente. Sem dizer nada, ele arremessou a espada de volta aos pés de Ella, como quem despreza uma arma inútil.
Ella engoliu em seco.
“Regeneração instantânea... cortar membros não vai adiantar. Preciso ir direto na cabeça, o que é muito arriscado. Se ele encostar em mim, estou morta.”
Enquanto pensava em uma estratégia, Kalel retirou do bolso uma pedra de amolar prateada, colocando-a com cuidado no chão.
Ele então se ajoelhou, segurando o cabo da espada com uma mão e a lâmina com outra, começou a passá-la pela pedra, num movimento rápido e preciso.
Diferente de uma amolação tradicional, centelhas douradas saltavam da lâmina.
— Por que diabos você está amolando sua lâmina? Ela é feita de Rubrannium, seu imbecil. É indestrutível — desdenhou Lyendell, inclinando a cabeça.
Kalel não respondeu. Estava concentrado demais para se importar. Sussurrava palavras inaudíveis a longa distância. Parecia um mantra antigo. Lyendell teve seu orgulho ferido ao ser ignorado e aproximou-se.
— Estou falando com você, seu verme. Não me ignore — rosnou Lyendell, com um olhar de desprezo.
— A lâmina sente, a Vontade acende. A lâmina sente, a Vontade acende. A lâmina sente, a Vontade acende — repetia Kalel, como se fosse um mantra.
— Você é mais louco do que eu pensava...
Ella, preocupada com a aproximação de Lyendell, decidiu agir, mas Mariah segurou seu braço.
— Me solta! Não está vendo o quão perto ele tá do Kalel?
— Confia nele — respondeu Mariah, firme. — Kalel sabe o que está fazendo. Ele não é um iniciante...
— Por que ele começou a amolar a espada no meio da luta?!
— Eu não sei, você que deveria saber! Isso é uma técnica de caçadores. Não sou uma de vocês.
Lyendell ergueu seu braço, entediado com a cena.
— Você pirou de vez mesmo. Vamos acabar com essa palhaçada logo, ainda tenho aquela fenda para investigar. — Uma esfera de energia densa e oscilante surgiu na sua mão.
Lyendell abaixou seu braço velozmente, lançando a esfera desintegradora de matéria até Kalel.
Fwaaaash!
Kalel ergueu sua espada numa velocidade surreal — superando a do som — e a colidiu com a esfera.
“Magna Sacra Parata”.
Para o espanto de Lyendell, sua esfera foi refletida em sua direção, atingindo seu ombro direito e dilacerando parte de seu rosto. Ele foi lançado violentamente contra um prédio, atravessando sua estrutura como se fosse papel. Ele arregalou os olhos, em choque.
O prédio desabou com o impacto de Lyendell.
— Ele... morreu? — perguntou Ella, boquiaberta com a velocidade que tudo havia acontecido.
— Não. Ainda consigo sentir a presença dele.
Kalel se levantou, recolheu a pedra de amolar, guardando-a em seu bolso e correu para o prédio desmoronado.
Dentro dos destroços, encontrou Lyendell levantando de uma viga de concreto que o havia empalado.
Partes da sua carne estavam expostas.
— Que porra de técnica era aquela? Nunca vi nenhum caçador fazer isso — murmurou Lyendell, tocando o ombro em carne viva.
— É uma técnica antiga e esquecida. Não viam vantagem em precisar amolar a lâmina antes de um combate, então pararam de usar. Mas eu não.
Lyendell riu baixo, tossindo san gue.
— É uma técnica poderosa... não consigo me regenerar. Devo admitir que foi um erro ter te subestimado — disse Lyendell, retraindo sua máscara humana.
Sua pele era extremamente pálida, com um tom levemente azulado, contrastando com os olhos roxos incandescentes típicos dos Emissários.
Os cabelos longos e desgrenhados, com um tom branco prateado, caíam sobre o rosto desfigurado.
A boca dele era marcada por um corte profundo, que se abria de forma irregular até quase alcançar a orelha.
Seus lábios eram rasgados e mal cicatrizados, expondo fileiras de dentes, sempre à mostra, assim como os de Chaos.
O rasgo dava a impressão de um sorriso macabro, permanentemente marcado em sua face.
— As pessoas normalmente se horrorizam com o meu rosto... mas você não esboçou nenhuma reação. Já deve ter visto coisa pior, não é?
— Por que eu me assustaria se meu rosto é tão bizarro quanto o seu? Cá entre nós — disse Kalel, num tom gélido, apontando sua espada para ele. — Se descobrissem o que tem por trás do meu rosto, eu seria caçado que nem você.
— Não precisa se preocupar com isso. Ninguém vai saber como é seu rosto. — Lyendell ergueu o dedo indicador da mão esquerda. Uma esfera negra começou a crescer exponencialmente na ponta do seu dedo. — A única coisa que irá restar de você será o seu elmo.
A esfera crescia cada vez mais, pulsando como um sol negro e engolindo todo o prédio ao seu redor.
— Que porra é aquela? — gritou Ella, cambaleando para trás.
— Merda... precisamos sair daqui. Agora! — Mariah assobiou com os dedos, chamando seu cavalo.
— E o Kalel?!
— Ele sabe se virar. Se ficarmos aqui, seremos reduzidas a poeira, não está entendendo?
— Desgraça...
Ella hesitou, cerrando os dentes, mas acabou seguindo Mariah.
Kalel, por outro lado, não parecia preocupado nem diante da morte.
“Ele condensou muita matéria naquela esfera. Não tenho força suficiente para aparar. Só há uma opção... que nojo de mim mesmo!” pensou Kalel, erguendo sua espada.
— Você disse que eu seria seu noningentésimo e o que mais? Deixa pra lá, não importa. Você vai ser só mais um cadáver no meu mar de mortos. — Um sorriso triunfante surgiu em seu rosto.
Lyendell disparou a esfera. O ar vibrou, distorcendo a realidade ao seu redor.
Com apenas uma mão, Kalel aparou a esfera num ataque diagonal, mas era imparável. Lentamente era empurrado para trás.
Partículas roxas emanaram da mão esquerda de Kalel.
No impacto, a luz engoliu tudo.
Uma explosão de cem metros engoliu todo o ambiente — obliterando tudo como se fosse uma pequena bomba nuclear.
...
Quando a poeira abaixou, somente o capacete de Kalel restou no chão, com o couro do interior queimando.
Não havia corpo. Não havia sangue. Nem mesmo sua espada estava lá.
Era como se ele tivesse sido apagado da existência.
Lyendell caminhou lentamente até o elmo de Kalel e o agarrou, levantando-o acima da sua cabeça.
Ele começou a rir sadicamente — cada caçador que ele matava alimentava uma fome que jamais seria saciada.
— Eu venci! — exclamou ele.
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