Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 46: Doutor Yersin

O ambiente estava denso, cada vez mais sufocante. Os gemidos de dor de Susan atormentavam a mente de Ella.

Mariah agarrou o esqueleto de Yersin e o encostou nas costas de Susan, alinhando-os.

— Você tem uma corda, Ella?

— Tenho... mas é mesmo necessário?

— Eu não quero sentir dor... por favor.

— Relaxa, você não vai. É apenas para impedir que seu corpo institivamente tente se afastar.

— Andem logo! Eu não aguento mais isso — clamou Susan, com a angústia estampada em sua face.

Ella retirou uma corda da sua mochila e entregou para Mariah, que rapidamente amarrou Susan ao esqueleto de Yersin.

— Está pronta, Ella? — perguntou Mariah, com o pingente em mãos.

Ella não respondeu. Seu olhar oscilava entre Susan, chorando em desespero, e o esqueleto de Yersin. Apenas assentiu.

Num gesto violento, Mariah esmagou o pingente entre as mãos.

O estalar vítreo foi imediatamente acompanhado por uma explosão colossal de energia. Uma nuvem negra descomunal se ergueu no ar, girando como um vórtice — uma tempestade viva, pulsante e ameaçadora.

Raios dourados cortavam o breu do Vazio, e rugidos monstruosos — que não vinham de criatura nenhuma — ecoavam no céu. A presença da própria alma do Yersin e da criatura estavam ali, imensa e sufocadora.

— Meu Deus... — murmurou Ella, olhando pra cima e sentindo seus joelhos fraquejarem.

— Isso... isso é só metade do poder dele, consegue imaginar a magnitude dele?

— E agora?

— Corte o meu dedo — disse Mariah, erguendo o indicador.

— O quê?

— Corte o meu dedo. Preciso desenhar uma runa nos dois corpos

Ella sacou a faca escondida na lateral da sua bota e fez um corte profundo no dedo de Mariah. Profundo até demais.

— Desculpa... coloquei muita força.

— Não se preocupa. Consigo me regenerar — respondeu Mariah, caminhando até Yersin.

Ter a capacidade de se regenerar através da Vontade Sagrada era um dos, se não o feito mais difícil de se adquirir sendo um portador dela. Era praticamente inalcançável.

Ao longo da história da humanidade, as pessoas que conseguiram não chegam a somar nem vinte. Apenas os mais excepcionais portadores da Vontade eram dignos desse dom.

Ella então percebeu que, mesmo se tentasse, jamais seria capaz de matar Mariah.

Mariah traçou na testa de Susan uma runa que simbolizava a morte

— Mariah... você sabe que está condenada ao inferno, não sabe? — exclamou Susan, com um olhar miserável.

— Hmpf, será que demônios são mais fortes que Primordiais? — ironizou, sorrindo de canto. — Eu acho que me garanto. E você, Ella?

— Cala a porra da sua boca e faz logo isso.

— Aff, você não tem nenhum senso de humor, Ella.

Por fim, Mariah desenhou no crânio de Yersin uma runa que simbolizava a vida.

A vida e a morte, um ciclo que acompanha a humanidade desde sua origem. Um ciclo impossível de escapar.

Mariah se posicionou atrás do corpo de Yersin.

— Bom... quais são suas últimas palavras, Susan?

— Já falei tudo que tinha que falar. Eu nunca vou te perdoar por isso, Mariah.

— Eu sei. Já ouvi isso de muitas pessoas.

Ella desviou o rosto e tampou os ouvidos. Não queria assistir aquilo.

Mariah fechou seus olhos e começou a se concentrar. Linhas douradas surgiram, puxando o crânio de Yersin e Susan simultaneamente para cima. As linhas se prendiam a cada vértice dos símbolos.

Eram como se estivessem sendo puxados como uma marionete.

Quando Mariah abriu os olhos, sua íris estava dourada, refletindo o poder avassalador da Vontade Sagrada.

Ela ergueu seu braço lentamente, que se imbuía instantaneamente com esse poder.

Num movimento descendente, a alma de Yersin que dominava os céus, despencou violentamente sobre seu esqueleto.

O impacto gerou um vendaval brutal, arremessando Ella para longe. Ela se agarrou ao tronco de uma árvore para não ser levada.

Foi inevitável não olhar, e quando viu, ficou horrorizada. O corpo de Susan se desintegrando e toda sua essência sendo sugada pelo esqueleto.

Ele flutuava de forma resplandecente, como se fosse uma divindade nascendo.

Em instantes, músculos, carne e pele se formaram sobre os ossos. Suas pernas, braços, tronco e cabeça foram materializados.

Quando a nuvem de foi totalmente absorvida, o corpo caiu. Mariah rapidamente o segurou e o deitou no chão.

Ella soltou o tronco e permaneceu imóvel, respirando com dificuldade, tentando processar o que acabara de testemunhar.

Mariah retirou lentamente a máscara de corvo do rosto de Yersin. Fazia tanto tempo que não via seu rosto. Era algo que realmente precisava testemunhar de novo.

— Bem-vindo de volta, meu querido Alexander — disse Mariah, com uma voz suave, sustentando a cabeça dele em suas mãos. — Quanto tempo que eu não vejo esse rosto... você não envelheceu um único ano.

Quando Ella se aproximou deles, Yersin puxou a máscara de volta, ocultando o rosto.

— Achei que nunca mais iriam devolver minha alma — disse Yersin, com uma voz grave e aveludada. — Já tinha me conformado de que essa era a forma de vocês se livrarem de mim.

Yersin voltou a esconder o rosto, sem perceber que estava completamente nu. Ella quase flagrou mais do que gostaria, se não tivesse virado o rosto imediatamente.

— O... o que aconteceu com as roupas dele? — questionou, fechando os olhos.

— Aparentemente se desintegraram quando a alma voltou pro corpo — respondeu Mariah, com um sorriso perverso. — Eu prefiro assim.

Yersin ergueu-se com calma. Com um simples estalar de dedos, cobriu toda a parte inferior do seu corpo com o Vazio. Revestindo-o com uma tonalidade púrpura densa, como um manto vivo.

Apenas a parte superior do seu corpo permaneceu descoberta, revelando um físico, que diferente do que Ella esperava de um estudante, era relativamente musculoso.

Não era o corpo esculpido de um Caçador, mas sem dúvidas era o físico de um homem forte.

Ele encarou Ella por um tempo, perdendo-se em seus pensamentos.

— Você... é filha da Giulia Lancellotti? Você é... — Mariah o interrompeu.

— Sim, ela é. Eu te trouxe de volta porque o Aslan pediu.

— O Aslan? Quantos anos você tem, garota?

— Dezoito. Vou fazer dezenove anos daqui alguns meses.

— Vocês esperaram dezoito anos? Não podiam ter esperado um pouquinho mais? Me trouxeram cedo demais — disse Yersin, com ironia. — Eu avisei que conseguiria melhorar a situação em pelo menos dois anos. Por que demoraram tanto?

— Isso não importa — retrucou Mariah, tomando a frente. — Não mais. Nesses dezoito anos, muitas coisas aconteceram que nos impediram de te trazer de volta.

— Faça uma síntese de tudo que aconteceu. Quero saber do principal.

— Depois que te selamos, a humanidade entrou numa era de paz. Sem o Chaos, não tínhamos mais inimigos. O Aslan até se permitiu relaxar e fez uma filha. Mas, bem no final do ano, uma nave enorme chegou à Terra. Sua teoria conspiratória favorita era verdadeira: existe vida inteligente fora da Terra.

— Então você está me dizendo que os alienígenas finalmente se revelaram à humanidade? Fascinante... eu tenho tantas perguntas para fazer a eles — disse Yersin, visivelmente animado.

— Tira seu cavalinho da chuva. O alienígena trouxe uma infecção, doença, sei lá que merda é aquela. Qualquer coisa que aquilo lá toca é contaminada, é mais contagiante que o sarampo. Em pouco tempo, o mundo inteiro sucumbiu. Somente uma pequena parte de Rubra ficou ilesa da infecção.

— O mundo... acabou? — Sua voz carregava um peso que contrastava com o entusiasmo anterior.

— Por que não vê com seus próprios olhos? — respondeu Mariah, apontando para a fenda.

Ao atravessá-la, seu primeiro baque foi ver toda a UCC em ruínas, totalmente diferente do que lembrava.

— O que aconteceu aqui? — murmurou, passando os dedos pelas paredes destruídas.

— Era assim que você imaginava o fim do mundo? — disse Ella.

— Não. Pra falar a verdade, eu nunca imaginei que o mundo acabaria. Sempre soube que um dia derrotaríamos o Chaos.

Ao deixar o prédio, o impacto foi ainda maior. A paisagem desolada diante dele era o oposto da sociedade futurista que ele guardava na memória.

Suas últimas memórias eram de uma sociedade futurista próspera, como tudo havia ruído em menos de duas décadas?

— O mundo realmente foi pros ares...

— Sim... todo o nosso trabalho de séculos não adiantou nada no fim — disse Mariah, pousando a mão em seu ombro.

— Quem causou isso... foi o alienígena ou o Chaos?

— Rithan. Esse é o nome dele. Por mais controverso que possa parecer, só estamos vivos graças ao Chaos. Você lembra dos nossos experimentos, não é? A Vontade Sagrada repele o Vazio, eram como água e óleo. Já o Vazio, ele repele a infecção astral. A região de Rubra está tomada pela presença do Chaos e seus Emissários — estamos protegidos pelos nossos maiores inimigos, dá pra acreditar?

— Então, se matarmos o Chaos, a infecção vai se espalhar por Rubra inteira? — perguntou Ella, confusa.

— É uma teoria minha, mas eu acredito que sim. Ouvi alguns Puracionistas comentarem que algumas áreas infectadas estavam se retraindo. Isso abre espaço para dois pensamentos: o Chaos está expandindo seu território e planejando algo grande, ou, o que eu acho totalmente improvável, o Rithan está diminuindo sua área de controle.

— Se um dia eu tiver a chance de matar o Chaos, não vou poder porque isso condenaria a humanidade? É uma faca de dois gumes...

— Com todo respeito, filha do Aslan, mas você nunca chegaria perto de matar o Chaos. Seu poder, pelo que consigo sentir, é uma fagulha diante dele.

— Meu nome é Ella — respondeu, com um olhar incomodado. — E sei que sou fraquíssima comparado a ele, mas estou fazendo o possível pra sobreviver aqui em Rubra.

— Não a subestime. A alma da garota não tem uma Restrição de Infinidade — disse Mariah. — Você não percebeu?

— Ah, dá um desconto — murmurou ele. — Acabei de voltar depois de dezoito anos morto. Ainda estou me acostumando a... funcionar de novo.

— Um professor meu tinha uma teoria de que eu não tinha essa tal Restrição de Infinidade. Então, é verdade? — perguntou Ella.

— Sim. Pessoas como eu, capazes de enxergar além do físico, conseguem distinguir quando alguém possui ou não a restrição. As almas com restrição concentram toda a energia espiritual apenas no centro, enquanto as que não possuem, como você, distribuem a energia espiritual por todo o corpo.

— E você, Mariah?

— Eu tenho. O Yersin também tinha, até fundir sua alma com a da criatura. — Ela cruzou os braços. — Não faço ideia de como você não tem. Sabe o quão difícil é conseguir quebrar a própria restrição? É praticamente impossível.

— Ela deve ter herdado do pai — pontuou Yersin. — Ella, você provavelmente é a pessoa mais sortuda do mundo e nem sabe.

— Até parece — respondeu com um sorriso nervoso. — Desde que meu pai me deixou, minha vida tem sido um inferno...

Yersin se aproximou, parando ao lado dela. Ambos olhavam o horizonte devastado.

— A vida de todo mundo é um inferno... Você acha que a minha vida é boa? Ou a da Mariah é boa? Não acredito que iremos pro inferno quando morrermos. Já estamos nele.

— E como você aguentou viver tanto tempo nesse inferno? — indagou Ella, abaixando a cabeça.

— Eu não aguentei. Por isso que eu passei a minha vida inteira tentando mudar a situação do mundo. Mas olhando para todos esses destroços... eu percebo que falhei. Falhei miseravelmente.

O silêncio pairou entre eles até Ella retomar o assunto que a trouxera até ele.

— Meu pai me deixou há quatro anos atrás. Ele veio até Rubra para matar o Rithan. O problema é que ele nunca mais foi visto desde então.

Quase que instantaneamente Yersin olhou para Ella quando citou o Aslan. Aparentemente ele era uma pessoa importante para ele.

— Ele não está morto. Consegui encontrá-lo pelo Plano Espiritual. Foi ele quem me disse para te acordar. É por isso que estou aqui.

— Ele só disse isso?

— Sim.

— O Aslan nunca gostou de preocupar os outros. Sempre guardava as piores merdas para ele mesmo. O único com quem ele realmente se abria era com o Scott. Se alguém sabe onde seu pai está, é ele. Mariah, você sabe se ele ainda está vivo?

— Sei lá. A última vez que o vi foi quando o Aslan deixou a UCC. Mas ele era casca grossa, duvido que tenha morrido. Deve ter se enfiado em alguma comunidade e vive escondido até os dias de hoje. Que nem eu fiz.

— Seu pai sempre me procurava quando estava envolvido em merdas tão pesadas que nem mesmo ele conseguia resolver. Agora... me expliquem melhor essa infecção. Quais são os sintomas dela?

— Ela transforma qualquer animal infectado, mudando sua aparência, comportamentos, hábitos e tudo mais. Ficam mais selvagens, mais fortes, maiores. Nos humanos, além de tudo isso que eu citei, apaga a consciência deles. Viram basicamente cascas vazias — explicou Mariah.

— Entendo... não é tão diferente da corrupção do Vazio. — Yersin tocou o queixo por baixo da máscara, pensativo. — Ella, minha teoria é de que seu pai foi derrotado pelo Rithan e consequentemente infectado. Mas, pelo visto essa infecção altera o físico, não o espiritual. Logo seu pai ainda consegue falar com você pelo Plano Espiritual.

— Então é isso? Meu pai se tornou um deles? — perguntou Ella, cabisbaixa.

— Não sei. É só uma hipótese baseado no que você me contou. Ainda preciso investigar toda essa situação. Me dê alguns dias e trarei uma resposta concreta.

— O quê? Alguns dias?! — Ella deu um passo à frente, indignada.

— Sim. O que você esperava? Que eu o trouxesse de volta agora, num estalar de dedos? Eu praticamente acabei de renascer em um mundo totalmente diferente do que eu conhecia. Preciso me adaptar e conhecer mais.

— E o que eu devo fazer agora? V-você é a minha única esperança para encontrar meu pai!

— Fique tranquila. O Aslan é muito importante pra mim. Vou fazer de tudo para encontrá-lo, mas preciso de um tempo. Enquanto isso, fique mais forte e obviamente... viva.

— Por favor, se apresse. Meu pai não tem muito tempo.

— Vamos voltar, Ella. Já fizemos tudo que podíamos. Agora é só ter paciência — disse Mariah, colocando a mão no ombro de Ella.

— Não me toca — gritou Ella, afastando-se de Mariah. — Eu consigo voltar sozinha.

— Não seja infantil. Eu fiz o que era necessário para trazer ele de volta!

Ella deu as costas para Mariah e foi embora em seu cavalo. Não muito tempo depois, a tempestade que os aguardava chegou.

A água fria que caía do céu se misturava às lágrimas de Ella. Algo dentro dela sabia: tinha feito algo horrível, algo que jamais poderia voltar atrás.

Nesse momento ela se questionou: havia uma linha moral que ela não cruzaria para salvar seu pai?

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