Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 36: O Plano Espiritual

Desde que Ella chegou ao observatório de Haldreth, três meses se passaram. Seu cabelo havia crescido nesse ínterim, já alcançando a altura da lombar.

Três meses sem qualquer contato com seu irmão e sem notícias da comunidade. Os únicos seres vivos com quem conversava eram Haldreth e Icrow, e ocasionalmente, o robô Rostov.

Do topo da montanha, era possível contemplar grande parte da capital. Pequena no meio de tantos prédios e árvores, erguiam-se os enormes muros da UCC. Aparentemente, nada de mal aconteceu nesse período.

— Já se passou bastante tempo, né? Foram três meses com você ao meu lado... até me acostumei — admitiu Haldreth, sentando-se ao lado de Ella.

— Você não se sente solitário aqui? — perguntou Ella, sentada no topo da montanha fitando o horizonte. — Todo mundo está tão distante de você, apesar da paz que há nesse lugar, também é muito solitário.

— Eu me sentia bastante solitário sim, até eu reformar o Rostov, desde então ele é meu maior amigo.

— O que aconteceu com ele?

— Eu o encontrei há uns... acho que dez anos atrás, destruído no meio de ruínas. Por sorte, seu chip de inteligência permaneceu intacto. Apenas um reparo no corpo e um novo núcleo de energia foi o suficiente para trazê-lo de volta à “vida”.

— Entendi, que bom. — Ella sorriu suavemente. — É sempre bom ter alguém por perto. Eu acho que o meu maior medo é morrer sozinha.

— Eu também tinha esse medo, mas tive que abrir mão dele. Todos ao meu redor se foram, inclusive meu pai. Essa é a desvantagem de não morrer. — Haldreth suspirou, olhando para o horizonte.

— Você disse que nunca me contaria como está vivo há tanto tempo, mas agora somos próximos, não somos? Ainda estou curiosa sobre isso — perguntou Ella, com um sorriso convincente, inclinando levemente a cabeça.

— Ah... achei que tivesse esquecido disso. É, de fato, quando eu falei aquilo, não imaginava que nos tornaríamos tão próximos.

— Então?... Você foi infectado pelo Vazio, pela infecção astral? Você tem alguma mutação da Vontade que te permite viver longas eras? Me conta, estou morrendo de curiosidade!

— Minha doença me deu uma expectativa de vida de apenas dez anos. Ela é... selvagem. Destrói célula por célula, desde as hemácias até as micróglias. É um processo lento, mas extremamente doloroso. As cicatrizes, rachaduras e manchas no meu rosto mostram do que ela é capaz. Meu pai não encontrou uma cura para a minha doença, é impossível. Em vez disso, ele implantou centenas de nanodispositivos pelo meu corpo para restaurar as células destruídas. Assim, ao passo que minhas células são destruídas, elas são automaticamente reconstruídas. Ou seja, eu não envelheço. Para mim, o tempo não passa de um número.

— Eu não sei exatamente o que são nanodispositivos, mas... você é realmente imortal? Se eu cortasse seu braço, essas coisas do seu corpo restaurariam as células dele?

— Teoricamente sim, teoricamente não. Veja bem, o tempo não me afeta e meu corpo é capaz de regenerar quaisquer tipos de ferimentos, mas há uma única forma de me destruir. Se todas minhas células forem incineradas, eu não sobreviveria. Digamos que, perante o tempo, eu sou imortal, mas em combate, ainda tenho fraquezas.

— Como se sente revelando sua fraqueza para mim? — brincou Ella, rindo.

— Não é como se essa informação mudasse algo. Eu utilizei placas de Rubrannium no meu traje, nada atravessa ele. A única maneira de me derrotar seria o removendo, mas garanto que não será nada fácil — pontuou Haldreth, sério.

— Por que os caçadores não usavam trajes de Rubrannium também?

— Na época, o estoque de Rubrannium era extremamente limitado e reservado somente para poderio militar “barato”. É por isso que não vemos robôs feitos de Rubrannium, apenas armas pequenas, como rifles e lâminas.

— Aah, faz sentido. Além disso, eu... — Antes que pudesse continuar, Haldreth a interrompeu.

— Chega de conversar por hoje. Você precisa voltar para seu treinamento. Mais foco, vamos!

Retornando ao seu treinamento diário, naquele ponto, Ella já conseguia projetar sua alma para fora do seu corpo sem ser puxada de volta.

Às vezes, ela apenas vagava livremente com sua alma solta para ver o quão longe podia ir. Ella notou um detalhe peculiar: sua alma possuía um brilho etéreo e translúcido, como se fosse a essência pura de seu ser espiritual.

— Você já consegue projetar sua alma para fora do seu corpo, isso é bom — avaliou Haldreth, sentado ao lado dela. Ambos meditavam. — A chave para ascender ao Plano Espiritual, é visualizar o fio que conecta sua alma com a outra realidade.

Ella estava totalmente imersa nas palavras de Haldreth, nenhum pensamento passava pela sua cabeça. Ela havia dominado completamente a técnica que lhe foi ensinada.

Ela conquistou a calma perfeita para ascender de plano. Com a mente vazia, o fio foi lentamente se revelando.

Era um fio perfeitamente reto, brilhando em diversas cores vibrantes e luminosas, pulsando de acordo com as batidas do coração de Ella.

— Não sei se você já está visualizando o fio, acredito que sim. Agarre-o com ambas as mãos. Se sua mente, corpo e alma estiverem em harmonia absoluta, você atravessará para o Plano Espiritual.

Lentamente, Ella agarrou o fio. No mesmo instante, ele começou a pulsar freneticamente, refletindo a aceleração de seu coração. De repente, tudo ficou escuro.

O mundo ao seu redor desapareceu. Seu corpo e o de Haldreth sumiram, restando apenas um breu profundo e silencioso.

— Você chegou longe... bem mais do que eu esperava, apesar de você ser naturalmente forte — Uma voz feminina ecoou na escuridão. — Se soubesse quantas vezes eu desejei interferir... mas, se eu o fizesse, você realmente seria livre para fazer suas escolhas?

Ella estremeceu. Aquela voz era familiar. Sem dúvidas, ela já a ouviu antes.

— Ainda que você fuja do Vazio, ainda que tente evitá-lo, você não poderá escapar do seu destino final.

Aquela voz... Ella se lembrava dela, como poderia esquecer?

Era a mesma voz que se comunicou com ela em seu sonho, aquele que teve no seu primeiro dia em Rubra. Ela era a silhueta cinzenta.

No estado de projeção espiritual, Ella não conseguia falar — apenas observar e escutar, atenta a cada detalhe, buscando a origem da voz.

— Você não sabe quem eu sou, mas eu sei quem você é. Estive ao seu lado desde o seu nascimento. Acompanhei a primeira vez que tirou uma vida, aos sete anos. Foi mais precoce que seu pai nesse quesito, mas são tempos diferentes — admitiu a voz, rindo suavemente. — Naquela situação, você estava em perigo, agiu para se proteger e proteger os demais. Eu admiro isso.

Ella estava em choque. Como aquela voz sabia tudo aquilo sobre ela? Somente os presentes na comunidade, naquele dia fatídico, conheciam essa história.

“Estou enlouquecendo? Vozes na minha cabeça, já? Achei que isso demoraria um pouco mais...” pensou Ella.

— Não, você não está louca.

O coração de Ella acelerou. A voz era capaz de ouvir seus pensamentos?

— Você veio para Rubra com um propósito: encontrar o seu pai. Sua jornada tem sido longa, mas você está cada vez mais perto. Não estou aqui para ditar seus passos. Você é livre para decidir seu destino. No entanto, tenho um pedido a lhe fazer. Se recusar, voltará para sua realidade, mas se estiver disposta a ouvir, pode sair ganhando.

“Você é capaz de ler minha mente, não é? Prossiga com o que você tem a dizer para mim.”

— Preciso que você extermine toda a ordem dos Emissários. Um por um, até chegar ao Chaos. Não tenha piedade por nenhum, eles não terão de você.

“Eu? Não sou forte o suficiente para matar cada um dos Emissários. Mal sobrevivi ao Kasaroth, isso tendo dois homens fortes me ajudando. Enfrentar o Chaos? Isso é suicídio. Além do mais, o que eu ganharia com isso?”

— Garantirei com que encontre seu pai. Não é isso o que você mais deseja? — afirmou a voz, materializando-se como uma silhueta cinza atrás de Ella.

A silhueta tinha o formato de uma mulher, ela começou a caminhar ao redor de Ella, que a seguia com um olhar desconfiado.

“E quem é você para garantir algo assim? Por que eu aceitaria um trato com alguém que eu nem sei o nome?”

A silhueta caminhou até Ella, enquanto ela recuava, temerosa.

— Pare — ordenou ela.

O corpo espiritual de Ella congelou no lugar. Não conseguia mover um músculo sequer.

A silhueta colocou seu polegar na testa de Ella e os demais dedos na lateral de sua cabeça. Tudo girou em um turbilhão de luz e sombras. Num instante, Ella desapareceu do plano físico.

Era como se tivesse quebrado a barreira entre realidades. Sua alma e corpo se fundiram novamente enquanto Ella caía de ponta cabeça em um lugar totalmente branco.

Estranhamente, ela foi teletransportada ao chão sem qualquer impacto.

O mundo ao seu redor era um branco infinito, o céu era branco, assim como o horizonte. O chão, coberto por uma fina camada de água cristalina, refletia seu próprio rosto.

— Que porra foi essa? — murmurou Ella, podendo falar novamente e erguendo-se lentamente.

Olhando ao seu redor, o ambiente era inteiramente monocromático, sem um único traço de cor além do branco absoluto.

— Agora confia em mim? Se eu estou te dizendo que posso garantir com que encontre seu pai, apenas confie — declarou a silhueta, aparecendo novamente atrás de Ella.

Ella se virou, encontrando novamente a silhueta cinzenta.

— Onde estamos? — perguntou Ella, arisca.

— No Plano Espiritual. Você treinou todos esses meses para chegar até aqui, não é?

— M-mas o meu corpo — exclamou Ella, confusa, olhando para as suas mãos. — Era para vir somente minha alma, não o meu corpo.

— Existem duas formas de atravessar para o Plano Espiritual: Transportação Física e Transportação Espiritual. Os dois modos te trarão para o Plano Espiritual do mesmo jeito, a diferença é que a física te permite usar o plano como encurtador de distâncias. Conhecido popularmente como “teletransporte”.

Ella sentiu a cabeça latejar com tanta informação.

— O que você é? Tem tanto conhecimento quanto o senhor Haldreth, e por que você é somente uma silhueta? Isso é algum tipo de traje ultra tecnológico?

— O que eu sou? Digamos que sou alguém que caminha entre os dois mundos. Alguém que já viu o que você busca e o que teme, e eu posso te levar além do que imagina. Mas o que eu sou ou quem eu sou não é a pergunta certa, Ella. O que eu quero saber é: temos um trato?

Ella franziu o cenho tentando entender, mas depois de tudo que já viu em Rubra, havia compreendido que existem coisas que desafiavam a lógica, eram incompreensíveis.

— O que você quer dizer quando afirmou que irá garantir com que eu encontre meu pai?

— Protegerei a vida dele até que nosso tratado seja concluído. Ele se encontra em sérios perigos, não é uma boa ideia recusar minha oferta.

Ella engoliu em seco. Sabia que precisava aceitar essa proposta, por mais arriscada que fosse. Ela faria de tudo para proteger seu pai.

— Eu... — Ella abaixou o olhar, hesitante. — Eu normalmente não confio nas pessoas. Não mais. Mas eu não tenho mais opções, o que me resta é confiar em você.

Ella estendeu a mão, ainda relutante.

A silhueta parou por um segundo e encarou a garota. Em seguida, ficou frente a frente com ela.

— Se cumprir sua parte, não tem com o que se preocupar. Agora, estenda seu dedo indicador.

— O quê?

— Um tratado com um aperto de mão é coisa dos homens. Estenda seu dedo.

Ella franziu a testa, confusa, mas fez o que lhe foi pedido.

A silhueta também ergueu o dedo. Assim como na famosa pintura “A Criação de Adão”, os dedos se aproximaram lentamente.

No instante em que se tocaram, uma centelha de energia surgiu entre os dois dedos, conectando-os.

— Ella Murphy, agora és a minha Sombra. Conto com sua ajuda para erradicar o Vazio.

Ella foi teletransportada logo em seguida para o plano físico, da mesma forma estranha em que havia ido para o Plano Espiritual.

Seu corpo materializou-se novamente ao lado de Haldreth, que a observava, intrigado.

Ella estava com os olhos arregalados, enquanto arfava.

— Você tá bem? — perguntou ele, quebrando o silêncio.

Ella piscou algumas vezes, tentando recuperar o fôlego. A transição entre os planos ainda a deixava desnorteada.

— Sim, estou.

— E então?... como foi? Você fez uma Transportação Física, imagino que tenha ido até o Plano Espiritual.

Ella abriu a boca para responder. Tentou contar sobre o encontro, sobre a silhueta, o pacto, mas as palavras simplesmente não saíam. Sempre que pensava e tentava dizer referente ao pacto que fez, ficava muda.

Era como se algo a impedisse de falar.

Por fim, entendeu. Aquele tratado não era apenas um compromisso verbal. Havia algo a mais nele. Algo... espiritual.

— Eu consegui transcender de plano, mas ainda não encontrei meu pai. Vou tentar novamente amanhã, espero que eu consiga — respondeu Ella, sorrindo gentilmente, tentando disfarçar.

Haldreth assentiu, satisfeito com o progresso de hoje.

Aquela silhueta era tão poderosa ao ponto de bloquear qualquer informação que Ella venha a dizer sobre ela, mas uma dúvida ainda pairava sobre sua cabeça, quem ou o que era ela?

Suas metas estavam claras agora. Assim como um Caçador do Vazio, deverá caçar e exterminar cada um dos Emissários.



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