Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 35: Entre Dois Mundos

Enquanto Ella buscava se fortalecer com a ajuda de Haldreth, naquela mesma noite, Ethan atravessava a floresta com passos rápidos.

Ele carregava segredos que não podia revelar a ninguém — nem mesmo à sua irmã.

Caminhou até chegar em um motel abandonado, entregue ao tempo, totalmente coberto pela densa mata na região. As placas neon, outrora vibrantes, agora quebradas, rangiam sob o vento frio daquela noite, e o nome do lugar — agora ilegível — pendia torto, segurado pelos fios enferrujados.

Ele parou diante do prédio principal. A pintura das paredes estava muito descascada, como pele velha.

— Você demorou...

A voz dela cortou o silêncio como um sussurro afiado. Ethan virou-se abruptamente e a viu, encostada no arco da entrada principal. Com seu corpo mergulhado nas sombras, somente seu belo e delicado rosto destacava-se sob o brilho pálido do luar.

Ela vestia um simples vestido branco, mas que parecia se mover por conta própria naquela ventania.

— Aqui não é seguro, nem para você, nem para mim — sussurrou Ethan, caminhando até parar a poucos passos de distância dela.

Ela inclinou sua cabeça, seus olhos — laranjas como os de Chaos — cravaram-se nele.

— Então por que veio?

Ethan não respondeu. As palavras estavam lá, mas presas em algum lugar fundo demais para serem soltas.

— Foi aqui onde nos conhecemos, lembra? Sua primeira semana em Rubra... você procurava suprimentos. Justo num lugar como esse — comentou a mulher, rindo suavemente e envolvendo o pescoço de Ethan com seus braços.

— Você me salvou daquele Emissário... que azar eu tive, né? Encontrar com ele logo aqui. Você o matou de forma brutal, um aliado seu... por quê?!

— Ele sequestrava mulheres, as estuprava e, depois, as devorava. Seguia esse ritual hediondo nesse motel. É repugnante, até mesmo para criaturas do Vazio.

— Ainda sim, até hoje não entendo uma coisa: por que me salvou, sabendo que eu era um caçador?

— Eu estava curiosa sobre você. Naquele dia, você estava apavorado... e o olhar grato que você teve por mim. Eu não tive coragem de te matar.

Ethan segurou sua cintura, puxando-a para mais perto. Um beijo se seguiu —um ato de amor entre duas raças destinadas a se odiarem. Enquanto a beijava, imagens de Ella, Aslan, Giulia, e Marc surgiam na sua mente repetidamente. Todos eles o condenariam por isso. Todos o chamariam de um traidor desgraçado. Mas os seus sentimentos por ela eram maiores.

Quando os lábios se separaram, a mulher colocou suas mãos nas bochechas de Ethan.

— Merascila, eu... eu te amo — confessou Ethan, corado.

— Você é perfeito, Ethan. Eu também te amo — respondeu Merascilla, voltando a beijá-lo.

Merascilla segurou nas mãos de Ethan e o guiou até um pequeno vilarejo próximo, onde ficava seu lar. Também era o refúgio do seu culto, pessoas que a veneravam como uma divindade.

Ao longo de todos esses anos após a queda da sociedade, Merascilla ergueu um culto em seu nome, curando os enfermos que a procuravam através do Vazio. Era conhecida como “Deusa do Sangue Negro”.

— Deathbringer, Kiyoko, Kasaroth... três dos nossos já foram mortos pela sua irmã — lamentou Merascilla, envolta em uma coberta ao lado de Ethan.

— Eu sei. Lutei contra o Kasaroth ao lado dela. Só estou vivo por causa da Ella.

— Esse é o ponto. Ela já matou três Emissários, e se ela vier atrás de mim?

— A Ella não está caçando vocês. Ela só mata quem entra no caminho dela. Minha irmã só está atrás do nosso pai. É só isso — respondeu Ethan, sentindo-se um traidor por discutir sobre Ella com Merascilla.

— E se ela me encontrar e tentar me matar? Você sabe o que eu precisaria fazer...

— Esse é o meu maior medo. Eu não quero te perder.

— O quê? — exclamou Merascilla, levantando-se indignada e nua. — Eu sou mais forte que sua irmã! Já matei inúmeros Águias. Você realmente acredita que ela poderia me derrotar?

— Eu sei, porra, eu sei que você é forte. Muito forte — admitiu Ethan, sério, levantando-se para encará-la. — Você venceria minha irmã facilmente se ela tivesse sido treinada apenas pela nossa mãe. Mas meu pai a treinou para ser uma assassina, não uma caçadora.

— O que você quer dizer com isso?

— Caçadores seguem códigos de honra. Não usamos encantamentos banidos, não matamos inimigos rendidos, evitamos danos colaterais sempre que possível e usamos a Vontade com sabedoria. Meu pai não ensinou nada disso para a Ella. Pelo contrário, ele a ensinou a jogar sujo, a não ter piedade e, acima de tudo, a ser uma assassina implacável. Se algum dia ela poupou alguém, foi porque essa pessoa conseguiu tocar o coração dela — e eu duvido que você tenha essa sorte.

— Você não me entendeu. Não tenho medo de morrer para ela, ela não me mataria. Mas se ela vier atrás de mim, me verei forçada a matá-la. Não quero que isso destrua nossa relação.

— Eu sei disso, mas ela é minha irmã, crescemos juntos... eu a amo, mas também te amo. Consegue entender a situação na qual você me colocou? — respondeu Ethan, sentando na cama novamente e colocando a mão na testa.

— Lembra de quando fizemos sexo pela primeira vez? Naquele dia, eu te disse que uma hora ou outra você teria que escolher um lado. Ser um caçador e se envolver romanticamente com um ser do Vazio não dá certo. Nunca deu — afirmou Merascilla, acariciando as costas de Ethan com delicadeza.

— Então eu vou ser o primeiro a fazer dar certo — respondeu Ethan, levantando-se da cama e vestindo suas calças com determinação. — Eu não vou abrir mão da minha irmã, e nem de você.

— É por isso que eu te amo. Você sempre tenta proteger aqueles que são importantes para você — disse Merascilla, sorrindo. — A propósito, além de matar as saudades de você, te chamei aqui para contar algo sobre os Emissários.

— É mesmo? O quê?

— Com a morte dos três, novos Emissários surgiram. Na última reunião que tivemos, eu os conheci. Um deles era um antigo lutador profissional, sua força era surpreendente, bem maior do que a minha. Já o outro... ele meio que já era um Emissário, o Astael. Ele dividia a mesma alma e corpo da Kiyoko, mas agora reencarnou em um novo corpo. Só estou te dizendo isso para você tomar cuidado. O Vazio pode até cair, mas ele sempre se ergue com o dobro de força.

— E o terceiro?

— Por enquanto, são só esses dois. Pode ser que no futuro alguém se destaque e se torne um Emissário — afirmou ela, lançando um olhar sugestivo e convidativo a Ethan.

— Bom, de todo jeito, obrigado por me avisar. Eu tenho que ir — concluiu ele, vestindo sua camisa e o casaco rapidamente.

— Não vai me dar um beijo? — questionou Merascilla, nua e com um sorriso travesso.

Ethan beijou sua boca carinhosamente e Merascilla o abraçou com a força de um urso.

— No final, será eu e você, juntos — assegurou Merascilla, encostando sua testa na dele.

Em outra realidade, os dois seriam inimigos mortais, mas o amor os uniu.

Já era bem cedo quando Ella despertou, ansiosa para começar o treinamento com Haldreth. Ela notou que ele não estava no quarto e desceu as escadas, procurando-o.

Ele não estava na cozinha, então Ella foi até a sala branca, onde o encontrou.

Haldreth estava sentado em posição de lótus, meditando, com uma tigela cheia de granola ao seu lado.

— Bom dia — disse Haldreth, pegando uma porção de granola assim que percebeu a presença de Ella.

— Bom dia... Ei! Você vai comer? Posso ver como faz isso? — exclamou Ella, curiosa, acelerando os passos para chegar perto dele.

Ele apertou um botão na lateral do seu capacete e a região da boca se retraiu.

— Uau! Você tem boca, então você é realmente um humano?

A pele de Haldreth exibia rachaduras visíveis e várias manchas em tons acinzentados e azulados, além de diversas cicatrizes. Somente sua boca era normal.

— Você tinha alguma dúvida? — respondeu ele, rindo baixo enquanto colocava a porção de granola na sua boca.

— Essas manchas são por causa da sua doença? Você não precisa ter vergonha de mim, pode tirar o capacete.

— Não me sinto confortável com isso. Mudando de assunto, coma. Vou te ensinar como clarear sua mente.

Ella pegou uma porção de granola e comeu. Não era uma das suas comidas favoritas, mas sabia que não podia exigir muito em um mundo como aquele.

— Primeiramente, sente-se como eu estou sentado.

Ela se acomodou na posição de lótus ao lado dele.

— O Plano Espiritual não pode ser alcançado por uma mente ruidosa. Você deve esvaziá-la, Ella. Não apenas seus pensamentos, mas também seus medos e expectativas. O vazio não é ausência, é potencial.

Fechando seus olhos, vários traumas invadiram sua mente. O rosto de todas as pessoas que já matara surgia como sombras, atormentando suas memórias.

— Eu não consigo — disse Ella, imediatamente.

— Ok. Então inspire profundamente e expire lentamente. Imagine a chama de uma vela branca. Concentre-se nela e mantenha-a como seu único pensamento. Veja como ela reage ao vento que se aproxima. Tente ouvir o som dele também.

Ella seguiu suas instruções. Sua mente parecia se estabilizar. Agora, seu único pensamento era a chama da vela, inabalável diante do vento que tentava apagá-la.

— Com a mente tranquila, o próximo passo é alinhar sua respiração com as batidas do seu coração. Torne isso em um ritmo.

Até aquele momento, parecia fácil seguir as orientações de Haldreth.

— Sinta o ambiente ao seu redor, não com seus sentidos físicos, mas com a sua consciência expandida. O espaço não é uma prisão, é uma ilusão criada pela nossa mente para nos manter nesse plano. Desprenda-se e transcenda! — disse Haldreth, de maneira serena.

Ella começou a sentir as coisas ao seu redor de uma maneira diferente, como se uma percepção vinda do seu peito detectasse tudo no ambiente.

— Agora... imagine que sua alma seja uma raiz de uma árvore e o solo, seu corpo. Visualize as raízes se desprendendo da terra lentamente, uma por uma. Quando a última raiz se desprender, permita que sua alma também o faça — orientou Haldreth, com uma voz suave, mas firme.

— Eu estou tentando, mas não estou sentindo nada — murmurou Ella, frustrada.

— Hmm, entendo. Sua alma não quer se desprender do seu corpo, é natural que ela a engane tentando te convencer de que é impossível fazer isso. Levante-se, vou te mostrar como é a sensação.

— O que você vai fazer?

Haldreth estendeu sua mão esquerda para trás e, com a palma da direita, golpeou o peito de Ella com uma força imensa. Não era uma força física, mas uma força espiritual.

Seu corpo foi jogado para trás junto com sua alma. Ella viu seu corpo de costas, com Haldreth a sua frente após executar o golpe. Pela primeira vez, sua alma se soltou das amarras de seu corpo, flutuando livremente.

Ella ficou fascinada, mas, de repente, pequenas mãos brancas radiantes surgiram do corpo de Ella e agarraram sua alma com uma força imensurável, puxando-a de volta para o corpo.

Antes que o corpo de Ella caísse no chão, Haldreth agarrou sua mão com firmeza. Ella voltou, arfando e assustada.

— Caralho, isso foi... foi insano! — exclamou Ella, rindo logo em seguida. — Eu vi o meu corpo de costas! Que incrível!

— Hah, eu também fiquei assim da primeira vez. Eu induzi seu corpo a uma projeção astral. Como deve ter percebido, mãozinhas te puxaram de volta. Isso é uma reação natural do corpo para não se desvencilhar da essência dele.

— Então, quando minha alma saiu do meu corpo, eu já estava no Plano Espiritual? — perguntou Ella, confusa e intrigada.

— Ah, não. Sua alma apenas saiu do seu corpo, mas continuou no plano físico. Para realmente entrar no Plano Espiritual, você precisa ascender de plano.

— E como faço isso?

— Um passo de cada vez, Ella. Primeiro, você precisa aprender a projetar sua alma para fora do seu corpo e não ser puxada de volta. Esse é o primeiro desafio.

Ella voltou a praticar o que Haldreth lhe havia ensinado. Os dias se passaram, transformando-se em semanas, e as semanas em meses.

A cada novo dia, Ella progredia mais e mais. Os exercícios mentais que Haldreth ensinou, estavam a ajudando a lidar melhor com os traumas que carregava, suavizando um pouco da dor que ainda a consumia.

Apesar dos progressos notáveis, Ella ainda estava longe de atingir o estado necessário para adentrar o Plano Espiritual. Mas, no fundo, ela sabia que era apenas uma questão de tempo.

Sempre que se deitava para dormir, seus pensamentos se voltavam para seu pai. Ela sabia que o encontraria, não importava o quão distante estivesse. De fato, era somente uma questão de tempo.



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