Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 34: O Paradoxo da Pressa

Ella e Icrow continuaram na árdua escalada da montanha. O crepúsculo logo cedeu espaço à noite estrelada e um manto de constelações começou a adornar o céu.

O relevo íngreme havia deixado ambos exaustos, mas o observatório estava a poucos metros de distância deles. Uma aurora boreal surgiu no céu, contemplando a misticidade daquela montanha.

— Ei! O que é aquilo? — perguntou Icrow, estupefato com a visão do céu.

— É uma aurora boreal, você nunca deve ter visto, né?

— Aurora boreal... é... incrível — exclamou Icrow, boquiaberto.

Do topo da montanha, a galáxia de Andromeda podia ser vista a olho nu, uma das visões mais lindas que se podia ter.

Andromeda era uma anomalia celestial: tão próxima da Terra, mas ao mesmo tempo tão distante. Vazia, mas tão preenchida...

Com mais alguns passos firmes, finalmente atingiram o cume da montanha, onde se erguia o misterioso observatório. Era enorme, muito mais do que um simples observatório. Era evidente que havia sido modificado manualmente por Haldreth.

Ao se aproximarem, um sensor de porta automática ativou com a presença de Ella, sinalizando que aquela estrutura ainda estava energizada.

Assim que atravessaram a porta, foram recepcionados por um curioso robô. Ele tinha quase três metros de altura, seu corpo metálico era coberto por uma capa negra.

Seu rosto... bem, ele não possuía um rosto. Um capacete futurista encobria quase toda sua face, exceto pela região bocal, que simulava a de um humano.

— Bem-vindos, fêmea humana e criatura de sexo indeterminado do Vazio. Vocês estão na residência do meu mestre, Haldreth. No que posso ajudá-los? — disse o robô, com um sorriso gentil. — E peço encarecidamente que não tentem saquear nossa propriedade, assim como fizeram os últimos visitantes. Caso contrário, terei que tornar essa experiência... desagradável.

— É-é um robô de guerra, Ella! T-tome cuidado — alertou Icrow, arrepiado e arisco como um gato.

— Calma, Icrow. Robô, seu pai, quer dizer, seu criador, Haldreth, ele me conhece. Pergunte por Ella Murphy.

— Ella Murphy? No meu banco de dados conta com a presença da história em ordem cronológica da família Murphy, desde o nascimento de Peter Murphy, em 2210 até o reconhecimento mundial de Aslan Murphy como herói em 3007, mas não há registros sobre o nome Ella Murphy.

— Rostov, pode liberá-los, a garota é minha convidada. Minha convidada especial! — disse Haldreth, aparecendo no cômodo.

— Oh... convidada especial? Me desculpe pela inconveniência, senhorita Ella Murphy, eu poderia te servir uma xícara de café ou chá? — perguntou o robô, mais gentil que um humano. — Percebo que possui feridas em seu rosto. Gostaria de uma toalha umedecida para limpá-las e remédios para dor?

— Eu aceito a toalha e os remédios, obrigada. — Ella sorriu.

— Rostov, traga toalhas e remédios para Ella. Pode deixar que eu recepciono meus convidados.

— Sim, senhor Haldreth. Novamente, me desculpe pela inconveniência — disse Rostov, fazendo uma reverência desajeitada e retirando-se.

Devido a sua altura, o robô era um tanto desengonçado. Ella não conseguia imaginar como ele poderia ter pertencido aos campos de batalha.

— P-por que ele não me ofereceu uma xícara de café ou chá? — reclamou Icrow, com seus bracinhos cruzados.

— Você provavelmente nem ia gostar dessas coisas, Icrow, não enche.

— Vejo que fez um amigo inusitado durante sua jornada até aqui. É irônico que tenha sido logo uma criatura do Vazio, hahaha — exclamou Haldreth, com um riso contido e elegante. — Mas não a julgo, até mesmo Chaos já fez amizades com humanos. Agora, me siga.

— Eu o conheço tem um tempinho, apenas reencontrei ele aqui — disse Ella, caminhando ao lado de Haldreth.

— É, ela tentou me matar.

— T-tentei uma ova! Eu te poupei, quem tentou te matar foi o Samuel, e você queria que ele me matasse.

— Bom, eu estava apenas protegendo o que era meu.

— Parece que você teve dificuldades para chegar até aqui, Ella. Seu rosto está coberto de sangue.

— Foi por causa daquelas porras de chimpanzés mutantes. Quando eu disse que queria ir para o observatório, eles me atacaram por ser amiga do “cientista maluco”. Não acha que me deve uma explicação?

Haldreth parou abruptamente e olhou fixo para Ella; a garota não sabia como estava sua expressão, seu capacete cobria qualquer coisa.

— Primeiramente, não são chimpanzés, são mandris — corrigiu ele, voltando a caminhar. — Segundamente, admito que eu possa ter sido vago sobre os perigos da montanha. Mas veja pelo lado bom, você chegou aqui viva, né? É isso que realmente importa.

— Bom, foda-se. Eu consegui recuperar o seu artefato, agora exijo que cumpra sua parte do tratado — declarou Ella, com seu olhar aterrorizante.

— Não me faça esse olhar de cachorro raivoso. Cumprirei minha palavra, mas antes, me devolva minha criação.

Ella retirou o catalisador atemporal-espiritual da sua bolsa e entregou nas mãos de Haldreth. Um suspiro satisfeito escapou do homem.

— Oh... minha mais perfeita criação, você retornou para mim!

— Como isso funciona exatamente? Um amigo me disse que ele, meio que catalisa o poder da alma de um Primordial.

— Precisamente! A alma de um Primordial, mesmo separada do seu corpo original, ainda mantém suas particularidades intactas. Podemos selá-la em um corpo, objeto, arma e, ainda assim, ter acesso ao seu poder. Claro, essa é uma prática totalmente antiética e desumana — afinal, estamos aprisionando a essência de um humano eternamente em um receptáculo — mas não deixa de ser poderosa.

— Se você sabe que é antiético, porque continua fazendo? — questionou Ella rapidamente, com a resposta na ponta da língua.

— Matar também é antiético, e nem imagino quantas vidas você tirou para recuperar minha criação. Tudo isso porque você deseja algo que só eu posso oferecer. Nós dois temos algo em comum, somos movidos por uma determinação inabalável. Ética ou moralidade são obstáculos insignificantes diante de nossas ambições. Verdade ou mentira? — rebateu Haldreth, astuto.

— Os fins justificam os meios. O que estou fazendo, no fim salvará a humanidade.

— Hm... cada um tenta achar uma justificativa para os seus atos, não é mesmo?

Enquanto discutiam, caminhavam pelo corredor da instalação até chegaram a um cômodo completamente branco, iluminado por luzes quentes.

— E qual é a sua justificativa? — indagou Ella, cruzando os braços.

— Progresso e evolução através da ciência. Foi isso que impulsionou a humanidade desde o primórdio, não poderes fajutos como a vontade. Nossa espécie surgiu há cerca de duzentos mil anos atrás e, desde então, evoluímos com a ciência ao nosso lado. A vontade surgiu há apenas oitocentos anos atrás e veja onde estamos: à beira da extinção. Isso não é uma benção como dizem, é uma maldição.

— E então, seu plano é salvar a humanidade através da ciência? Essa é sua nobre justificativa? — retrucou Ella, com um sorriso sarcástico.

— Eu nasci no ano de 2810, naquela época... não havia guerras, não existia o Vazio, não havia caçadores, vivíamos em paz, consegue imaginar? Mas eu nasci com uma doença crônica, exclusiva dos primordiais. Meu pai era um bioengenheiro especializado em nanotecnologia, era só nós dois. Minha mãe nos abandonou dias depois de descobrirem minha doença. Meu pai largou o emprego dele para se dedicar em tempo integral a minha doença, ele não aceitava que uma enfermidade pudesse acabar com o filho dele. E meu pai estava certo, não havia nada que a ciência não pudesse resolver.

— Mas a doença era incurável? Nenhum médico trabalhava na cura dela?

— Médicos renomados trabalharam por anos na cura, mas nunca a encontraram. Meu pai, um simples bioengenheiro, no laboratório improvisado de casa, alcançou o que milhares de especialistas não conseguiram. Entende? A mais simples das ciências pode ser mais poderosa do que qualquer milagre. E o que você trouxe para mim, é uma parte fundamental do meu plano para salvar a humanidade.

— E como manipular o tempo pode ajudar a curar uma doença que infectou bilhões de pessoas?

— Bom, já que está tão curiosa, venha comigo, tenho algo para te mostrar.

Haldreth empurrou uma parede falsa no meio do corredor, revelando uma escadaria que levava a um compartimento secreto do observatório. Ao acender as luzes, uma visão aterradora se revelou diante deles.

Pela primeira vez em sua vida, Ella viu um homem infectado com a Infecção Astral.

A criatura era enorme, de pele pálida e coberta por crostas e chifres dourados que surgiam de maneira caótica pelo corpo. Seus cabelos brancos haviam crescido tanto que tocavam o chão, e seus olhos brilhavam com uma luz dourada e etérea.

Em algumas partes expostas da sua pele, runas cintilantes reluziam como uma galáxia distante, pulsando em sincronia.

Assim que a luz atingiu seus olhos, ele reagiu com ferocidade, rugindo contra eles. Um rugido gutural, ecoante e profundo, com uma ressonância que lembrava vozes sobrepostas.

— O que... o que aconteceu com ele? Eu nunca vi algo assim antes — indagou Ella, aterrorizada e com os olhos arregalados.

— Infecção Astral. É isso que estou tentando curar. Às vezes, os métodos que eu usava eram letais, sempre que eu cometia um erro, voltava à linha de tempo original. Manipular o tempo me permitia repetir os experimentos até conseguir um avanço. Mas quando aqueles malditos roubaram o catalisador, fui forçado a pausar meus estudos. Agora, graças a você, poderei retomar meu trabalho.

— Você realmente acredita que consegue encontrar uma cura para isso? — Ella lembrou de seu pai e do medo de perdê-lo para aquela mesma infecção.

— Honestamente, não sei. Pelos meus estudos, isso não é uma doença ou uma infecção como pensavam. É algo além. Sempre que eu consigo destruir uma célula infectada, ela se regenera instantaneamente. É como se ele fizesse parte de uma rede que não pode ser desfeita pelas mãos humanas.

— Então, a única maneira de acabar com essa rede é...

— Destruindo o núcleo — finalizou Haldreth, com um teor sombrio.

O clima pesou e ambos adotaram uma postura séria. A humanidade estava em maus lençóis, e eles tinham plena consciência disso.

— Vamos subir. Agora você é minha pupila, e eu preciso treinar a mulher que destruirá o núcleo — exclamou Haldreth, quebrando o silêncio.

Haldreth levou Ella até seu quarto. O ambiente era bem bagunçado, como se cada canto refletisse a mente inquieta do cientista. No centro do quarto, havia um telescópio colossal, e acima dele, uma cúpula transparente revelava o céu estrelado.

— O observatório não tem muitos cômodos, então você vai ter que dormir no meu quarto, espero que isso não seja um problema. Separei esse colchão para você, tem esse travesseiro e esse cobertorzinho, você não passa frio, então... é só isso mesmo — disse Haldreth, mostrando a cama improvisada de Ella.

— E aquela sala branca vazia, serve pra que?

— É onde eu medito e acesso o Plano Espiritual. Projetei aquela para ser um ambiente sereno e acolhedor, facilitando o processo de conexão.

— Entendi, podemos começar agora? — pediu Ella, ansiosa.

— Melhor não. Trate seus ferimentos e descanse, amanhã começaremos. A propósito, onde está o Rostov? Pedi para ele trazer toalhas e remédios para você.

— Eu só levei uma cabeçada, pra quem já perdeu uns dedos, isso não é nada — afirmou Ella, soltando uma risada leve.

— A pressa é um paradoxo, Ella. Quanto mais rápido você tenta alcançar algo, mais distante ele parece ficar. Cumpra todos os seus objetivos no tempo certo e quando for a hora de encontrar seu pai, você o achará.

— Mas e se eu demorar demais? E se ele morrer? Eu... eu não tenho tempo a perder. Já perdi tempo demais ajudando os outros.

— Você tem tanto medo do fracasso, minha garota, mas existe beleza até mesmo no fracasso. Se ele morrer? Continue o que ele começou. A vida nem sempre é justa, é uma verdade que você precisa aceitar. Não há mérito no fracasso, mas não há vergonha maior do que a desistência.

Ella permaneceu quieta, absorvendo as palavras de Haldreth, dois séculos de vivência o tornaram um homem sábio.

— Talvez você tenha razão, mas... porra, você bem que poderia tirar esse capacete — comentou Ella, rindo. — Às vezes nem soa como um humano.

— Você não iria gostar de ver o que está por baixo do capacete — afirmou Haldreth, sério. — Está com fome? Vou preparar algo para nós e deitar. Amanhã será um dia longo.

— Sim, bastante.

— Vamos descer então. Aproveitaremos para descobrir porque o Rostov não atendeu ao meu pedido.

Quando chegaram ao primeiro andar, encontraram Rostov tocando uma música no piano para Icrow. As paredes com isolamento acústico do quarto de Haldreth impediram que qualquer som chegasse até eles.

— Rostov! Por que não trouxe os remédios que eu pedi? — exclamou Haldreth, irritado.

— Perdoe-me senhor. Nosso pequenino visitante especial pediu para que eu tocasse uma música para ele. Irei buscar os medicamentos para Ella — disse Rostov, levantando-se de forma desengonçada.

Icrow rapidamente escalou Ella, acomodando-se em seu ombro.

— Devagar, você não é tão leve quanto pensa — murmurou Ella.

— Vamos ficar aqui por quanto tempo? Eu gostei daqui — perguntou Icrow.

— Não sei, para que a pressa? Ficarei o tempo que for necessário — respondeu Ella, sorrindo para Haldreth.

— Você aprende rápido. Gosto disso — respondeu ele, rindo amigavelmente.

Haldreth tinha muito a ensinar para Ella, e a paciência seria uma virtude necessária para a jornada que os aguardava.



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