Volume 1 – Arco 2
Capítulo 33: Tamanha Insolência Indesejada!
O nascer do sol iluminou os olhos de Ella. Ela despertou tranquila, sem pesadelos, sem ser raptada, desfrutando de uma rara boa noite de sono.
Ella retirou da sua mochila um enlatado de carne em conserva e o abriu com sua faca. O sabor não era saboroso como as comidas da UCC, mas, como dizem, “o melhor tempero da comida é a fome”. Após devorar a comida, saciou a sede com alguns goles de água do seu cantil e desmontou o acampamento improvisado, guardando tudo cuidadosamente em sua mochila.
A garota escalou um amontoado de veículos abandonados que bloqueavam a entrada e seguiu pela trilha dos turistas. Era uma montanha verdejante, suas árvores formavam um contraste sereno com a paisagem urbana. Animais de pequeno porte se escondiam em arbustos ao passo que ela caminhava, atentos, mas sem perturbar sua jornada.
O solo da montanha era coberto por grama e flores, um refúgio perfeito para a convivência pacífica de animais. À medida que Ella subia, mais misteriosa ficava a montanha, como se ela guardasse segredos sob o véu da altitude.
O gorjeio dos pássaros e o som de um riacho próximo impediam o silêncio na montanha. A trilha adiante estava bloqueada por escombros, estava na hora da verdadeira escalada.
Abrindo a mochila, Ella pegou luvas de aderência molecular, uma tecnologia que revolucionou o mundo e tornou cordas e andaimes obsoletos, já que imitava com perfeição as patas das lagartixas, permitindo a escalada segura de superfícies verticais, inclinadas e horizontais.
Ela também pegou uma corda de nano fibras inteligentes, capaz de ajustar automaticamente seu comprimento e tensão a superfície.
Com os equipamentos prontos, Ella iniciou a escalada pelas rochas de calcário da montanha. Alguns animais pequenos começaram a segui-la. Pareciam coelhos com corpos de suricatos, mas surpreendiam com sua habilidade de escalar paredes verticais.
Eram animais inusitados, Ella não lembrava de tê-los visto em nenhum livro de biologia — não que tivesse visto muitos animais em toda sua vida.
Após ter escalado a enorme parede de calcário, finalmente alcançou uma superfície sólida, no entanto, coberta por árvores enormes. Podia escutar ruídos de animais selvagens, semelhantes aos de um chimpanzé.
Ella adentrou a pequena floresta montanhosa e retomou a trilha. Era um terreno um tanto quanto acidentado, cheio de desníveis que exigiam atenção. Porém, a cada passo que dava, algo a deixava inquieta: tinha a nítida sensação de já ter passado pela mesma árvore diversas vezes.
A base era larga, com um oco enorme no tronco e marcas de corte na madeira.
Para sanar sua dúvida mortal, Ella pegou a faca na sua bota e gravou seu nome na base do tronco. Em seguida, continuou caminhando.
O que suspeitava se confirmou: a mesma árvore de base larga, com um oco enorme e marcas de corte na madeira reapareceu. Agora, continha seu nome gravado.
Ella olhou ao redor, confusa. Tudo que via eram mais e mais árvores. Era impossível aquilo estar acontecendo — ela tinha caminhado apenas em linha reta.
— Que porra, Haldreth... você não avisou que essa floresta é um labirinto vivo.
Antes que pudesse formular um plano, uma voz sussurrante emergiu de dentro do oco da árvore.
— Caçadora, é você?
— Quem está aí? — perguntou Ella, institivamente levando a mão à sua rapieira.
Lentamente, um par de orelhas desproporcionalmente grandes despontou do interior da árvore. A criatura que apareceu era inconfundível: Icrow, a primeira criatura consciente do Vazio com quem Ella interagiu.
— Você... se lembra de mim? — perguntou Icrow, timidamente.
— Icrow?! O que você está fazendo aqui, tão longe da sua gruta?
— Desde que você matou Deathbringer, as névoas que ocultavam minha gruta se foram, e-e aqueles malditos Ceifadores invadiram minha caverna e roubaram tudo que eu tinha. Fugi para o mais distante que consegui — explicou, cabisbaixo.
— Então você está morando aqui nas montanhas desde então? Como conseguiu viver nesse labirinto? Pode me ajudar a sair daqui?
— Não é um labirinto. Você só precisa saber como caminhar nessa floresta. Krohn pode te ensinar a sair daqui.
Icrow saiu do oco da árvore e saltou para o ombro de Ella, equilibrando-se como um papagaio de pirata.
— Você é uma criatura do Vazio, por que o Chaos não te protegeu disso tudo?
— Que utilidade eu teria para ele? Sou apenas uma criatura pequena e fraca... sequer consegui proteger os cristais que eu tanto amava.
— Se serve de consolo, eu também fui derrotada pelos Ceifadores. Se não fosse pelo meu irmão, já estaria morta. Você não é fraco, Icrow, apenas não despertou seu verdadeiro potencial — consolou Ella, com um sorriso amigável. — Agora, pode me levar até esse Krohn?
— Claro, andar na floresta pode ser um pouco confuso, mas eu vou te guiar. Espero que Krohn seja mais gentil com você do que foi comigo.
Icrow guiou Ella entre as enormes árvores, instruindo-a tomar direções confusas, as vezes para a esquerda, logo em seguida para a direita, e até caminhar para trás. Por mais estranho que parecesse, o método parecia funcionar, fazia tempo que Ella não via a árvore marcada.
Logo, os sons de chimpanzé se intensificaram e Ella começou a notar casas tribais construídas no alto das árvores.
— Quem mora aqui? — perguntou Ella, com um mal pressentimento.
Antes que Icrow pudesse responder, diversos primatas começaram a sair das casas. Todos eles encaravam Ella sob a copa das árvores.
Eram semelhantes a mandris, mas muito maiores e robustos. Suas mandíbulas largas e caudas preênseis, que funcionavam quase como mãos, os tornavam mais intimidadores.
Mais e mais primatas se aproximavam pelo solo, Ella rapidamente desembainhou sua rapieira ao perceber que estava encurralada.
Alguns deles rugiram para Ella, exibindo seus gigantescos caninos que facilmente poderiam esmagar seus ossos. Muitos tinham cicatrizes em seus rostos; outros ostentavam pinturas tribais.
— Icrow, diga a eles para eles se acalmarem! — gritou Ella.
— Ela está comigo, queremos falar com o Krohn!
— SILÊNCIO! — gritou um primata gigante, emergindo da multidão.
Todos os outros primatas obedeceram a sua ordem e pararam de guinchar. Os que estavam em sua frente, abriram espaço para que ele passasse.
O líder era duas vezes maior que os outros primatas, com pelo menos dois metros de altura e com várias cicatrizes em seu rosto. Sua pelagem, como a dos outros, se camuflava naquela floresta.
— Tamanha insolência indesejada, Icrow! — rugiu Krohn, com um olhar ameaçador. — Fomos generosos ao aceitar um verme como você em nosso bando e agora traz uma forasteira até nosso lar?
— E-eu só quero que você ajude-a sair da floresta. E-Ella, diga a ele onde você deseja ir — gaguejou Icrow, temeroso.
— Tudo que eu quero é sair dessa floresta e chegar no observatório da montanha, nada mais. Não vim para machucar ninguém.
— Se não veio para machucar ninguém, porque veio com essa espada, esse revólver e esse olhar que indica raiva? Volte para sua casa, antes que eu mude de ideia e acabe com sua raça — ameaçou Krohn, circulando-a como um predador.
— Ela quer ir para o topo, é uma amiga do cientista maluco! — gritou um dos primatas.
A multidão respondeu com guinchos ensurdecedores, todos direcionados a Ella.
— Icrow, você sabe como sair da floresta? — perguntou Ella, desembainhando a rapieira e o revólver ao mesmo tempo.
— O-o que você vai fazer?
— Você sabe ou não?
— N-não, eu só sei caminhar na floresta, mas não onde termina. Tudo que posso fazer é te guiar.
— Ótimo, então suba nas minhas costas, agora! — ordenou Ella, apontando o revólver para Krohn. O cano da arma começou a incandescer. — Uma coisa você acertou, Krohn, eu realmente estou com raiva.
— ATAQUEM! — bradou Krohn, avançando com fúria.
Os primatas avançaram contra Ella no momento em que ela disparou duas vezes em Krohn. Enquanto corria freneticamente, Icrow gritava em seu ouvido as direções que ela deveria seguir.
— Esquerda! Agora direita! Volte para trás, rápido!
Os primatas se moviam com agilidade, escalando galhos ou avançando pelo solo. Os dois tiros não foram suficientes para matar Krohn, que a perseguia com o ódio de um touro enfurecido.
Um dos primatas saltou com suas garras prontas para cortar sua garganta. Ella desviou no último instante e revidou com um corte nas costelas dele, lançando-o ao chão.
— Icrow, segura firme na minha jaqueta — ordenou Ella, correndo em direção a uma árvore.
— Ella! A árvore, nós vamos morrer!!! — gritou Icrow, em pânico.
— Explosive Flammae — gritou Ella.
As veias de seu braço começaram a brilhar em tons alaranjados e avermelhados, ao passo que o cano do seu revólver ficava completamente em chamas. Ella escalou a árvore com rapidez e executou um mortal para trás, disparando contra os primatas que a perseguiam.
Um tiro foi o suficiente para gerar uma explosão de chamas que incendiou todos os macacos que a perseguiam por trás. Quando Ella se preparava mirar em Krohn, se surpreendeu com uma árvore inteira arremessada em sua direção.
Ella reagiu no último segundo, cortando a árvore pelo meio com sua rapieira. Mas Krohn logo veio com um salto esmagador; ela desviou e cravou sua rapieira no flanco do primata gigante.
Krohn, no entanto, era extremamente resistente. Com um rugido feroz, desferiu um soco devastador no rosto de Ella, rápido demais para que ela retirasse a rapieira de seu corpo.
Ella foi arremessada contra uma árvore gigante, batendo suas costas e sentindo uma dor lancinante. Icrow pulou da cabeça de Ella momentos antes dela ser atingida.
Os primatas restantes cercaram Ella enquanto ela se levantava; Krohn ficou surpreso com o fato dela ainda ter se levantado, nenhum outro inimigo tinha atingido tal feito.
— Macaco desgraçado — murmurou Ella, com o rosto pingando sangue.
— Sempre derrotei meus inimigos com um único golpe, como você ainda está de pé?
Krohn avançou novamente na direção de Ella desferindo um soco. Ella esquivou-se no tempo certo e disparou contra os outros primatas que a cercavam, eliminando mais alguns.
Restavam apenas duas balas no tambor do revólver, Ella precisava recuperar sua rapieira urgentemente.
O primata gigante lançou outro golpe pesado nela, mas dessa vez, seu movimento foi previsível. Ella desviou, tentando alcançar a rapieira cravada no flanco de Krohn, mas ele antecipou seu movimento e a atingiu com uma cabeçada brutal.
Ella caiu no chão, atordoada, com a mão na cabeça.
— Vocês humanos são todos iguais..., mas você é diferente, todos que pisaram aqui, morreram como formigas esmagadas.
Enquanto Krohn se vangloriava, Ella percebeu Icrow se movendo furtivamente em direção à rapieira. Um sorriso despontou em seu rosto ensanguentado.
— Quer saber porque eu sou tão forte? — provocou Ella, com um sorriso desafiador.
Krohn bufou como resposta.
Os primatas restantes gritaram ao perceber a manobra de Icrow, mas era tarde demais. O pequenino correu e cabeceou a rapieira de Ella, empurrando-a ainda mais fundo no corpo de Krohn.
Com um rugido de dor, Krohn chutou Icrow para longe, mas era essa a distração de que Ella precisava. Ela descarregou suas duas últimas balas: uma no coração e outra na cabeça do primata.
— É porque eu sou a porra de uma Primordial.
Os outros primatas recuaram ao verem seu glorioso líder cair de costas no chão. Ella se levantou com dificuldade, sentindo a cabeça e costas latejarem de dor.
Com um esforço final, puxou a rapieira de dentro de Krohn, subiu sobre seu corpo e começou a perfurar seu coração repetidamente na frente de todos os outros primatas.
— Vocês viram do que sou capaz! Agora, me levem até a saída ou farei o mesmo com cada um de vocês! — rugiu Ella, apontando a rapieira para os poucos primatas sobreviventes.
Alguns primatas rugiram para Ella, enquanto outros murmuravam em pavor:
— Ela matou o Krohn...
— Vocês a escutaram seus idiotas? — gritou Icrow, pulando no corpo do líder caído. — Nos levem para a saída ou serão os próximos!
Ella sorriu para Icrow, sua “pureza” ainda tinha sido mantida desde aquele dia.
Sem coragem para desafiá-la, os primatas sobreviventes conduziram Ella e Icrow até a trilha dos turistas. Eles sabiam como se mover perfeitamente naquela floresta labiríntica.
— A-agora, nos deixe em paz, humana do alto — implorou um deles, antes de fugir junto ao grupo.
— Acho que acabamos com o grupo que te acolheu — pontuou Ella, rindo. — O que pretende fazer agora?
Icrow escalou pelas pernas de Ella até alcançar suas costas.
— Minhas costas estão doendo, vá com calma.
— Posso ir com você? Não tenho para onde ir.
— Não acha que é meio contraintuitivo uma caçadora do Vazio andar com uma criatura do Vazio? É tipo um lobo andar com uma ovelha.
— Por favor, não tenho mais nenhum lugar para ir, não me abandone aqui — suplicou Icrow, colocando suas mãozinhas na cabeça dela.
— Tá bom, você venceu. Só desça da minha cabeça, está me matando de dor.
— Obaa! Muito obrigado, Ella! — comemorou Icrow, saltando da sua cabeça e abraçando a perna dela.
Icrow era como uma criança inocente presa no corpo de uma criatura do Vazio. Ella sabia que não poderia deixá-lo sozinho naquele mundo cruel.
— O observatório está perto. Vamos conseguir chegar hoje ainda — disse Ella, sombreando os olhos com a mão. — Pai... eu estou cada vez mais perto.
A meta estava clara. Faltava pouco para reencontrar Haldreth, e Ella tinha grandes planos para ele.