Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 32: O Cervo Albino

O céu estava cinza, mais denso e sufocante do que em um dia nublado, era um cinza opressor. Não havia sons naquele dia, nem sequer o gorjeio dos pássaros, apenas o som dos passos de Ella quebravam essa quietude, ecoando naquele ambiente com um ritmo hesitante e sombrio.

Enquanto caminhava, um peso estranho pairava sobre seus ombros, como se algo invisível estivesse agarrado a suas costas. Quando tentou tocar o que a incomodava, notou que suas mãos encontraram braços finos e frios.

Ella virou a cabeça lentamente, apenas o suficiente para ver o rosto de uma criança, agarrada nas suas costas como um peso morto. Os olhos do menino estavam vidrados, sem vida e com a boca entreaberta, sussurrando repetidas vezes.

— Você não pode me deixar... você não pode me deixar.

Desesperada, Ella tentou correr, mas quanto mais avançava, mais pesado ficava o corpo da criança, ao ponto de cada arrasto ser doloroso. O peso era tanto que não foi capaz de suportar, cedendo ao chão.

A criança ergueu a cabeça sobre o ombro dela e murmurou com uma voz vazia e acusatória:

— Por que você fez isso comigo? Você é um monstro terrível, uma pecadora odiosa, arderá nas chamas do inferno.

As mãos gélidas da criança envolveram o pescoço de Ella, apertando mais e mais, até que tudo ficasse escuro.

Ella acordou com um sobressalto, com a garganta sufocada e a sensação persistente de que aquele peso sombrio ainda estava lá.

Com um olhar amargurado, ela se levantou e começou a se arrumar. Haldreth a esperava em sua enigmática base, e não podia se atrasar.

— Onde você vai? — perguntou Ethan, ao vê-la saindo do quarto apressada.

— Vou me encontrar com o Haldreth, quanto mais rápido eu chegar, melhor.

— Você quer conversar sobre o que aconteceu ontem? Sabe, não precisa aguentar tudo sozinha...

— Eu vou ficar bem — respondeu Ella, forçando um sorriso.

Ella seguiu até a sala de Marc, determinada a cumprir o restante da missão.

— Preciso de mais munições de Rubrannium e um equipamento de escalada. Estou indo para a base do Haldreth — pediu Ella, colocando sua Colt Python na mesa de Marc.

Marc pegou a arma e a examinou, um lampejo de nostalgia passou em seus olhos.

— Hmm, esse revólver já passou por muitas mãos... dei ele ao seu avô, passou para o seu pai, e agora é seu. É uma peça rara da CCV — comentou Marc, examinando-o. — Ainda temos um estoque de munições universais, mas está chegando ao fim. Não sei se posso te dar algumas.

— Não é possível que ninguém saiba trabalhar com Rubrannium nos dias de hoje. Existem muitas armas de Rubrannium largadas pelo mundo, material não falta, né? — insistiu Ella.

— Bom, tem o Oliver, nosso melhor ferreiro, aquele que forjou a lendária espada do Aslan. Mas ele partiu no dia que seu pai abandonou a comunidade. Tirando ele, temos somente o Engenheiro, mas ele não é de confiança...

— Engenheiro, não sabem o nome dele? E por que ele não seria de confiança?

— Ninguém sabe, assim como nunca viram seu rosto. Ele é um homem sem lealdade, fabrica armas para qualquer um: Goldwings, Puracionistas, Ceifadores. Desde que paguem, não importa quem.

— Certo... pode pelo menos me dar o equipamento de escalada?

— Claro, vou mandar buscar pra você. Enquanto isso, aceita uma xícara de café? Fiz agora há pouco — respondeu Marc, pegando uma xícara e uma moka.

— Não gosto de café, mas aceito um copo de água, se tiver.

— Não gosta de café? Sabe o quão difícil é arranjar um pouco hoje em dia? Não sabe o que está perdendo — exclamou Marc, rindo e tomando um gole de café.

Ao descer para o saguão, Ella encontrou um homem alto, negro e vestido elegantemente, a esperando com uma mochila em mãos.

— Bom dia, senhorita Murphy, acredito que ainda não me conheça, me chamo Sebastian, sou o braço direito do senhor Marc. Aqui está o equipamento que solicitou — disse ele, entregando a mochila nas mãos dela. — Tome cuidado, as montanhas de Rubra são perigosas.

— Não me lembro de ter te visto antes, estava fora da comunidade há quanto tempo? — perguntou Ella, pegando a mochila.

— Não muito, estava em uma viagem de negócios, resolvendo algumas pendências para o senhor Marc, se é que me entende — respondeu Sebastian, com um sorriso elegante.

— Entendo, foi um prazer te conhecer. E obrigada.

— O prazer é todo meu. E de nada.

Prestes a deixar a comunidade pelo portão principal, uma voz infantil a chamou.

— Ella!!! — gritou a garota, pulando e a abraçando. — Você lembra de mim?

— Você é a... Verônica, certo?

— Sim! Eu fiquei sabendo do que você fez, invadiu a comunidade dos Goldwings e voltou viva, você é tão irada! Meu sonho é ser como você quando crescer — exclamou Verônica, extremamente animada.

Ella sorriu, embora soubesse que nem mesmo ela gostaria de ser quem é. Carregar todos os pecados que ela carregava não era uma tarefa fácil.

— Que tal quando eu voltar, eu te ensinar algumas coisas? Assim você será uma caçadora da futura geração — respondeu Ella, sorrindo gentilmente.

— Sério?! Eu adoraria — alegrou-se Verônica, pulando de alegria.

Marc apareceu e pegou Verônica pela mão.

— Agora vamos, Verônica, a tia Ella tem uma missão para cumprir.

— Tchau, Ella, boa sorte na sua missão! — despediu-se Verônica, com um sorriso ingênuo.

Ella acenou para Verônica, despedindo-se. No horizonte, as montanhas de Rubra erguiam-se majestosamente. Como teria que escalar a montanha, levar um cavalo seria inviável. A jornada até lá seria a pé, esperava ao menos alcançar o sopé da montanha antes do entardecer.

E assim começou sua jornada entre as terras esquecidas de Rubra, outrora a maior metrópole do planeta, hoje permanece em ruínas.

Caminhou durante horas, o dia estava calmo, solitário, muito parado para o que estava acostumada. Seguiu caminhando até avistar um cervo albino, estava bebendo água calmamente em uma lagoa.

Ella se encantou com a beleza do animal e começou a se aproximar devagar. O cervo logo percebeu sua presença e recuou um pouco, mas a garota tentou  acalmá-lo.

— Calma, calma, calma, não vou te machucar — disse Ella, estendendo a mão tentando amansar o animal.

O cervo deu pequenos saltos para trás, mas logo deixou Ella se aproximar; provavelmente não via um humano há muito tempo e havia perdido a noção do perigo.

O animal bufava conforme a mão de Ella se aproximava, mas quando sentiu o toque sereno de sua mão, tranquilizou-se.

— Não está com medo? — sussurrou Ella, agachando-se e acariciando a cabeça do cervo. — Você é tão lindo, perfeito e puro...

Ella olhava seu reflexo nos olhos negros do cervo. Era como se ainda enxergasse a parte pura de sua alma.

Pela primeira vez em muito tempo, uma sensação de paz preencheu seu peito, como se a presença desse simples animal tivesse restaurado algo que faltava dentro dela.

— Obrigada por confiar em mim — disse Ella, sorrindo. — Está com fome? Eu acho que tenho um...

Antes que pudesse terminar sua frase, um disparo ecoou. O cervo tombou morto diante dela, o sangue se espalhando no chão rapidamente.

Ella gritou assustada, recuando para trás agachada; o sangue do cervo escorria em seu rosto, enquanto ainda permanecia em choque.

De longe, um homem começou a gritar em comemoração, acompanhado de risadas enquanto se aproximava dela.

— Isso! Você encurralou esse cervo de forma perfeita, hahaha. Viu isso? Puta merda, quase te acertei, foi mal! — gritou ele, eufórico, aproximando-se do cervo. — Olha isso, esse cervo vai nos render carne por um mês! Podemos dividir, o que acha?

Ella, ainda atordoada, encarava o homem extremamente animado com a morte do cervo. Sua mente hesitava, não sabendo o que fazer naquele momento, mas seu corpo já tinha uma resposta: matá-lo.

— Aí, garota, eu nem perguntei, como você se chama?

Ao erguer o olhar, sentiu o golpe repentino e fatal da rapieira de Ella rasgando sua garganta. O olhar atônito do homem encontrou o dela, transbordando ódio, até que seu último suspiro escapou e caiu morto no chão.

Ella fechou os olhos do cervo e depois os do homem, retomando a sua caminhada. Enquanto caminhava, refletia sobre o motivo de ter tirado aquela vida. Talvez ele não merecesse, mas naquela altura, isso já não importava.

Ao pôr do sol, ela finalmente atingiu o sopé da montanha. Uma neblina densa cobria os horizontes e uma chuva fina encharcava a vegetação ao redor.

Ella não se deu o trabalho de montar uma barraca, apenas improvisou uma lona acima da sua cabeça e deitou. Seu corpo e mente exaustos não demoraram a sucumbir ao sono.

Uma placa ao lado do seu acampamento improvisado indicava o início da montanha: “Montanha dos Cosmos. Entrada somente com ticket”.

As palavras de Haldreth ecoaram em sua mente: “Tome cuidado, a montanha pode ser um pouco agressiva com visitantes”. O dia seguinte prometia ameaças, mas era o preço que estava disposta a pagar.



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