Volume 1 – Arco 2
Capítulo 31: A Dor Do Pecado
Alguns dos túneis no sistema de esgotos eram mais estreitos do que demais, tornando quase impossível ver qualquer coisa com clareza enquanto corria freneticamente.
Ella sequer sabia se ainda estava seguia pelo caminho certo, mas os sons de passos não paravam de se aproximar. De repente, vindo de sua direita, um homem a atacou brutalmente com um machado.
Desviando para o lado, Ella desembainhou sua rapieira com agilidade e estocou o estômago do homem. Não sendo o suficiente para matá-lo, ele a segurou pelos braços e a arremessou de lado.
— Ela está ali! — gritou outro homem, com a lanterna de um rifle apontando para o rosto de Ella.
Tendo noção da desvantagem numérica, Ella tornou a correr em linha reta, virando no primeiro túnel à esquerda.
Eles não desistiram da perseguição, mas a sorte favoreceu Ella mais uma vez: uma luz tênue no fim do túnel surgiu. A claridade vinha de uma porta entreaberta
Seus perseguidores a alcançaram, abrindo fogo contra ela. Dois dos inúmeros tiros disparados a atingiram na perna direita, mas Ella continuou a correr freneticamente, tentando ignorar a dor extrema em sua perna.
Empurrou a porta do fim do túnel bruscamente com seu ombro. Repentinamente, estava à beira de um penhasco alagado — um passo em falso e cairia num enorme buraco profundo.
Sem opções, Ella se preparou para saltar do penhasco; era um salto no escuro, mas ao havia uma chance de sobreviver. Se ficasse, seria capturada. Prestes a saltar, uma corda caiu sobre sua cabeça.
— Se quiser sobreviver, pegue a corda — disse um homem, na superfície acima dela.
Sem hesitar, Ella segurou a corda e foi puxada rapidamente. Com a ajuda dos homens que a içavam, logo se agarrou a borda e subiu. Ao pisar em solo firme, armas foram apontadas para sua cabeça.
— Diga seu nome, se não atiraremos — ameaçou um deles, friamente, puxando o capuz dela.
— E-Ella... — respondeu, temendo o pior.
— Ella Murphy, não é?
— Sim — confirmou Ella, abaixando a cabeça, resignada, esperando uma bala em sua cabeça.
— É ela! Abaixem as armas — ordenou o homem, esboçando um leve sorriso. — Prazer em te conhecer, me chamo Kurt Weiss.
Ele estendeu a mão para Ella, que ergueu a cabeça lentamente, surpresa. Ella apertou sua mão e se levantou, apoiando-se, ainda sentindo a dor na perna.
— Quem são vocês? Por que queriam saber o meu nome? — perguntou, desconfiada.
— Logan nos contratou para capturar uma mulher que invadiu sua comunidade...
Antes que ele pudesse continuar, Ella rapidamente sacou seu revólver e apontou-o para a cabeça de Kurt.
— Calma! Não somos inimigos, jamais entregaríamos um Murphy para ele. Vocês são como deuses para gente! — exclamou Kurt, erguendo as mãos apressadamente.
— Mostre o seu pescoço — ordenou Ella, ainda desconfiada e com o revólver fixo nele.
Kurt puxou sua gola alta, revelando o que Ella esperava; a mesma tatuagem de uma suástica nazista dourada, com quatro estrelas brancas de cinco pontas entre os braços da suástica.
— Você disse que Logan mandou vocês atrás de mim. Por que querem me ajudar?
— Desde que nossa líder fundou nossa comunidade, procuramos por um Murphy em carne e osso. Quase conseguimos contato com Aslan, mas ele desapareceu repentinamente. Então, buscamos seu pai, Christian, mas quando ouvimos boatos sobre uma nova Murphy em Rubra, partimos em sua busca — explicou Kurt, com um sorriso orgulhoso. — E finalmente, conseguimos te encontrar!
— Eu acho que não sou quem vocês querem que eu seja...
— Você é exatamente quem que queremos que seja, Ella. Você não precisa se unir a nós, mas, por favor, conheça minha esposa. Ela é uma grande admiradora da família Murphy e de tudo o que vocês construíram ao longo da história!
Ella abaixou o revólver e o guardou no coldre.
— Eu não posso ir com vocês, não agora. Comecei uma missão e preciso terminá-la. Se realmente me admiram, me deixem ir.
— Não precisa ser agora, apenas... prometa que irá nos dar uma chance.
Olhando para o lado, Ella notou Cedric, apoiado em uma viga, segurando um rifle de design, semelhante a uma AUG, mas com detalhes mecânicos. Estava mirado fixamente contra a cabeça de Kurt.
Ella estendeu sua mão para Kurt e sorriu.
— Nos veremos em breve, Kurt. Diga a Logan que você capturou a invasora e a matou — ordenou Ella, retirando sua capa. — Entregue isso como prova.
— Pode deixar, não permitiremos com que eles cheguem até você.
Ella se retirou, mancando até encontrar Cedric. Com as mãos, fez um sinal para ele de retirada.
Fora do campo de visão dos demais, encontrou-se com Cedric.
— Sente-se, vou cuidar dessa sua perna.
— Foi só um tiro, já sobrevivi a coisas piores — respondeu Ella, encostando-se na parede de um prédio.
— Um pequeno sangramento pode te levar à morte — advertiu Cedric, higienizando o ferimento e enrolando uma bandagem em sua perna.
Ella observava Cedric com um olhar grato e carinhoso, reconhecendo o cuidado.
— Você não pretende se encontrar com eles novamente, certo? — indagou ele ao terminar de atar a bandagem.
— Pretendo, mas não agora. Preciso me encontrar com o Haldreth, aprender a entrar no Plano Espiritual e localizar meu pai.
— Não esqueça da missão que o Marc te deu, é crucial unirmos forças. Quando o Chaos finalmente decidir nos dizimar, a coisa vai ficar feia. Já presenciamos isso antes, na Noite da Caçada Sagrada...
— O que aconteceu? — perguntou Ella, curiosa.
— Imagine dez fendas gigantes surgindo e cercando Rubra inteira, todos os Emissários daquela época invadindo a cidade, criaturas colossais nunca antes vistas devorando cada humano no caminho e, o próprio Chaos em pessoa lutando contra nós.
— Caraca, isso deve ter sido um massacre.
— Foi... eu me lembro claramente, estava lá. Rubra foi evacuada às pressas e todos os Águias da Europa, incluindo a família Grimhart, foram convocados. Lutei ao lado dos meus pais e presenciei a morte de quase todos os Águias do continente. Mas esse não foi um dia só de perdas. A Caçadora de Águias foi abatida pelo Kousei e Chaos foi capturado pelo Aslan.
— Por que não mataram Chaos também? Capturá-lo foi o que o manteve vivo — disse Ella, caminhando apoiada em Cedric.
— O governo queria estudar a anatomia do Chaos, entender como uma entidade além dos humanos adquiriu a racionalidade, e também, a fonte de todo seu poder. Não era uma má ideia, o problema foi o contratempo que apareceu em seguida.
— Rithan, não é? Você viveu tudo isso, tem mais conhecimento do que eu. Sabendo do que ele é capaz, acha que meu pai ainda pode estar vivo?
— Sim, com certeza. Há pessoas que vivem no território infectado, é um pequeno grupo, mas provaram que não é impossível. Desenvolveram trajes com máscara de gás para sobreviverem na região. Os caçadores sempre carregavam uma para lidar com o gás tóxico do Vazio. Seu pai com certeza tinha uma.
— Sim, ele tinha, eu me lembro que levou uma máscara de gás quando partiu, é por isso que trouxe uma.
Eles caminharam até chegar ao cavalo que trouxe Cedric até Ella. De forma cavalheira, ele ajudou Ella a montar no animal.
Montado no cavalo, Cedric hesitou em dizer algo, mas decidiu falar mesmo assim.
— Sabe que seu pai não matou Rithan, não é? — disse Cedric, evitando olhar para Ella. — Não estou dizendo que ele está morto, mas algo aconteceu.
Ella, cabisbaixa, fixou o olhar numa solitária margarida crescendo no meio de uma calçada de concreto.
Apesar de todas as dificuldades, a natureza nunca desistiu de florescer nos piores cenários.
— Cala a boca... não me desanime — murmurou Ella, triste. — Minha única motivação para seguir viva é encontrar o meu pai. Eu preciso acreditar que ele está vivo.
— E quanto ao Tristan, Ethan, o Vendedor ou até mesmo a mim? Nessa sua curta jornada, encontrou pessoas que se importam com você. Mesmo que seu pai não esteja mais aqui, você não está mais sozinha.
— Você tem razão... eu ainda tenho o Ethan. Mas não descansarei até ter certeza sobre o meu pai. Agora, podemos voltar para a comunidade? Depois de tudo que aconteceu hoje, só quero um banho e uma cama.
Cedric deu um leve comando ao cavalo, que logo começou a trotar. Em minutos, voltariam para a comunidade.
Ella repousou a cabeça sobre as costas de Cedric, observando a paisagem ao seu redor. À sua esquerda, viu um lobo solitário correndo sem destino.
Expulso da sua alcateia? Partiu em busca de novos territórios? Ou apenas decidiu seguir seu próprio caminho?
Diversas reflexões rondavam a mente de Ella, mas seu olhar não desgrudava do lobo. Ela sentia uma estranha identificação com ele.
Um predador, guiado pelo instinto feroz de caça. Sentia-se deslocada, incapaz de se ver parte de qualquer comunidade, tampouco se sentia preenchida com a presença dos outros.
Apesar dos aliados ao redor, ainda se sentia solitária, vazia, e agora, a culpa corroía sua essência. Talvez devesse fazer como o lobo: seguir um caminho solitário. Assim pensou ela.
Já eram quatro da tarde quando chegaram à comunidade. Quando está preocupado em sobreviver, você nem percebe o tempo passar.
Ella evitou conversar muito com os demais e foi direto para a casa de Ethan, onde estava hospedada.
Despiu-se rapidamente e entrou sob o chuveiro, ligando-o completamente. A água fria caia em sua cabeça, lavando todo o sangue do seu corpo e relembrando todos os pecados que carregava.
Lágrimas começaram a escorrer do seu rosto ao passo que seu corpo tremia.
— Deus... — disse Ella, com a voz trêmula. — Por que tenho que passar por tudo isso?
— Porra! Que merdaaa! — gritou Ella, tomada pela ira e socando a parede do banheiro.
Seu soco atravessou a parede de concreto, fazendo os ossos de seu punho sangrarem.
Ella deslizou pela parede do banheiro, chorando incessantemente, mas em seguida, de maneira estranha, começou a rir. Um riso nervoso, que não trazia alegria, reflexo da sua mente perturbada pelos seus pecados. Mas ainda assim, era um riso.
Do lado de fora, Ethan ouvia tudo. Aquela cena era um retrato claro daquilo que ele mais acreditava: Rubra transformava até os mais sãos em lunáticos.