Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 29: O Inimigo Veio Até Você, Logan

Ella acompanhou Marc até o arsenal da comunidade, escondido sob a sede principal. Diversos tipos de armamentos, armaduras e vestimentas estavam dispostas ao longo das paredes do arsenal.

O que Ella precisava era de uma capa preta com capuz para ocultar seu rosto e uma lente do véu — um dispositivo desenvolvido pelos caçadores na época de ouro, frequentemente utilizado para enxergar as almas humanas.

Marc pegou uma das lentes que estavam encaixadas em um pegboard; o dispositivo assemelhava-se a um óculos de tiro olímpico, com duas lentes que pareciam lupas negras, e sua armação feita de metal.

— Então, quando eu colocar esses óculos, vou conseguir ver as almas de qualquer pessoa? — perguntou Ella, examinando o objeto minuciosamente.

— De qualquer ser com alma, inclusive as criaturas do Vazio que possuem alma — respondeu Marc, retirando a capa preta de um armário. — E não são óculos, são lentes do véu.

Ella colocou as lentes do véu e imediatamente se assustou. As cores ao seu redor se distorceram e os corpos tornaram-se silhuetas de cor azul-celeste.

— Então é assim que são as almas? — exclamou Ella, surpresa, enquanto olhava para as pessoas ao redor.

— Sim e não, é muito relativo. A alma do dispositivo do Haldreth provavelmente será uma esfera, não um corpo como você está vendo agora — esclareceu Cedric.

— Vista isso — disse Marc, colocando a capa preta sobre os ombros de Ella.

— Mas e a minha jaqueta? Ela tem fibras de Rubrannium, é bem mais resistente do que essa capa fina.

— Sua jaqueta é chamativa, tecido grosso, você não precisa ser resistente, precisa ser ágil e discreta. Tenha em mente que você não vai lutar. Além do mais, essa capa tem capuz e máscara, seu rosto vai ficar quase totalmente oculto.

Ella vestiu a capa, verificando se servia nela. Naturalmente, a peça ficou um tanto larga em seu corpo magro, não existiam muitas mulheres entre os caçadores.

Ajeitando a capa no seu corpo, ela ergueu o capuz e cobriu seu rosto com a máscara.

— Estou me sentindo como uma ninja, que foda! Só que ficou um pouco. Tem algum problema, Marc?

— Se não estiver te atrapalhando, sem problemas. Eu procurei no armário e só encontrei modelos masculinos, nenhum feminino, por isso que ficou folgada.

— Tá tranquilo, só eu puxar as mangas do braço que vai ficar bom pra usar — respondeu Ella, ajustando as mangas.

— Vou discutir com o Vendedor sobre o horário em que ele chegará na base deles. Amanhã, me encontre aqui às seis da manhã e eu te explicarei tudo.

— Beleza então, vou indo. Estou exausta. Hoje foi um dia bem longo — disse Ella, bocejando enquanto tirava a capa.

Marc a acompanhou até a entrada da sede. O sol já havia se posto no horizonte e a lua iluminava o céu magnificamente.

— Ella... você tem certeza que quer fazer isso? — perguntou Marc, hesitante.

— Claro que eu não quero — respondeu Ella, rindo levemente. — Mas eu não vou conseguir viver em paz se não descobrir o que aconteceu com meu pai.

— Vocês, Murphy, quando colocam algo na cabeça, não descansam até conseguirem — respondeu Marc, com um toque de nostalgia. — Seu pai era igual a você, violou inúmeras regras da CCV, essas que poderiam o condenar a pena de morte... tudo por vingança.

Ella lembrou do que Marcos havia dito, abaixando sua cabeça.

— É verdade que meu pai dizimou uma cidade inteira? Korsakov... é por isso que ele é chamado de Lobo de Korsakov?

Marc suspirou. Ella falou com tanta seriedade que sabia que não poderia mentir para ela.

— Sim, é verdade — afirmou Marc, com tensão na voz. — Seu pai encontrou a mãe dele morta, e, o que chamamos de “Maldição de Murphy” tomou conta dele. Tendo causado tantas mortes, Aslan foi amaldiçoado com a “Besta da Morte Obscura”. Sem pai, sem mãe, atormentado por milhares de almas e amaldiçoado. O peso que ele carregava é algo que nenhum de nós seríamos capazes de suportar. Ele tinha todos os motivos para trilhar o caminho do mal, mas mesmo assim, escolheu fazer o bem.

Lágrimas silenciosas escorriam dos olhos de Ella enquanto ela absorvia cada palavra que Marc dizia.

— Eu te contei mais do que você precisava saber, mas eu quero que saiba a verdade completa sobre seu pai. Ele não é o monstro que dizem ser, ele foi o maior herói que já tivemos.

Ella fechou os olhos e mais lágrimas deslizaram por seu rosto. Emocionada, caminhou até Marc e o abraçou com força.

— Amanhã... eu tenho fé de que tudo vai dar certo. Logo estaremos todos juntos — disse Ella, com a voz trêmula.

— Sei que briguei com você, e por momentos pensei que você enlouqueceu. Mas você me fez parar para refletir. O que eu estava fazendo? Mantendo um acordo com um escravizador, um sádico, um... traidor desgraçado — exclamou Marc, abraçando-a ainda mais forte, o ódio estampado em seus olhos. — Esse tempo todo, pensei estar protegendo as pessoas daqui, mas e os que estão lá? Amanhã, começaremos algo que não terá retorno.

Enquanto o anoitecer envolvia a cidade, Ella caminhou até sua casa, pelas ruas já escuras da comunidade. O vento frio e ruidoso acompanhava seus passos.

Logo ao amanhecer, todos da guilda dos caçadores se reuniram no porão da taverna, exceto por Ethan e Ella; Hans e Zoe estavam ocupados recarregando os pentes de seus rifles e vestindo trajes táticos pretos.

O casal, ambos de cabelos loiros e pele clara, contrastavam com suas vestimentas totalmente escuras.

O Vendedor Viajante dividia a carga que levaria com Johan. Entre seus itens, de fato ele possuía uma variedade de alucinógenos e remédios; onde ele havia os adquirido era uma curiosidade de todos.

— Vamos logo, Ella! A guilda já está nos esperando — gritou Ethan, batendo na porta de seu quarto.

— Estou indo! — respondeu Ella, enquanto colocava sua faca militar no interior de sua bota.

Ella dobrou sua jaqueta cuidadosamente e a repousou sobre a mesa, vestindo a capa negra e ajustando sua bainha e cinto na vestimenta. Antes de sair do seu quarto, ajoelhou-se ao pé da cama e fez uma breve oração.

Os irmãos chegaram no porão e encontraram todos já prontos para partir.

— Por que a demora? — questionou Cedric, impaciente.

— Eu estava me arrumando, tomando um banho, sabe? Coisas que pessoas normais fazem — respondeu Ella, sarcástica.

— As lentes, onde estão? — perguntou Marc, aproximando-se dela.

— Aqui — respondeu Ella, retirando-as do bolso.

— Coloque já. As lentes são retráteis, quando precisar, é só abaixá-las.

Enquanto isso, Ethan e Raiden conduziam três cavalos do estábulo; um para o Vendedor e Johan, outro para Hans e Zoe, e o último para Ella.

— Lembra como se anda de cavalo? O pai nos ensinou, mas já faz bastante tempo — disse Ethan, trazendo o cavalo até Ella.

— Acho que sim. Andei com o Tristan no cavalo dele. Mantendo o equilíbrio, eu consigo controlá-lo facilmente.

Ella subiu no cavalo e se ajeitou, segurando firmemente nas rédeas do animal.

— Estou pronta — gritou Ella, avisando os outros.

— Hans, Zoe, vocês vão à frente. Ella, siga logo atrás. Vendedor e Johan, sigam o caminho tradicional para a comunidade deles! — ordenou Marc.

O portão da muralha foi aberto e cada grupo partiu em direção ao seu destino. Ella, encapuzada, seguiu com o cavalo até parar em frente a Marc, que fez o gesto de continência dos caçadores, demonstrando respeito por Ella; a garota retribuiu o gesto.

Ainda era cedo, por volta das oito horas da manhã. O sol ainda não estava quente, o céu estava limpo, e uma brisa suave balançava os cabelos de Ella.

Ao longe, Hans e Zoe cavalgavam rumo ao horizonte. Eles eram um belo casal, sempre unidos, independente da situação. Era esse tipo de vínculo que Ella desejava para sua vida.

— Vamos virar à esquerda! — gritou Zoe, na traseira do cavalo, tentando superar o vento que abafava sua voz.

— O quê? — respondeu Ella, sem ouvir dreito.

— Vira à esquerda!

Ella puxou as rédeas do seu cavalo para direcioná-lo à esquerda, ao passo que Hans fazia o mesmo. Os animais começaram a cavalgar sobre o solo alagado e verdejante, com águas cristalinas e pássaros que voavam à medida que os equinos se aproximavam.

Um sorriso espontâneo surgiu no rosto de Ella; aquela era uma experiência única para ela. Depois de dezenas de minutos cavalgando, Hans parou em frente a um cinema completamente inundado.

Ele desceu do seu cavalo e procurou um lugar para amarrá-lo; Ella o seguiu, fazendo o mesmo.

— Consegue ver as muralhas no horizonte? — perguntou Zoe, forçando a visão. — Vamos ter que caminhar um pouco pelos esgotos.

— É... vai dar uma boa caminhada. Você trouxe uma lanterna? Acabei esquecendo a minha, só lembrei de pegar os armamentos.

— Hans, você trouxe a sua lanterna de ombro? A Ella está precisando.

Hans estava tão concentrado tentando abrir o bueiro usando sua espada como alavanca que não ouviu a pergunta. Com muito esforço e força, principalmente força, ele finalmente conseguiu levantar a pesada tampa. Apesar de magro, Hans tinha uma força enorme.

Toda a água ao redor deles começou a escorrer para dentro do esgoto, enquanto ele descia pelas escadas e sumia da vista das garotas.

— Vamos? — disse Zoe, descendo logo em seguida.

— Como está aí embaixo? — perguntou Ella, olhando para dentro do bueiro.

— Como um esgoto deve ser: fedido e molhado — murmurou Hans. — Entra logo, quero sair daqui o mais rápido possível.

Ella dobrou as mangas da capa e desceu, a água da cidade molhou suas costas.

— Hans, sua lanterna de ombro, você trouxe? A Ella precisa está precisando — perguntou Zoe, novamente.

— Calma aí — respondeu Hans, tirando a lanterna de ombro dos bolsos. — Aqui, pega.

No meio da escuridão, iluminados somente pela abertura do bueiro, Ella pegou a lanterna, colocou-a no ombro e a ligou.

— Me siga, Ella — exclamou Hans, assumindo a liderança.

Eles caminharam no esgoto por mais de dez minutos, sem pausas.

— Caramba... — murmurou Hans, parando de repente.

— O que foi? — perguntaram Ella e Zoe ao mesmo tempo.

— Mó cheiro de bosta aqui, catinga dá desgraça.

— É sério que você parou só pra falar isso? — julgou Zoe.

Ella não conseguiu segurar a risada, mas logo ficou séria ao ver dois pontos brancos brilhando no escuro.

— Hans, Zoe... o que é aquilo ali no canto? Aqueles dois pontos brancos.

— É um stalker — observou Hans. — Criaturas do Vazio que ficam à espreita, drenando a energia vital de suas presas.

— E o que a fazemos?

— Pisca a lanterna duas vezes na direção dele, isso o afugenta.

Ella seguiu as instruções e a criatura desapareceu na escuridão. As peculiaridades dos seres do Vazio sempre a fascinavam.

Eles continuaram caminhando em linha reta, enquanto a água suja já alcançava os seus joelhos.

— Estamos quase chegando. Como estão as coisas com vocês? — perguntou Hans pelo rádio.

— Estamos em frente a muralha, Hans. O Vendedor está negociando com os guardas para entrarmos. Quando eu estiver no ponto de encontro, dou um toque para vocês — respondeu Johan, segurando as rédeas do cavalo.

— É logo ali em frente, estão vendo as escadas? — apontou Hans. — Agora é só esperar o contato dele.

Os guardas estavam desconfiados da aparição repentina do Vendedor, principalmente dos seus produtos.

— Metanfetamina? Como você conseguiu isso? — perguntou um dos guardas, examinando o saquinho contendo a droga.

— Tenho meus contatos. Enfim, ofereci primeiro a vocês porque pensei que fossem querer. Mas tá de boa, tenho outras comunidades para vender — respondeu o Vendedor, pegando o saquinho de volta e virando as costas.

Os guardas se entreolharam e agiram subitamente.

— Espera!

Um sorriso surgiu no rosto do Vendedor, tudo ocorria conforme o planejado.

— Abram os portões e deixem eles entrarem! — ordenou o guarda.

O Vendedor fez um sinal para Johan e ele trouxe o cavalo para dentro da comunidade, seguindo sempre ao seu lado.

Diversos escravos encavaram o portão enquanto ele se fechava, almejando pelas suas liberdades. A comunidade de Goldwing não era vívida e alegre como a UCC, era um lugar sombrio, onde o ódio pairava no ar.

O guarda acompanhou os dois, enquanto eles passavam por diversos homens mal encarados.

— Vendedor, a nossa comunidade é cheia de civis, a deles é cheia de mercenários! — sussurrou Johan, preocupado. — Se nos descobrirem, não temos como revidar.

— Eles não vão nos descobrir. Fique tranquilo e faça o seu trabalho.

Logan Deckard veio até eles, parando-os no centro da cidade. Johan olhava para os lados incessantemente, inseguro.

— Vendedor! Que bom te ver aqui — cumprimentou Logan. — Meus homens me disseram que você trouxe uma carga das boas. E esse aí, quem é?

— Carregamento de primeira, consegui com um amigo químico. Esse aqui é o Kyle, meu novo ajudante.

— Kyle do quê? Um dos meus também se chama Kyle.

Johan olhou desesperado para o Vendedor. A presença de Logan era amedrontadora.

— Kyle Butler — respondeu o Vendedor, rápido, antes que Johan falasse alguma coisa.

— Kyle Butler, é? Um prazer te conhecer — disse Logan, estendendo sua mão para Johan.

Johan apertou sua mão, evitando o contato visual. Logan era um homem imponente, com a mesma estrutura corporal do Vendedor, mas diferente dele, ele não ocultava seu poder.

Logan era um homem branco e loiro, alto, forte como o Vendedor e com o mesmo estilo de barba rala. Um olhar cínico e um sorriso sociopata marcavam seu rosto.

Vestia uma camisa polo azul-claro, calça cargo bege e botas de couro, um estilo bem casual para um dos mercenários mais perigosos da atualidade.

— É... S-senhor Deckard, poderia dizer onde fica o banheiro? Comi um feijão enlatado na viagem que não me caiu bem — gaguejou Johan, nervoso.

— Pode usar aquele do bar — respondeu Logan, apontando para o local. Coincidentemente, era próximo da rua onde Johan precisava ir.

Caminhando pelas ruas nervoso, sempre atento ao seu redor, Johan sacou seu rádio e informou:

— Ella, eu estou perto da rua, já te dou um toque. Merda... tem um cara sentado na calçada.

— Atrai ele pra longe, então — sugeriu Hans pelo rádio.

Ao se aproximar do mercenário sentado, Johan agiu rápido: passou reto por trás dele, tentando não chamar atenção, mas enquanto caminhava, retirou um fio resistente do seu bolso.

Sem hesitar, Johan voltou até o mercenário e, rápido e silencioso, envolveu o fio ao redor do pescoço do mercenário, estrangulando-o por trás e puxando-o para dentro do beco.

O homem lutou desesperadamente para se libertar, mas Johan, com toda sua força, conseguiu sufocá-lo em segundos. Quando o corpo finalmente caiu inerte, Johan o arrastou até uma lixeira próxima.

— Cuidei dele, você pode vir agora — informou Johan, guardando o fio no bolso novamente.

Ao se aproximar da tampa do bueiro, ele viu uma lâmina envolta em chamas atravessando a abertura. Tirar uma tampa de bueiro com métodos convencionais estando dentro do esgoto seria praticamente impossível, Ella usou da sua vontade.

Totalmente envolta pela capa negra, Ella emergiu do esgoto como uma sombra letal, movendo-se como uma assassina furtiva.

— Volte para o Vendedor. A partir daqui é comigo — disse Ella, com um olhar frio e decidido.

A parte mais fácil do plano havia se concluído. Agora, começava a mais perigosa, e talvez, a mais sangrenta.



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