Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 27: Coração de Espinhos

Nos confins mais profanos e sombrios do Vazio, longe de qualquer traço de vida humana, duas criaturas trocavam palavras em meio à escuridão.

— Você acha que está na hora de trazê-los de volta? — sugeriu uma voz feminina.

— Não, não ainda... — respondeu o soberano do Vazio. — Devemos abrir os Dez Portões primeiro. Enquanto isso, deixaremos com que eles se enfraqueçam. Um conflito está prestes a surgir entre eles.

— Aquela garota... a Murphy, já é o terceiro Emissário que ela mata. Por que não a matou até agora?

— Vou usá-la como minha lâmina. O Vazio e a infecção astral são como água e óleo; somente um humano pode matar o Rithan. É apenas questão de tempo até ela enfrentá-lo.

— Não acha que é muito arriscado deixarmos ela viva? O poder dela cresce exponencialmente, assim como o do seu pai. Não se esqueça que foi um Murphy que te derrotou! — exclamou a mulher.

Chaos estava sentado em um trono feito inteiramente de crânios humanos, seu espaldar era coberto por espadas de caçadores. Indubitavelmente, havia mais de cem espadas, de todos os tipos, formatos e tamanhos.

— De fato, é muito perigoso. Em todas as gerações de Águias, sempre houve um Murphy para interferir nos nossos planos, mas não se preocupe. Quando chegar a uma situação crítica, eu a matarei. Por ora, ela só vive porque ainda não representa risco algum para mim — esclareceu Chaos, com ambas as mãos repousadas sobre o trono.

— Mas e os nossos? — perguntou a mulher, apoiada ao lado do seu trono.

— Você é a única com quem me preocupo, Merascilla. Se os demais morrerem, apenas provarão que não são dignos de serem Emissários — respondeu Chaos, friamente.

— Devo me preocupar com a Murphy?

— Ainda não. Concentre-se nos outros caçadores. Sozinha, ela não oferece um perigo extremo para a gente — proclamou Chaos, levantando-se. — Perdemos muito dos nossos, mas tudo segue conforme o planejado.

Um sorriso orgulhoso surgiu no rosto de Chaos e uma fenda do Vazio se abriu diante dele.

No dia seguinte, após Ella ter treinado com Cedric, todos da guilda dos caçadores se reuniram no porão, exceto o capitão.

— Aí, cadê o Cedric? — reclamou uma membra.

— Provavelmente com o Marc — respondeu Raiden, deitado no chão.

No canto da sala, Ethan e Ella conversavam casualmente.

— Você teve que passar por essa provação também? — perguntou Ella.

— Ah, não, a minha foi bem mais intensa. Tive que pegar uma das relíquias do Vazio, e o que eu passei lá dentro, você nem imagina. Cedric te deu um desconto por ter acabado de voltar de uma batalha; ele costuma reservar as piores missões para os mais fortes.

— Agora que tocou nesse assunto, sobre o que aconteceu na batalha contra o Kasaroth...

— Eu sei. Eu e o Raiden não contaremos nada, mas não use esse tipo de encantamento novamente. Já vi outros aqui da comunidade serem exilados por isso — alertou Ethan, sério.

— Você sabe que eu não tive outra opção... meus encantamentos normais não seriam suficientes para matá-lo.

— Não estou falando que você esteja errada, é só que esses tipos de encantamentos não foram banidos da sociedade à toa.

— Mas e aí, como foi ver a caveira de chamas no meu punho? — perguntou Ella, sorrindo. — Aposto que foi foda, né? Sempre achei fascinante aquele desenho no livro da mamãe.

— Foi incrível... — admitiu Ethan, meio contrariado.

Cedric desceu ao porão, acompanhado por Marc e o Vendedor Viajante.

— Voltei, seus merdas — exclamou Cedric, zoando. — Tem alguém que quer te assistir, Ella.

O Vendedor caminhou até Ella e ambos se abraçaram.

— Boa sorte, estou torcendo por você — disse ele, sorrindo.

Ella retribuiu o sorriso.

Cedric colocou um enorme e pesado livro sobre a mesa redonda. Era como um grimório grande, com a capa feita de couro envelhecido e manchado, marcado por marcas profundas de garras.

O título da enciclopédia, “Bestiário do Vazio: Arquivos da Família Grimhart”, estava gravado em prata envelhecida, brilhando fracamente à luz. Símbolos adornavam a capa e a lombada do livro, semelhantes aos que estavam na couraça de Cedric.

— Abra-o na página duzentos e trinta e sete — ordenou Cedric.

Ella pegou na enciclopédia e a textura da capa era áspera e rugosa, suas páginas feitas de velino eram grossas e duras, com uma sensação cerosa.

O que mais a surpreendeu foram as descrições e ilustrações gravadas com uma espécie de tinta viva, mudando ligeiramente a cor e forma, reagindo à presença do Vazio na proximidade.

— Que tinta é essa? — perguntou Ella, estupefata.

— Não interessa. Vá até a página duzentos e trinta e sete.

Ella engoliu em seco e folheou até chegar na página indicada. Nela, encontrou a ilustração de uma presa roxa, acompanhada de uma descrição detalhada sobre todos seus pontos fortes e fraquezas.

Todos os membros da guilda se aglomeravam atrás de Ella, ansiosos para espiar o conteúdo da enciclopédia.

— Caraca, e não é que a tinta se mexe mesmo! — exclamou Raiden, surpreso e de um jeito engraçado.

— Saiam daqui seus curiosos! Se eu quisesse que vocês vissem, teria mostrado para cada um de vocês — gritou Cedric, impaciente.

De acordo com a enciclopédia, as fraquezas das presas roxas estavam na cauda e na caixa torácica, que era exposta e coberta por espinhos afiados. Suas caudas são as responsáveis por conseguirem detectar qualquer presença a mais de cem metros de distância.

Em contrapartida, seus pontos fortes eram as suas enormes presas, capazes de dilacerarem até mesmo aço, e a visão aguçada, como a de uma águia.

Curiosa como sempre, Ella não resistiu e folheou para a próxima página. Foi então que se deparou com um nome familiar: Doutor Yersin.

A ilustração mostrava um homem alto, com uma cabeça de corvo, aparentemente composta de matéria do Vazio. Vestia um casaco gótico escuro, com detalhes em rubro.

Antes que Ella pudesse terminar de ver o restante, Cedric rapidamente arrancou a enciclopédia de sua mão.

— Isso não é do seu interesse, garota — disse ele, rispidamente, levantando o livro para longe do seu alcance.

O Vendedor Viajante, também tomado pela curiosidade, rapidamente puxou o livro das mãos de Cedric.

Ao ler a página, sua expressão mudou para puro espanto.

— Nenhuma... fraqueza?

— Qual é o seu problema? — Cedric bruscamente tomou a enciclopédia de sua mão.

— O Doutor Yersin... vocês não o estudaram direito, né? A página é composta somente de pontos fortes. Onde estão as fraquezas? — questionou o Vendedor, atônito.

— Isso não importa agora. Está é a provação da Ella. Pare de criar distúrbios, Vendedor! — retrucou Cedric, de forma grossa.

Cedric guardou seu livro em um lugar oculto e foi até o portal de terras distantes. Configurando uma localização, o portal se acendeu, revelando seu brilho etéreo.

— Primeiro as damas — zombou Cedric, fazendo um gesto exagerado de cavalheirismo.

Atravessando o portal, Ella se viu em uma parte devastada da cidade. Diante dela, um bosque totalmente consumido pelo Vazio. Atrás dela, os outros membros da guilda emergiam do portal.

As árvores do bosque eram gigantescas e retorcidas, totalmente desconexas do ambiente ao seu redor. Seus galhos formavam uma cúpula densa quase impenetrável, enquanto suas folhas escuras bloqueavam grande parte da luz.

Ella estava atônita; nunca imaginara que algo assim pudesse existir no mundo real.

— Vocês irão vir comigo? — perguntou Ella, receosa.

— Sim, mas não interferiremos em nada, apenas te assistiremos. Só irei intervir se você estiver à beira da morte. Acho que é óbvio dizer que, nesse caso, você seria recusada na guilda.

— Tá legal...

Apesar do medo que se estampava em seu rosto, Ella continuou. A guilda caminhou com ela até a entrada do bosque, onde pararam.

— Aqui nos separamos — sussurrou Cedric. — Tenha em mente que qualquer barulho ou qualquer momento que você deixar de ocultar sua presença, você será detectada e caçada. Boa sorte.

— Se vocês me deixarem pra morrer aqui, juro que volto pra puxar o pé de cada um de vocês — brincou Ella, sussurrando.

Separando-se do grupo, Ella adentrou no bosque. Cada passo era tomado com extrema cautela, sempre olhando para todos os cantos do bosque.

Sons bizarros e inquietantes de criaturas ecoavam por todo o ambiente, alguns lembravam o canto melancólico de um urutau. Além disso, uma névoa pálida e densa flutuava sobre o chão do bosque, rastejando entre as árvores como um manto fantasmagórico.

Conforme se aprofundava no bosque, mais estranha se tornava a vegetação. Plantas com cores surreais e formatos que desafiavam a realidade brotavam de todos os lados. Algumas ervas altas sussurravam ao vento, como se estivessem tentando se comunicar com Ella.

As árvores colossais que obscureciam seu campo de visão e os sons assustadores cada vez mais intensificados criavam um ambiente tenebroso.

Diante dela, repentinamente, duas presas azuis surgiram, brigando ferozmente por um cadáver humano; Ella rapidamente escalou uma árvore para se esconder.

Sobre um galho robusto da árvore, Ella observou uma das presas azuis matar a outra brutalmente. Enquanto sua atenção estava tomada pela besta devorando o cadáver humano, Ella foi subitamente atacada por uma criatura alada que surgiu da escuridão, suas garras afiadas cravando-se em sua direção.

A besta voadora, semelhante a uma harpia monstruosa gigante, ergueu voo, levando Ella nos confins mais altos do bosque.

— Uma Vhárgyra, fazia tempo que não via uma... — comentou Cedric, observando do alto de um galho, acompanhado pelos outros membros da guilda.

— Devemos interferir? — perguntou Raiden, calmo.

— Ainda não. A Vhárgyra costuma levar suas presas para o limite do bosque, onde está seu ninho. Lá, ela as esmaga brutalmente. Ella ainda tem tempo para reagir.

A Vhárgyra havia capturado Ella pelo busto, deixando somente seu braço direito livre, era o suficiente para que ela pudesse se libertar.

Explosive Flammae — gritou Ella, mirando o braço direito no pescoço da besta alada.

Uma explosão de chamas solares incinerou totalmente a cabeça da criatura, fazendo com que soltasse Ella no ar, enquanto seu corpo sem vida despencava.

Ella tinha apenas alguns segundos para reagir, caso contrário, sua queda seria fatal.

Com as duas mãos, ela cravou sua faca no tronco de uma árvore e firmou os pés contra a madeira, reduzindo sua velocidade de descida forma drástica.

Pendurada pela faca, Ella olhou ao redor, buscando um caminho. Seus pensamentos dispararam: “Ele não disse nada sobre criaturas voadoras, que merda, eu deveria ter imaginado. Pra que lado é o centro do bosque agora?”

Ella optou por descer da árvore e continuar caminhando em linha reta, sempre se escondendo nas exuberantes vegetações do bosque. Sua rota foi alterada quando avistou uma curiosa flor.

Era um maciço de flores semelhantes a girassóis. Suas pétalas eram brancas e seu disco central era roxo escuro. Todas as flores apontavam para o mesmo local, o Oeste, mesmo que o sol estivesse no Leste. As leis da física não pareciam funcionar no bosque.

Seguindo a direção das flores, Ella avistou uma clareira, onde várias presas azuis se reuniam. No seu centro, conforme prometido, estava o coração de espinhos, repousando sobre um altar natural feito de espinhos entrelaçados.

Aproximando-se cautelosamente, Ella notou algo de diferente nas criaturas: elas pareciam estranhamente amansadas. A garota foi mais a fundo e escalou uma árvore para ter uma visão mais ampla

No centro da clareira, um homem de estatura imponente acariciava uma das presas azuis. Ele vestia um capacete que cobria completamente sua face, dando-lhe uma aparência inumana e mecânica. Seu capacete era de cor roxo escuro, com um visor longo e brilhante, aparentemente, feito inteiramente de Rubrannium.

O visor era estreito e horizontal, contribuindo para uma imagem fria, desprovida de quaisquer emoções.

Ele vestia um longo casaco preto pesado, cobrindo a maior parte do seu corpo, emanando um ar de formalidade, quase militar. Suas costas eram adornadas por uma capa de penas negras.

Suas mãos estavam cobertas por luvas negras e grossas, o mesmo para suas botas, grandes e robustas, refletindo a necessidade de resistir aos desafios físicos do Vazio.

Um cinto utilitário, com várias ferramentas e dispositivos que Ella desconhecia adornava sua cintura, além de tubos e dispositivos conectados diretamente ao seu corpo, como a cápsula em suas costas.

O emblema da águia branca, que prendia sua capa, chamou a atenção de Ella. Era o mesmo que ela carregava em sua jaqueta. Acreditando que era um Águia, ela decidiu se aproximar.

— Como conseguiu fazer isso? Elas estão... te obedecendo?! — indagou Ella, cautelosamente, enquanto se aproximava.

O homem pareceu surpreso com a súbita aparição de Ella, mas logo recuperou sua postura.

— Um nanodispositivo de controle neural, fascinante, não é? Até mesmo a mais selvagem das bestas pode se tornar dócil — disse ele, com uma voz grave, quase robótica.

— Qual é o seu nome? Seu brasão... é igual ao meu. Você é um Águia, certo? — perguntou Ella, um tanto inocente, mas curiosa.

— Ah, sim, no passado eu costumava ser. Sabe, há duzentos anos atrás, nos primórdios da CCV, os tão saudosos tempos de ouro — respondeu ele, com uma risada nostálgica. — E o meu nome? Qual deles? Já tive muitos.

— Duzentos anos atrás? Como?... — A perplexidade no olhar de Ella parecia diverti-lo. — É... eu não sei, qual é o seu nome... agora?

— Dos cinco nomes que já tive, este é o meu favorito. Adotei ele no ano de três mil e oito, no ano da ruptura da sociedade. Afinal, o início de um novo mundo exige um novo eu, não concorda? — disse ele, encantado pela própria história. — Meu nome, o meu atual nome, é Haldreth!

Ella, ao mesmo tempo perplexa e fascinada, não conseguia desviar os olhos de Haldreth. Ele era tão enigmático, atiçando sua curiosidade inigualável.

Enquanto isso, os demais da guilda, observando a distância, estavam desconfiados, prontos para agir.

Seria Haldreth um Águia perdido no tempo, ou apenas mais um dos inúmeros inimigos que habitavam Rubra?



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