Volume 1 – Arco 2
Capítulo 24: Nem Vivo, Nem Morto
O anoitecer chegou mais rápido do que esperavam. O jantar especial que Shan prometera estava servido na mesa.
Dois peixes enormes, cozidos no vapor e acompanhados de uma variedade verduras.
Os quatros se sentaram ao redor da mesa, como uma verdadeira família, e se deleitaram com esse banquete.
O Vendedor se encarregou de limpar toda a bagunça, enquanto Tristan e Ella foram para a sala de estar.
— Mal vejo a hora de voltar para a comunidade. Quero ver como meu irmão está — disse Ella, sentando no sofá.
— Ele está bem, assim como o Raiden. Dei uma passada no hospital antes de vir atrás de você. — respondeu Tristan, sentando-se ao lado dela e puxando um lençol para se cobrir. — Amanhã já voltaremos para a UCC, beleza?
— Tá com pressa? — perguntou Ella, rindo.
— Mais ou menos. Depois de amanhã partiremos em outra expedição no mar, então não queria chegar atrasado.
— O que vocês fazem tanto em alto mar?
— Além da pesca, estamos constantemente mapeando toda a costa de Rubra, até encontrarmos a Terra Prometida.
— Ela realmente existe? Meus pais sempre me contavam histórias sobre ela.
— É claro que existe! Nós encontramos o manuscrito de Scott Miller... quer dizer, o capitão Sebastian encontrou. É nele que estamos baseando toda a nossa jornada.
— Manuscrito do Scott Miller? Mas afinal, quem é Scott Miller? Eu já ouvi dizer que ele era o melhor amigo do meu pai, mas não me lembro de ter o conhecido.
— O Scott foi um Águia do mesmo esquadrão do seu pai. Ele foi enviado em uma missão de reconhecimento a uma ilha misteriosa, ao lado de alguns Falcões e pesquisadores. Ele escreveu um livro por conta própria, relatando absolutamente tudo sobre a ilha. É o que sabemos dele, além do que o Marc nos contou, mas o paradeiro dele é desconhecido... ele simplesmente sumiu do mapa.
— E como é a Terra Prometida, segundo o livro dele? — indagou Ella, genuinamente curiosa.
— É um lugar místico, belo e deslumbrante. Um refúgio pacífico, longe dos sofrimentos causados pelos humanos. Uma terra sem guerras, sem escravidão, sem morte... suas árvores possuem folhas douradas, suas lagoas transformam prata em ouro, e seus animais, em sua maioria albinos, vagam pacificamente pela ilha. Consegue imaginar um lugar desses na vida real? É incrível...
— Um lugar sem guerras... com humanos habitando nele, seria possível? — ponderou Ella.
— Queremos um mundo onde podemos responder essa pergunta. Se esse lugar existe, nós o encontraremos; se não, o criaremos. A vida é mais que só morte e sofrimento, ela deve ser repleta de paz e amor também!
— A humanidade não tem salvação, Tristan. Você já deveria estar ciente disso — respondeu Ella, enrolando uma mecha de cabelo no dedo. — Os humanos são maus por natureza. Até mesmo eu ou você, podemos cometer as mais diversas atrocidades.
— O homem nasce mau, ou se torna? Por essa lógica, você também é má, não é?
— Eu não acho que alguém como eu possa ser considerada boa. Jesus nos ensinou a amar até mesmo os nossos inimigos, mas como fazer isso se eles estão constantemente tentando nos matar? — disse Ella, colocando sua cabeça sobre seus joelhos e abraçando-os. — Não tem como ser bom em um mundo onde todos são maus.
— Então me ajude a mudar essa realidade. — Tristan sorriu.
— Como se fosse simples assim — suspirou Ella.
— Ah, lembrei agora que tenho que visitar um cara, quer vir comigo?
— Visitar quem?
— Ah, ninguém em especial, é só um químico que gosta de se intitular como um alquimista — disse Tristan, rindo. — Ele também produz vinho, a tripulação quer que eu pegue algumas garrafas com ele.
— Que vida boa em. Longe dos perigos de Rubra e ainda bebendo vinho — brincou Ella. — Mas vou sim, já me sinto bem melhor.
— Ótimo, quem sabe não consigo uma garrafa de vinho pra gente.
Após conversarem mais um pouco, ambos foram dormir, o dia seguinte prometia ser longo.
Na manhã seguinte, Ella levantou cedo e foi fazer uma caminhada na floresta, aproveitando para recolher um pouco de água fresca para Shan.
Depois de caminhar por dez minutos, chegou ao riacho e começou a encher os dois baldes, com um pouco de dificuldade, devido aos seus ferimentos.
Do outro lado do riacho, ela avistou um filhote de cervo, acompanhado por sua mãe, bebendo água tranquilamente.
Repentinamente, um barulho fez com que os dois cervos e todos os pássaros na proximidade fugissem em disparada. Ella, sobressaltada, virou-se rapidamente.
— Foi difícil encontrar você, mas não impossível — disse Marcos, o caçador que estavam procurando.
— Você... Marcos, certo? Eu sou a...
— Não me importo com quem você é — interrompeu Marcos, impaciente. — O que vocês querem comigo?
— Marc está reunindo todos os Águias e nos mandou atrás de você. Eu, meu irmão e Raiden. Ele é do seu esquadrão, não se lembra?!
Marcou fitou Ella com um olhar de desdém.
— Marc já tem o merda do Aslan, ele não precisa de mim. Toma. — Marcos jogou a espada de Ella a seus pés. — Um caçador sem sua arma é apenas um animal indefeso.
— O que você falou do meu pai? — retrucou Ella, com a raiva evidente em sua face.
— Seu pai? Você é filha do Aslan, é? — indagou Marcos, surpreso. — Agora que você falou, você é a cara da Giulia mesmo. Não me leve a mal, sua mãe é uma ótima pessoa, mas não volto para um ambiente onde o canalha do seu pai está.
— Incinerare! — gritou Ella, lançando uma rajada de chamas contra Marcos.
Marcos abriu seu guarda-chuva, usando-o como escudo, dispersando as chamas solares de Ella para longe, incendiando algumas árvores que estavam ao redor.
— Ficou maluca, porra?! — gritou Marcos, fechando seu guarda-chuva em milissegundos.
— Nunca mais insulte o meu pai! Você não sabe nada dele e nem pelo que ele passou! — berrou Ella, visivelmente abalada.
— Não seja tola. O quê? Você acha que seu pai é o caçador bonzinho que nunca fez mal a ninguém? Ele e aquele psicopata do Scott Miller são os maiores assassinos da CCV!
— Meu pai pode ter cometido muitos erros, mas foi ele quem derrotou Chaos e garantiu uma época de paz para a humanidade! E você, o que você fez? — esbravejou Ella.
— Garota tola... eu conheço seu pai há mais tempo do que você tem de vida. Você não sabe nem um terço de tudo que ele já fez. O seu papai matou minha mãe e minhas irmãs, três mulheres inocentes que não fizeram nada! — protestou Marcos, gesticulando intensamente.
Ella estava pronta para responder, mas as palavras de Marcos a pegaram desprevenida. Ela permaneceu em silêncio por alguns instantes.
— Sabe porque seu pai é chamado de Lobo de Korsakov? — perguntou Marcos, com amargura.
— Minha mãe disse que é porque ele foi o único sobrevivente da explosão que destruiu Korsakov... — respondeu Ella, olhando para baixo.
— Ele foi o único sobrevivente porque ele causou essa explosão! — vociferou Marcos, apontando o dedo acusadoramente para Ella. — Eu roubei do Marc os arquivos secretos sobre o extermínio de Korsakov. Aslan, em um surto de ira causado por uma tal “Maldição de Murphy”, liberou uma dissipação de energia tão devastadora quanto a bomba que destruiu Hiroshima e Nagazaki. Seu pai tirou a vida de mais de duzentos mil inocentes!
Ella ficou em choque ao ouvir a última frase de Marcos. Seu pai, seu maior herói, como ele poderia ter tirado todas essas vidas?
— Sinto muito pela sua família... mas sei que meu pai não quis tirar todas essas vidas — disse Ella, com a voz trêmula.
— Não importa, elas estão mortas. Sentir muito não vai trazê-las de volta. Agora você entende do porque eu não voltarei mais para à UCC.
— Meu pai está desaparecido, estou procurando por ele. Se esse é seu único impedimento, você pode retornar. Se ainda não quiser, tenha em mente de que pessoas inocentes morrerão, e você poderia ter ajudado a evitar — exclamou Ella, retirando sua espada do chão.
— Qual é o seu nome? — perguntou Marcos, agora mais calmo do que antes.
— Ella.
— Ella, Ella Murphy, diga ao Marc que vou pensar na proposta dele — disse Marcos, virando-se e se retirando.
— Ei! — gritou Ella. — Obrigado por me salvar. Se não fosse você, eu não teria matado Kasaroth.
— Apenas dei uma mãozinha, você fez todo o trabalho pesado — respondeu Marcos, olhando pra trás e sorrindo.
Marcos usou seu guarda-chuva para se impulsionar, desaparecendo da vista de Ella, assim como da última vez.
Ella segurou sua rapieira com ambas mãos e sorriu, aliviada.
— Você voltou para mim... — sussurrou Ella, beijando a lâmina e sorrindo.
Com a espada na mão esquerda e os baldes de água na direita, Ella começou a retornar para a casa de Shan.
Ao chegar, encontrou todos eles na sala, apreensivos e visivelmente preocupados com seu desaparecimento.
— Ella! Onde você estava? — perguntou Tristan, exaltado.
Shan e o Vendedor se levantaram imediatamente do sofá.
— Eu só fui pegar água, se acalmem — respondeu Ella.
— Não saia assim sem avisar! — gritou o Vendedor, preocupado.
— Foi mal, só fui pegar água fresca pra gente, aqui — respondeu Ella, levantando os baldes.
— Valeu... — Shan pegou os baldes da mão de Ella. — Espada nova?
— Ah, sim... é uma longa história. — Ella sorriu, omitindo seu encontro com Marcos.
— Vamos indo. Quanto mais cedo chegarmos no Bradley, melhor.
Ella e Tristan foram até a varanda para se despedir dos dois.
— Muito obrigado por tudo, mestre Shan — disse Tristan, apertando a mão do Shan e do Vendedor.
— Da próxima vez, venha com seu pai — respondeu Shan.
— O-obrigado também, Shan. Sem o senhor, não teria sobrevivido — disse Ella, apertando sua mão com ambas as mãos.
— Não fiz nada demais — respondeu ele, em tom ríspido.
— Nos vemos na UCC, então — disse o Vendedor, passando a mão na cabeça de Ella.
Ella montou no cavalo e segurou-se firme em Tristan. Juntos, partiram em direção à casa de Bradley, que estava no caminho para a comunidade.
Cavalgaram por horas, o sol estava perto de se pôr, o clima começava a esfriar e a lua surgia no horizonte. Os grandes prédios ao redor, cobertos por uma densa vegetação, obscureciam a visão, tornando o ambiente ainda mais sombrio.
Inesperadamente, furando o silêncio e o vento, um tiro de rifle de precisão atingiu a cabeça de Tristan. Seu cavalo tombou e Ella caiu de costas chão.
— Tristan! — gritou Ella, horrorizada ao ver seu corpo morto.
Vozes começaram a ecoar ao redor deles, e passos velozes se aproximavam. Pé de Pano rapidamente fugiu do local, enquanto Ella correu para se esconder debaixo de um carro.
— O Joe acertou em cheio... maldito, ele tem uma mira única — disse um homem, rindo.
— Não tinha uma garota com ele? O Logan pediu a cabeça dos dois.
— Tinha sim. Vi ela correndo na direção dos carros abandonados — confirmou uma voz no rádio deles.
— Vamos procurar por ela.
Eles foram interrompidos pelo inesperado: Tristan, antes morto, se levantou. O buraco da bala em sua cabeça havia desaparecido.
Desembainhando sua katana, Tristan entrou em posição de combate. Suas íris adquiriram um tom de vermelho carmesim.
Um grito de ódio escapou de Tristan, assustando até mesmo Ella. Tiros foram dispararados para todos os lados.
Debaixo do carro, tudo que Ella pôde ver foi corpo por corpo caindo no chão, alguns decapitados, outros com buracos no peito, mas todos mortos brutalmente.
Nem mesmo aqueles armados com espadas foram páreos para Tristan. No entanto, dois deles conseguiram o pegar de surpresa.
Um deles decepou seu braço, mas Tristan rapidamente o matou, enfincando sua katana em sua garganta. O outro, estava prestes a decapitá-lo.
Bang!
Um preciso tiro explodiu a cabeça do inimigo. Ella, no último instante, conseguiu salvar Tristan.
Quando ele a viu, seus olhos, antes vermelhos, voltaram à cor normal.
— Mas que porra... você é imortal? — exclamou Ella, espantada.
— Eu posso explicar — respondeu Tristan, levantando-se.
Do braço decapitado de Tristan, uma fumaça começou a surgir, e em questão de segundos, o osso se regenerou, seguido pelos músculos, vasos sanguíneos, nervos, tendões, e por fim, a pele.
O espanto estava estampado na feição de Ella; ela nunca havia visto nada igual.
— Como é possível?!
— Ella, isso pode esperar! — gritou Tristan. — O Pé de Pano, eu preciso achar ele! Pra onde ele foi?
— Ele foi para lá. — Ella apontou para o noroeste.
Antes de seguir a direção indicada, Tristan verificou o pescoço de um dos cadáveres. Havia a tatuagem de uma suástica nazista dourada com quatro estrelas brancas de cinco pontas entre os braços da suástica.
— Puracionistas... — murmurou Tristan, sério.
— O que essa tatuagem significa?
— São seguidores da ideologia de Peter Murphy. Basicamente, acreditam que pessoas como nós, que possuem Vontade, são superiores aos humanos comuns, então os caçam e os matam. Esses malditos já exterminaram bilhões de humanos.
— Eu conheço a ideologia do Peter, só não sabia que ainda existiam seguidores hoje em dia.
— Bom, isso não importa. Eles estão nos caçando, mas pelo visto, quem encomendou nossa morte, não contou quem você era. Se soubessem que você é descendente legítima do ídolo deles, lamberiam até seus pés.
— Talvez possamos tirar proveito disso.
Os dois partiram em busca do Pé de Pano, enquanto a curiosidade corroía Ella: como Tristan pôde sobreviver a um tiro na cabeça?
Mesmo com esses contratempos, estavam perto da cabana de Bradley.