Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 23: Recuperar, Reerguer e Revitalizar

Depois de algumas horas, Tristan retornou com uma lebre abatida e algumas ervas.

Procurando pela cozinha do chalé, ele encontrou uma panela e uma colher de pau. Era o suficiente para preparar sua sopa.

Colocando a lebre sobre a pia, ele usou a faca de Ella, que havia lavado anteriormente no riacho. Não queria utilizar algo encharcado de sangue em sua refeição.

Ele esfolou a lebre, separou a carne dos órgãos e a lavou cuidadosamente no riacho. Trouxe também, uma panela cheia de água fresca.

Picando a carne em pequenos cubos e cortando as ervas, colocou tudo dentro da panela e pôs para ferver sobre a lareira. Um cheiro delicioso começou a subir.

Após alguns minutos, a sopa estava pronta para ser consumida. Tristan pegou a panela pelo cabo e foi até Ella, acordando-a suavemente.

— Ella, preparei uma sopa para a gente comer. Levanta, você precisa recuperar suas energias — disse Tristan, ajudando-a a se levantar.

Ella, sentada na mesa, abriu os olhos lentamente. Tristan colocou a mão em seu pescoço, medindo sua temperatura.

— Seu corpo está ficando quente de novo, isso é bom.

— O que... é isso? — perguntou Ella, com a voz fraca.

— Sopa de lebre com algumas ervas. Fica tranquila, está tudo bem higienizado. — Tristan riu.

Tristan pegou uma pequena quantidade da sopa com a colher, assoprou para esfriar e levou até a boca de Ella.

— Aí, você não se importa se eu comer com a mesma colher, né? Só consegui achar essa.

Ella negou com a cabeça. Tristan provou a sopa e estava incrivelmente saborosa. Qualquer prato, depois de um dia inteiro sem comer, se tornava um banquete.

— Está... ótima. — Ella sorriu.

Tristan deu outra colherada de sopa para Ella e assim eles continuaram até comerem tudo.

— Minha roupa... onde está? — perguntou Ella

— A sua regata tá toda rasgada, nem dá pra usar mais. Mas a sua calça e calcinha estão secando na lareira. É... me desculpe por te deixar pelada, mas não toquei nem vi nada. Quer dizer, eu vi, mas foi pro seu bem, você entende, não é? — respondeu Tristan, constrangido.

— Relaxa... já passei... por uma situação parecida — disse Ella, relembrando de Ynaselle.

Tristan ajudou Ella a se deitar novamente e aproveitou para descansar um pouco. Ele havia passado o dia inteiro acordado, também precisava descansar.

No dia seguinte, Tristan acordou antes de Ella e foi verificá-la.

Seu corpo estava mais quente do que antes e a bandagem com a pasta de ervas medicinais conseguiu ajudar um pouco nos ferimentos.

Tristan foi até o riacho recolher mais água e levou seu cavalo para se hidratar. Felizmente, a chuva havia cessado e um dia ensolarado surgiu.

— Beba bastante água, Pé de Pano, você precisa — disse Tristan, enquanto acariciava as crinas brancas do seu cavalo. O cavalo rinchou para ele.

Ao retornar para o chalé, Tristan se deparou com Ella, de calcinha, vestindo sua calça.

— Ella, você não deveria estar de pé! — exclamou Tristan, correndo até ela.

— Minha regata... já era mesmo? Não quero ficar com os peitos de fora — disse Ella, andando com dificuldade.

— É-é, toma... — Tristan, corado, colocou seu casaco nela.

Ella se virou e viu que Tristan estava só de cueca.

— Mas e você? Eu não sinto frio, mas você sente... só está de cueca.

— Estou de boa, tá sol lá fora. Mas a questão não é essa, você não está bem o suficiente pra ficar de pé!

— Está doendo pra caramba, mas eu consigo suportar... vamos, me leve até aquele homem.

— Você tem certeza? — indagou Tristan, preocupado.

— Sim... estou com um pouco mais de energia agora, mas se eu continuar nesse chalé... vou acabar definhando — respondeu Ella, ainda com um pouco de dificuldade para falar.

Tristan pegou a mochila da mesa e os dois saíram do chalé. O forte sol cegou Ella brevemente; ela não o via há tempos.

— Que cavalo lindo...

— É o Pé de Pano, esse cavalo é foda. — Tristan riu enquanto puxava a guia dele.

Ella subiu no cavalo com muita dificuldade, sendo ajudada por Tristan. Juntos, partiram rumo ao chalé do homem que ele havia mencionado. No entanto, antes disso, Tristan vendou os olhos de Ella com uma venda que carregava em sua mochila.

— Pra que essa venda?

— O mestre Shan me ordenou a não revelar a cabana a ninguém, foi mal.

— Mas nós somos aliados... não é como se eu fosse revelar onde ela está.

— Só aceita, Ella. Mais tarde eu explico o porquê.

— Tá legal...

Pela primeira vez em sua vida, uma garota estava agarrada no Tristan. Um sorriso estampava seu rosto, felizmente, Ella não conseguia vê-lo.

Depois de trinta minutos cavalgando, eles finalmente chegaram ao chalé. Feito inteiramente de madeira, com uma arquitetura chinesa, aparentava ser extremamente aconchegante.

Tristan ajudou Ella a descer do cavalo e amarrou a guia na cerca do chalé.

Os dois entraram no chalé, que parecia estar vazio, com as luzes apagadas. Mesmo com as cortinas fechadas, um pouco de luz iluminava o interior.

Conforme caminhavam pela casa, a madeira rangia sob seus pés. Chegaram numa aparente sala de estar e se depararam com um homem grande sentado num sofá, dormindo.

Um simples passo deles foi o suficiente para acordá-lo. Era ninguém menos que o Vendedor Viajante.

— Ah, oi... — disse o Vendedor Viajante, com sua voz grossa, despertando.

Ele se levantou lentamente, sua altura e musculatura o deixavam imponente.

— Vendedor! — Ella sorriu. — O que você está fazendo aqui?

Ao notar o estado de Ella, rapidamente foi até ela.

— Ella! O que aconteceu com você?

Sem que percebessem, um homem idoso apareceu atrás deles.

— Quem é essa, Tristan? — indagou o homem.

O velho chinês, muito bem conservado, era alto e forte, com longos cabelos brancos lisos. Vestia uma camisa social branca e uma bermuda bege.

— Essa é a Ella, senhor — responderam Tristan e o Vendedor ao mesmo tempo.

— Você colocou a venda nela? — perguntou ele, rabugento.

— C-coloquei — gaguejou Tristan, nervoso. — Eu a trouxe para cá para você tratar dela. Ela está com ferimentos graves por todo o corpo. Tentei conter os ferimentos do jeito que você me ensinou, mas não vai durar por muito tempo.

— Tá bom, leve-a para a sala — respondeu o senhor, carregando dois baldes cheios de água fresca do riacho.

Tristan sentou-se num canto do sofá, o Vendedor no outro, e Ella no centro. Ela parecia muito pequena entre os dois.

— Então, esse é seu velho amigo que você disse que ia visitar? — perguntou Ella ao Vendedor, quebrando o silêncio.

— Ele mesmo, é o Velho Shan. Eu ia voltar para os negócios hoje, mas ele disse que faria um jantar especial, então decidi esperar — disse o Vendedor, sorrindo.

Shan entrou no cômodo, arregaçando as mangas da camisa.

— Vamos, tire o casaco, deixe-me ver os ferimentos.

— Estou sem roupa por baixo... — respondeu Ella, timidamente.

— Tampe seus peitos com a mão, eu não ligo. Só vamos acabar logo com isso, preciso preparar o almoço — respondeu Shan, curto e grosso.

Tristan ajudou Ella a tirar o casaco e ela imediatamente cobriu seus peitos com os braços. Era bem constrangedor estar despida na frente de três homens.

O velhote analisou os ferimentos brevemente e pediu que os dois saíssem da sala.

— Urso pardo, né?

— C-como você sabe? — perguntou Ella, surpresa.

— Pelo tamanho dos arranhões, é a garra de um urso. Tá bom, fique aqui — respondeu Shan, retirando-se da sala.

Shan voltou com remédios, bandagens, álcool e outros utensílios para suturar os ferimentos de Ella.

Do lado de fora da sala, Tristan e o Vendedor aguardavam de braços cruzados.

— Como conheceu a Ella? — perguntou Tristan.

— Conheci ela quando ainda estava em Vigon. Eu tentei impedir ela de vir para Rubra, mas ô garota teimosa — respondeu ele, pegando um cigarro do seu bolso e acendendo.

— Você sabe mais alguma coisa dela? Tipo, do que ela gosta de fazer.

Tristan estava interessado em Ella e queria agradá-la.

— Você tá achando o que garoto, que eu a conheço há dez anos? — brincou o Vendedor.

— Sei lá, pelo jeito que ela sorriu quando te viu, parecia gostar bastante de você.

— Só seja você mesmo. Você é um bom rapaz, viciado em lutas, mas é um bom rapaz — respondeu o Vendedor, tirando o cigarro da boca e lançando um anel de fumaça.

— Um dia esses cigarros vão te matar — exclamou Tristan, abanando a fumaça para longe.

— Essa é minha meta. Ninguém foi capaz de me matar, somente o meu bom e velho cigarro.

O Vendedor se retirou do corredor para fumar fora da casa.

Depois de meia hora, Shan saiu da sala com os utensílios medicinais e foi para seu quarto. Tristan aproveitou para ver como Ella estava.

Ella estava sentada no sofá cama, olhando para a janela. Todos seus ferimentos haviam sido suturados.

— Ella, como você está? Se sente melhor?

— Estou bem, só um pouco fraca, mas acho que depois que eu comer algo, vou melhorar.

— Vai sim, você é forte, e hoje você vai comer muito bem! O Velho Shan é um verdadeiro mestre-cuca — disse Tristan, sorrindo.

— Novamente, muito obrigada por tudo que você fez por mim. Só estou viva por sua causa.

— Relaxa, só fiz o que gostaria que fizessem por mim — respondeu Tristan, sorrindo. — Agora, tente dormir. Te acordo quando o almoço estiver pronto.

— Ah, e pede ao Shan se ele tem alguma calça pra te emprestar. Ficar andando só de cueca é ridículo — disse Ella, rindo.

Tristan riu e saiu da sala, fechando a porta. Entrou na cozinha, onde Shan e o Vendedor conversavam.

— Tristan, feche a porta da cozinha — exclamou Shan.

— Eu e o Shan estávamos conversando sobre onde diabos você foi se meter para ter que usar sua calça como atadura — comentou o Vendedor, rindo muito. — O lugar era tão merda que até os ratos estavam fazendo estoque de pano? Não tinha nenhum tecido?

— Se tivesse, eu teria usado. Estávamos num chalé abandonado na região Norte, naquela infestada de criaturas do Vazio, sabe? A Ella estava sangrando muito, tive que usar o que estava ao meu alcance.

— Você fez bem, mas é engraçado ver você só de cuequinha — comentou o Vendedor, rindo.

— Pegue uma calça e uma camisa no meu armário, Tristan. Acredito que as minhas roupas servirão em você — sugeriu Shan.

Tristan saiu do cômodo e Shan aproveitou para conversar a sós com o Vendedor.

— Posso te chamar pelo nome agora? Ou vai continuar com essa besteira de Vendedor Viajante? — alfinetou Shan, seco.

— Olha só, velhote, não é besteira, tá legal? E fala baixo, porra! — respondeu o Vendedor, aproximando-se de Shan. — Esse sou eu agora, eu não sou mais o mesmo homem de antes.

— Acha mesmo que fugir dos seus demônios irá espantá-los? Eles só irão te perseguir ainda mais. Enfrente-os! Seja um homem de verdade.

Shan mantinha um semblante sério.

— Falar é fácil, você não passou nem por metade do que eu passei — respondeu o Vendedor, um pouco irritado.

— O Vendedor Viajante é a persona que você criou em busca de redenção, não é? CCV, Operações Secretas, Terra Prometida, a Sophia, o Aslan, você se sente culpado por todas essas merdas, e eu entendo.

— Não, você não entende — interrompeu o Vendedor, exaltado, avançando contra Shan, encarando-o com raiva.

— Vai me bater? Vai em frente, Aslan não está aqui para controlar seus acessos de raiva. Mostre quem você realmente é! — disse Shan, em tom alto, mas não o suficiente para Ella ouvir.

O Vendedor deu um passo para trás, mas a raiva ainda era evidente em sua respiração.

— Você busca o perdão pelos seus pecados na garota, isso está claro para mim. Mas antes de buscar o perdão, deve perdoar a si mesmo, e não se esconder num personagem como você faz — concluiu Shan, curto e grosso.

— E você, já se perdoou pela Kiyoko, Iori, Takashi, Yumi? Todas aquelas cicatrizes na costa da Ella, foram por culpa da Kiyoko! Eu fiz muitas merdas, mas não criei nenhum monstro — retrucou o Vendedor, apontando o dedo para Shan.

Shan, tomado pela ira, desferiu um soco no rosto do Vendedor.

Tristan retornou à cozinha, notando o clima tenso.

— Vocês estão bem? — indagou ele.

— Não sei, estamos bem? — retrucou Shan, encarando o Vendedor.

— Estamos — bufou o Vendedor.

Shan retornou a cozinhar e o Vendedor foi para a varanda fumar outro cigarro.

— Você tá bem? — perguntou Ella, aproximando-se silenciosamente.

Ella estava vestindo roupas que Shan lhe deu; uma calça branca de treinamento e uma camisa preta de manga comprida. Ficaram um pouco grandes nela, mas eram usáveis.

— Ah, estou e você? — respondeu o Vendedor, soltando um longo jato de fumaça.

— Tá indo, tirando a dor do caralho que estou sentindo, estou bem. — Ella riu. — O que aconteceu lá dentro?

— Ah, então você ouviu?...

— Só ouvi você e o Shan gritando, mas não consegui entender nada do que vocês falavam.

— Não foi nada, só uma discussão entre dois velhos amigos — afirmou ele, com o cigarro entre os dedos.

— Entendi... ei, vê se não some assim, eu gosto de você — disse Ella, encostando a cabeça no ombro dele.

O Vendedor Viajante olhou de canto de olho, boquiaberto. Estava verdadeiramente surpreso pela afeição de Ella.

— Não vou... eu prometo.

— A propósito, cadê sua águia?

— Ela deve estar por aí, voando livre pelos céus, quem sabe. Quando ela sentir que eu preciso dela, ela voltará. — O Vendedor estava olhando fixamente para as nuvens.

Ella sorriu e começou a observar as nuvens. Ela sempre se encantava com a perfeição daquele mundo e como tudo fluía perfeitamente.

Ela queria descobrir mais daquele vasto mundo rodeado de segredos, por isso, lutaria até o fim da sua vida!

Sua jornada ainda estava apenas no início. Mesmo enfrentando dificuldades severas, nada disso a abateria.



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