Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 17: O Agouro da Besta

Ella caminhava pelas sendas obscuras de uma floresta nebulosa, os sons dos morcegos pendurados nos galhos secos das árvores ecoavam pelo ambiente sombrio.

Encontrou-se em uma clareira iluminada pela luz do luar.

Uma besta gigante, semelhante a um lobo, com olhos como um âmbar cintilante, estava sentada sobre uma poça de sangue.

A criatura devorava, lentamente, o busto de uma mulher loira e nua.

Era possível ver suas entranhas presas nos dentes da fera e seu sangue pingando ao redor, aumentando ainda mais a poça no solo.

A mulher, em agonia, clamava por socorro. Sem hesitar, Ella correu em direção a ela, mas por mais que corresse, parecia que seus pés estavam presos no chão, como se a própria realidade conspirasse contra seus esforços.

O rosto da mulher estava virado para a besta, mas, ao virar em direção a Ella, pôde ver claramente.

A mulher era a própria Ella Murphy, sem sombra dúvidas. A revelação fez Ella instantaneamente parar de correr. Ela continuou a observar, paralisada e atônita, uma versão de si mesma ser devorada pela besta.

A visão era um reflexo grotesco de sua própria existência, um enigma sombrio que permeava sobre seu ser.

— Então você aceitou que não pode fazer nada, não é? — proferiu a besta, com uma voz penetrante e macabra.

— Quem diabos é você?

A besta largou o corpo da mulher, já morto, e caminhou lentamente, sobre quatro patas na direção de Ella.

— Guarde minhas palavras, filha do Lobo — disse o lobo, sua voz era como um murmúrio funesto. — Em breve, e pode ter certeza que não tardará, a morte pairará sobre os céus acima de ti.

Ella, com seu coração batendo como um tamborino de guerra, fitou o lobo com um olhar perplexo e temoroso.

— O quê?!

— Deverás decifrar os símbolos e presságios dos quais a própria noite sussurra em sua direção. Aqueles que julgas como irmão, esconde de ti um segredo tão obscuro quanto o próprio véu do abismo. — O lobo, com um olhar que penetrava além do véu do presente, caminhava ao redor de Ella. — O teu espírito será testado pelas sombras que beiram a compreensão. A morte, um espectro inclemente, está entrelaçada ao seu destino, aja com cautela, como um animal matreiro.

— E-eu não estou entendendo — balbuciou Ella, tentando acompanhar o lobo com o olhar enquanto ele a circundava. — O que isso quer dizer?

— Assim como minha fatídica existência, tua jornada será um balé entre o éter e o abismo. Tome cuidado para não se desvencilhar da sua vida efêmera, a eternidade insaciável do Vazio consome até mesmo os mais sábios. — O lobo começou a se afastar, indo em direção às árvores negras, cobertas por uma densa névoa. — Não esqueça essas palavras.

— Ei! Espera! O que meu irmão esconde de mim?! — gritou a garota.

Mas era tarde demais; o lobo já tinha se desvanecido nas sombras da floresta negra, deixando Ella envolta em uma névoa de incerteza e temores.

Subitamente, a atmosfera pesada dissipou-se e Ella despertou com um grito e seus olhos marejados de lágrimas. Tudo foi apenas um sonho, mas as palavras da besta permaneceram gravadas em sua mente.

Ella tinha certeza de que aquilo não era apenas um sonho, mas sim um agouro enigmático que alertava sobre uma calamidade iminente.

— Ella! — Ethan abriu a porta apressadamente. — Está tudo bem? Eu ouvi você gritando.

— Não foi nada, tive apenas um sonho estranho — respondeu ela, arfando.

— Por que você está chorando? Que sonho foi esse? — Ethan sentou-se ao lado de sua irmã.

— Eu estou chorando? — Ella tocou suavemente seus olhos e percebeu que estavam encharcados de lágrimas.

— Ei, esse sonho deve ter sido muito estranho. — Ele riu e secou as lágrimas dos olhos dela. — Levanta e vai tomar um banho, preparei um café da manhã gostoso, você vai gostar.

Ella se surpreendeu com o conforto que tinham na comunidade.

— Eu já vou indo. Não se esqueça da sua conversar com o Marc — disse Ethan.

— Eu sei, não se preocupe.

— Ah, e tira esse lençol, você o manchou de sangue, vou lavar depois — disse Ethan, antes de sair do quarto. — Eu lavei sua jaqueta e coloquei para secar lá fora, pega lá depois. Estou atrasado, vou indo, mais tarde a gente se vê.

— Tá bom, até mais, Ethan.

Ella se levantou e foi para o banheiro. Haviam roupas similares às suas que Ethan havia deixado; ele realmente era atencioso.

Despiu-se e ligou o chuveiro. A água corria por suas costas cobertas de cicatrizes, trazendo uma sensação de conforto que ela não sabia explicar.

Depois de semanas sem tomar banho, agora estava limpa, sem nenhum vestígio de sangue. Vestiu as roupas e foi para a cozinha.

Ethan não poupou esforços para fazer um café da manhã para Ella. Na mesa havia ovos mexidos, suco de laranja, pão e morangos.

Nunca em sua vida tinha comido morangos. A vida no Pináculo das Montanhas Brancas era bem restrita, não havia ninguém com conhecimentos de agricultura na comunidade.

Ella terminou o café da manhã em minutos, estava realmente faminta. O morango sem dúvidas se tornou sua fruta favorita.

Ela pegou seu armamento, anexou o coldre e a bainha à calça que Ethan havia deixado e pegou sua jaqueta no varal.

Fora da casa, o dia estava sereno e ensolarado, com o cantar dos pássaros ressoando pela comunidade. Era cerca de nove da manhã e o sol ainda não estava escaldante.

A maioria dos civis transitavam pela comunidade, conversando animadamente.

Ella dirigiu-se até a central da comunidade para conversar com Marc. Ele estava de frente a central, conversando com um homem fazendo jardinagem.

— É isso que estou te dizendo, não sei se tulipas vão combinar com a entrada da central.

— Você acha que rosas vão combinar mais, senhor Marc?

— Não, claro que não, vai deixar isso aqui parecendo um enterro.

— Marc! Bom dia, espero não ter me atrasado — disse Ella, tocando no ombro dele.

— Ella! Você chegou no momento certo. Me diz, o que você acha que combina mais com a fachada da comunidade, tulipas ou rosas?

— Olha, pra ser sincera, acho que nenhum dos dois. Na minha opinião, um lírio azul combinaria mais.

— Lírio azul! Tá vendo, George? Você deveria ter boas ideias como a Ella.

— Tanto faz, nós não temos lírios azuis.

— Por enquanto, vou mandar alguns catadores procurarem.

— Então é pra isso que serve a guilda dos catadores? — Ella riu.

— Ei, tá rindo do que?! A decoração é muito importante, sabia?

— Você me disse ontem para vir falar com você. Então, o que era?

— Ah sim, venha, vamos até a minha sala.

Já na sala de Marc, ele colocou um pouco de vinho em sua taça. Era um pouco cedo para beber álcool, mas o chefe da comunidade tinha suas mordomias.

Ele caminhou até um armário no canto da sala e pegou quatro fichários de uma gaveta.

— Preciso que você encontre e traga esses quatros para a comunidade. — Ele jogou os fichários na mesa.

Marc pegou o primeiro fichário da mesa e entregou a Ella. Nele havia o nome e a foto de um homem.

Era um homem negro, com cabelos cacheados grandes, estilo black power, e um bigode estiloso. Ele tinha uma feição gentil demais para se parecer um Águia.

— Marcos Castro, um imigrante do Brasil, foi do mesmo esquadrão do seu pai. Ele tinha a vontade atemporal. É bem raro achar alguém com essa vontade.

— Essa foto dele é de quando? E se ele estiver diferente?

— Nós renovamos todas as fotos dos caçadores em 3000, ele não deve estar muito mudado.

O fichário continha a última localização onde ele foi visto, um lugar que Ella não fazia ideia de onde ficava.

Ella devolveu o fichário a Marc, que retirou a foto de Marcos e a entregou.

— Fique com a foto, vai que você esquece a aparência dele.

Marc pegou outro fichário e entregou a Ella. Desta vez, era um nome familiar.

— Kalel Pavlov, o último caçador de Vaskov, não é? Eu o vi no coliseu.

— Então você já o conhece. Ele é um dos melhores Águias do esquadrão.

— Não tem foto dele?

— Nunca — disse Marc, com seriedade. — Ele conseguiu ocultar qualquer informação sobre seu passado, só sabemos o que ele quer que saibamos.

— Ele deve estar perto do laboratório, levando em conta de que ele ia lutar no coliseu.

Marc entregou outro fichário a Ella.

— Yami Fujikawa... lutador? — Ella ficou confusa. — Achei que queria que eu fosse atrás de caçadores.

A foto mostrava Yami no seu auge: um homem asiático, extremamente musculoso e alto, com longos cabelos pretos e um sorriso cativante.

Marc riu com elegância.

— Ella, você não estava viva na época para saber, mas esse não é apenas um lutador. — Ele deu o último gole na taça de vinho. — Esse é Yami Fujikawa, o maior lutador da humanidade. O mais forte que já existiu. Nem mesmo Peter Murphy tinha tanta força física. Consegue entender a magnitude disso?

— Nossa. Tá, beleza. — Ella pegou a foto dele e devolveu o fichário.

— E agora, o mais importante.

Esse fichário era totalmente diferente dos demais, era negro com letras brancas.

— Esse é o mais importante de todos — disse Marc, entregando o fichário. — Kousei Takahashi, o maior caçador que já existiu.

Era um homem asiático, de cabelo preto e estatura musculosa, vestindo uma camisa de compressão preta com um sobretudo preto. Seu olhar era frio, desprovido de emoções.

— Ele não tem localização?

— Nunca o encontramos, desde que a merda toda aconteceu, ele sumiu do mapa.

— E se ele estiver morto?

— Alguém como o Kousei nunca morreria, posso te garantir. Foi ele quem derrotou a Caçadora de Águias, esqueceu?

— Tá, mas como você quer que eu ache alguém que vocês nunca viram?

— Eu confio no seu potencial. — Marc sorriu.

Ella se despediu e caminhou até a saída, mas antes de sair, Marc a interrompeu.

— Ah, e espere pelo seu irmão, ele irá te guiar.

Ela assentiu e se retirou.

Enquanto aguardava a chegada do irmão, Ella perambulou pela comunidade para matar o tempo. Tudo parecia funcionar perfeitamente.

Uma voz feminina soou pelo alto-falante da comunidade.

— Agora são meio dia em ponto, todos se reúnam no restaurante comunitário para almoçar!

Ella seguiu a multidão que se formava e dirigiu-se até ao restaurante comunitário. Havia uma fila preferencial para guildas, então não demorou para pegar seu prato.

O prato do dia era arroz, frango, legumes e dois ovos cozidos. Não era muito, mas certamente era melhor do que passar fome. Sentou-se em uma mesa e começou a apreciar o seu almoço.

Uma criança se aproximou timidamente e a cutucou.

Era uma garotinha pequena, com longos cabelos escuros e olhos azuis resplandecentes.

— Oi... você é a irmã do Ethan?

— Oi, sou sim. Qual é o seu nome? — disse Ella, amigavelmente.

— Eu sou a Verônica, é... o Ethan é meu melhor amigo — disse ela, constrangida. — Podemos ser amigas também?

— É claro que podemos, eu sou a Ella. E que nome lindo que você tem!

— Verônica! — gritou um homem. — Venha pegar um prato!

— Tchau, Ella!

A garota correu até ele, enquanto o homem encarava Ella com um olhar de desprezo.

— Esse cara odeia os Murphy — disse Ethan, chegando repentinamente com um prato.

— Ethan! Você chegou rápido.

— O porto não é muito longe daqui. Viemos correndo também, então foi tranquilo.

— Por que ele odeia os Murphy? — indagou Ella, de boca cheia.

— Pelo que fiquei sabendo, nosso avô matou o pai dele, acidentalmente.

Ella olhou para o homem que segurava Verônica no colo.

— A Verônica é filha dele?

— Conheceu a Verônica então? Sim, ela é uma gracinha. Ela tem a vontade das chamas. Você deveria ensinar algumas coisas pra ela. Ela iria adorar.

Ella não gostava muito de pessoas, mas tinha uma afinidade com crianças. Somente elas possuíam a pureza de que Ella buscava nos outros. Por isso, seu maior sonho é de ser mãe.

— Amanhã nós vamos atrás do Marcos. Você já está a par de tudo? — perguntou Ethan.

— Uhum.

— O Raiden me disse que se não tiver nenhuma missão, ele vai com a gente.

— Quem é Raiden?

— Ele! — Ethan sorriu.

Toda a tripulação entrou no restaurante, atraindo a atenção de todos presentes.

Eram homens gigantes, especialmente três deles. O mais alto tinha aproximadamente dois metros e setenta, enquanto os outros dois mediam cerca de dois metros e trinta.

Raiden não fazia parte da tripulação, mas estava ao lado deles. Ele caminhou até a mesa onde Ethan estava.

Assim como os demais, ele era um homem alto e musculoso, com um tapa-olho no olho direito e coberto de cicatrizes. Em suas costas, carregava duas lâminas conectadas por correntes.

A jornada em busca dos caçadores começaria em breve. Os três desbravariam a perigosa e ruinosa Rubra, em busca de respostas sobre seus parceiros desaparecidos.

Nos confins mais perigosos da capital, o mal iminente do Vazio espreitava, à procura de suas presas.



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