Volume 1 – Arco 1
Capítulo 2: O Rei das terras de Vigon
Quebrando o silêncio amedrontador entre eles, o homem misterioso decidiu falar:
— Poderia abaixar a espada? Isso está assustando minha águia e…
— Quem é você? — perguntou Ella, o interrompendo de forma bruta.
— Bom, os que ainda estão vivos por aqui me chamam de Vendedor Viajante, estou sempre vagando por Rubra e vendendo minhas mercadorias. Por isso o nome, acho que deu pra entender.
— Então quer dizer que existem mais pessoas vivas em Rubra? Meu pai me contava que a capital estava totalmente dizimada e tomada pelo Vazio.
— De certo modo ele não está errado. Mas tentamos sobreviver no meio deles. É como dizem, “Se a vida fosse fácil eu não nascia chorando“ — brincou o Vendedor, tentando aliviar a tensão.
— Agora, voltando ao que eu ia falar, sempre que precisar comprar alguma coisa, eu estarei lá.
Ella se sentindo mais à vontade com o homem, guardou a rapieira em sua bainha.
— É que eu não tenho dinheiro, na real eu não sei muito bem como isso funciona, de onde eu vim, a gente dividia tudo — confessou Ella, demonstrando vergonha pela sua falta de conhecimento.
— Não se preocupe, vejo uma força ambiciosa em você, caçadores por aqui ganham uma boa grana. Se quer um conselho, se junte a UCC, é a maior comunidade de Rubra. Foi fundada por diversos caçadores no início de tudo isso e está de pé até hoje. É um bom lugar, eu gosto de lá, sempre que visito eles, me dão um ensopado de galinha, não tem como negar um presente desses né? —aconselhou o Vendedor, sorrindo.
— Se eu tiver tempo, quem sabe. Aliás, não me apresentei. Me chamo Ella, estou atrás do meu pai, Aslan Murphy e do meu irmão, Ethan Murphy. Tem alguma informação deles?
De repente, o Vendedor congelou e ficou pálido ao ouvir o nome do pai de Ella.
— V-você é a filha dele? — perguntou ele, com um tom sério que contrastava com seu humor anterior.
— Sim, meu pai me deixou há cinco anos. Ele me disse que somente ele poderia matar Rithan e Chaos, mas que voltaria o mais rápido possível para cuidar de mim. Depois dele, meu irmão também veio pra cá. E agora cá estou eu, procurando os dois — respondeu Ella, soltando uma leve risadinha.
Ella acreditava fielmente que os dois estavam vivos. O Vendedor olhou para ela com uma tristeza profunda.
— Eu conheço o Aslan, ele foi o Águia mais forte da geração, ao lado do Kousei, é claro. Ambos ocupavam o pódio. Desde o dia que a sociedade começou a desabar, eu não soube mais nada dele. E o seu irmão… bem, eu já ouvi chamarem alguém pelo sobrenome Murphy na UCC. Se você não tiver outro parente, talvez possa ser ele.
— Sério?! Então eu vou tentar chegar até lá, você tem algum mapa que me leve até o local? — perguntou Ella, cada vez mais entusiasmada.
No entanto, o Vendedor parecia guardar um segredo obscuro.
O Vendedor traçou uma rota em um mapa que tinha de Rubra e entregou à Ella.
Nunca havia visto uma pessoa tão feliz como ela, estava o agradecendo sem parar, e ao se despedirem, o Vendedor disse:
— Ella… se você cruzar essa estação, estará seguindo um caminho sem volta. Eu sei que não posso te impedir, ou te aconselhar, nos conhecemos agora. Mas, se ainda quiser ir, por favor, tome cuidado. Existem seres tão… cruéis, nenhum deles terá a mínima piedade de você.
— Pode deixar comigo. Eu treinei a vida inteira para isso, eu consigo me proteger — respondeu Ella, se despedindo com um sorriso confiante em seu rosto.
Ella deixou a estação e chegou em Vigon, o temido subúrbio subterrâneo de Rubra, a terra dos criminosos mais perigosos já conhecidos pelo mundo. Ela sabia que estava pisando na parte mais obscura e sinistra da cidade.
Outrora, Vigon, que abrigava mais de dois milhões de habitantes, agora estava completamente vazia e tácita, envolta por uma névoa sombria que parecia interminável.
Ella podia pressentir que havia algo maléfico naquele local, naturalmente adotou uma postura defensiva, e, no final das contas, não estava errada.
Repentinamente, um devorador noturno surgiu das sombras e atacou Ella com fúria e agressividade, mostrando ser um predador nato.
Semelhante a um lobo cinzento, a criatura tinha uma cabeça composta apenas por um crânio esquelético, dois chifres próximos aos olhos e uma mandíbula capaz de esmagar o mais resistente dos metais.
No entanto, os reflexos afiados de Ella lhe permitiram se defender do ataque no momento certo. A criatura investiu novamente contra ela, saltando em sua direção com as garras prontas para cortarem seu pescoço.
Em vez de se defender, Ella sussurrou Flammeum Gladium e a lâmina de sua rapieira se envolveu em chamas tão quentes quanto o magma de um vulcão. Com um único ataque preciso, ela decepou a cabeça da criatura, pondo um fim à ameaça.
Por mais tenebrosas que fossem as criaturas do Vazio, Ella estava em outro patamar, elas não eram um problema relevante para ela.
Mesmo após matar o devorador noturno, aquela presença obscura ainda a cercava, assim como previa, um mal maior estava nos arredores.
Diante dos seus olhos, Ella descobriu um novo mundo em Vigon, repleto de coisas que jamais imaginou que existissem. Embora fossem comuns para a sociedade antiga, eram totalmente inusitadas para ela.
Continuando a explorar o subúrbio e chegou até o centro da cidade.
Era enorme, com diversos comércios, placas de hologramas que já não funcionavam mais e vários veículos abandonados.
Mas algo chamou mais a atenção de Ella do que tudo isso: uma estátua de tamanho real de um homem se destacava, com uma placa que dizia “Nicolas Neofásio, o maior gênio de Vigon“, mais um nome entrava para a lista das inúmeras figuras históricas que Ella não fazia ideia de quem eram.
A névoa obscura foi se concentrando cada vez mais ao redor de Ella ao ponto de ela não conseguir enxergar mais nada.
Rápida como um raio, ela sacou sua espada, enquanto um silêncio assustador tomava conta do local. Tudo que se conseguia escutar era o som de sua respiração e o estalar de seus ossos.
Um calafrio intenso percorreu seu corpo e uma risada maléfica quebrou o silêncio.
Instintivamente, Ella gritou Flamma Incorporatio e desenhou um círculo em chamas ao seu redor com a mão. Finalmente ela pôde enxergar novamente, e percebeu a tempo, que estava prestes a ser empalada por uma lâmina feita de matéria do Vazio.
Desviou do ataque que por um triz não a acertou. Seu inimigo quase que instantaneamente a atacou novamente.
Sua lâmina passou tão perto de seu rosto que cortou alguns fios de seu cabelo.
Ella desviou e contra-atacou com um golpe de chamas disperso através de suas mãos, acertando a criatura em cheio e arremessando-a contra a parede.
Os olhos de cor violeta da criatura cintilaram intensamente, enquanto seu corpo se envolvia numa névoa roxa-escura, que regenerou a parte que foi atingida pelo ataque de Ella.
O que antes estava ardendo em chamas, agora estava totalmente intacto.
— Aah, eu consigo sentir o cheiro do medo fluindo pelo seu corpo. Isso é… maravilhoso! — provocou a criatura do Vazio.
Ella empunhava sua espada com as mãos trêmulas, nunca havia visto uma criatura do Vazio racional antes.
Estava a todo custo tentando controlar suas emoções e se manter calma.
— Vocês humanos são tão… intrigantes. Por que vocês ainda insistem em lutar contra nós? Vocês são reféns de uma vida efêmera, se não os matarmos, o tempo os matará. Vocês vivem para lutar em uma guerra que já perderam.
Essas palavras fizeram sentido na mente de Ella. Por que ela lutava se já estava destinada a morte? Qual era o sentido de sua vida? Dispersando esses pensamentos, Ella lembrou do porque realmente lutava.
Sua única motivação para viver era reencontrar com seu pai e seu irmão. Estava disposta a fazer absolutamente tudo pelo seu objetivo.
— Você está na presença do Deathbringer, você tem duas opções, garota. Ajoelhe-se perante o rei das terras de Vigon, ou morra. — Sorriu a criatura, maleficamente.
Deathbringer sabia como mexer com o emocional dos seres humanos, principalmente pela sua aparência terrivelmente maléfica, mas tudo o que conseguiu, foi trazer à tona a ira de Ella.
Seu medo se esvaiu e pôde sentir sua vontade fortalecendo cada músculo do seu corpo. Estava mais determinada do que nunca a matá-lo.
— Esse é o nosso mundo, não o de vocês. Sou descendente do Peter Murphy, não me ajoelho perante ninguém — respondeu Ella, de forma fria, lançando um olhar raivoso a Deathbringer.
Ser subestimado por um humano era a maior humilhação que um Emissário poderia sofrer, como que uma presa se acharia maior que seu predador? Isso era inaceitável.
Ambos travaram um combate formidável, de um lado, Ella demonstrando ter total maestria com sua rapieira, e de outro, Deathbringer atacando com suas lâminas feitas do Vazio.
A batalha estava perfeitamente equilibrada, mas ao errar um único movimento, Deathbringer entregou toda sua vantagem nas mãos de Ella, que ferozmente o encaixou uma sequência de ataques.
Ele conseguiu desviar de todos, exceto do último, que arrancou seu braço direito.
Ella sabia que seu ataque não o feriu de verdade, em poucos segundos ele se regeneraria novamente.
A única forma de matar um Emissário era através da decapitação, mas Deathbringer aparentava ser diferente.
Ella notou que no centro do seu corpo pulsava um núcleo, semelhante a um coração. Assim como seus olhos, ele também cintilava.
Compreendeu o que precisava fazer: destruir seu núcleo. Mas esse era o problema.
Deathbringer havia reflexos quase tão precisos como os seus, tornando praticamente impossível realizar tal façanha, mas em segundos pensou em uma estratégia.
Rapidamente, cravou sua espada no chão e gritou Explosive Flammae. Em poucos segundos o chão explodiu, desencadeando uma vasta nuvem de fumaça e chamas ao redor de Deathbringer.
Com outro encantamento, Ella arremessou vários destroços do chão em sua direção.
O adversário concentrou-se em se defender dos pedaços de concreto e ao cortar o último fragmento de concreto, percebeu que não havia ninguém em sua frente.
Era tarde demais para reagir, Ella havia alcançado suas costas mais rápido do que ele poderia imaginar.
Com a mão direita envolta em chamas, Ella arrancou o núcleo de Deathbringer, ceifando-o com esse golpe fatal.
Após Ella ter removido seu núcleo, seu corpo começou a desintegrar-se.
Caído no chão, à beira da morte e humilhado, Deathbringer conheceu a amarga sensação de inferioridade.
— Parece que você perdeu. No fim, você não era tão forte — debochou Ella, com um sorriso de canto de boca.
Colocando sua rapieira em sua bainha novamente, Vigon se viu livre do mal que a assolava.
Ella acreditava ter ganho a batalha, sem perceber quem realmente era Deathbringer.
Ele era ninguém menos do que o sétimo Emissário, um membro legítimo do bando do Chaos, o Imperador do Vazio.
Ella não tinha ciência de que, ao ter matado Deathbringer, seria caçada até o dia de sua morte.
Para sobreviver, ela não só terá que superar todos os seus limites, mas precisará sacrificar todos seus valores e crenças.
Estava prestes a mergulhar no mar de angústias que é viver em Rubra.