Masmorra do Desejo Brasileira

Autor(a): Alonso Allen & Zunnichi


Volume Único

Capítulo 24: A Última Parada

Era noite, fazia tanto frio que Minerva precisou se enrolar em dois casacos para se proteger das ventanias do deserto. Quem sabe pegaria um resfriado no dia seguinte e vários espirros soariam dentro da estalagem por longas horas. Ele olhou o vulcão na distância, não havia nenhum sinal de luz do topo e a lava que ameaçava escorrer havia se transformado numa camada escura.

Após terem derrotado o chefe, inesperadamente aquele lugar ficou completamente inativo. As pontes rotatórias congelaram e o calor desapareceu, como se o elemental de fogo tivesse sido o responsável por alimentar o fogo daquele inferno. Ele ficou bastante grato, agora não precisava se preocupar em enfrentar uma erupção vulcânica abaixo dos pés.

No entanto, depois que o grupo avistou a fortaleza no céu, as coisas complicaram. Sem métodos para de alguma forma chegarem lá, abrigaram-se na cidade mais próxima, chamada Skalp, e desde então descansaram para recuperar as energias… só que ninguém sabia como chegariam lá em cima. 

Minerva, o único acordado ao longo da noite, estava lá fora justamente para se acalmar um pouquinho. Encostado na mureta de arenito do lado de fora da cidade, ele tirou seu tempo para apreciar o céu e a fortaleza destacada no meio do nada. 

Eu ainda me sinto um lixo mesmo depois de tudo… Essa sensação perpetuou seu coração, na verdade, talvez antes mesmo de ter se encontrado com o restante do grupo, havia essa impressão cravada no seu peito. — Hah, pelo menos estou melhor que antes, né? Anime-se, idiota, não tem nada no passado para você querer de volta…

O ladino era o único dos aventureiros que odiava reviver suas memórias. O tempo todo zoando, o tempo todo correndo de lá pra cá, “vivendo o presente” , por assim dizer. Suas atitudes eram feitas justamente para não passar aquele momento soturno sozinho, pois quem sabe alguém poderia vê-lo num momento de fraqueza e envergonhá-lo assim do nada.

Aff, por que eu tô todo depressivo a essa hora? Era pra tá dormindo e sonhando com o par de coxas de alguma garota linda… Ser ferrado da cabeça com certeza é uma chatice…

Tocou o bolso por baixo do casaco. Ali tinha um pedacinho de feno enrolado, com um tipo de conteúdo dentro. Ele sacou aquilo e usou a pequena lasca de fogo das lamparinas presas na entrada para acendê-lo. Colocou na boca, tragando bastante e então soltando uma cortina de fumaça. 

Fazia muito tempo desde a última vez que fumou, mas ainda causava a mesma sensação confortante de sempre. Certas coisas não mudavam não importa quantos anos passassem.

— O que você tá fazendo a essa hora?

Minerva virou a cabeça para quem o chamou. Era o elfo chato e rabugento… ou melhor, a elfinha fofa que enchia o saco todo dia. 

— Tô fumando. Vai dizer que não posso, Lohan?

— Não era para estar. — A elfinha bufou, cruzando seus bracinhos numa carranca birrenta. — Passe o cigarro pra mim, agora!

— Eu não. É crime oferecer bebida e drogas a menores, esqueceu? Se eu te der isso, podem acabar me prendendo… Bom, não é como se fossem conseguir, de qualquer forma, hahahaha!

A risada não mudou em nada o semblante irritado de Lohan, que tratou de chutá-lo na canela. O ladino se dobrou um pouco por causa da dor, isso foi o bastante para que o mago tirasse das mãos dele o cigarro, jogasse no chão e pisasse até apagar as chamas.

— O que tem de errado com você?! — gritou, puxando-o pelo colarinho e forçando-o a continuar dobrado. — Já falei inúmeras vezes para não se meter em certas coisas, e você de teimoso vai lá e volta, igual ao caso de vender a poção, igual a adaga, igual agora mesmo!

Minerva não sentia vontade de responder, então só permaneceu quieto enquanto a saliva de uma criança batia no seu rosto. Tentou tirar o punho que o segurava para longe, esquecendo-se que havia entregado o livro de habilidade a uma determinada pessoa e que agora essa criança não tinha mais a mesma força que antes.

Ele soltou um suspiro e desviou os olhos. — Você não entenderia. 

— Eu não entenderia? Essa é sua desculpa? Só porque pareço uma criança? 

— Hah, quando você vai parar de agir igual uma criança? — Com um empurrãozinho um pouco mais forte, livrou-se do aperto. — Você não entenderia porque tem sorte, Lohan. Olhe em retrospectiva, quem que saiu ganhando nessa aventura até agora?

— Isso não tem a ver, Minerva, está delirando pensando que só eu sai ganhando… Além do mais, não há nada te impedindo de também obter o desejo!

— Não banque o idiota. — Ergueu a cabeça em direção a fortaleza flutuante. — Olhe para lá, acha que eu sobreviveria um momento lá dentro contra um chefe? Nesse tempo de viagem, eu mal fiquei forte, no melhor dos casos continuo quase o mesmo desde o começo da aventura.

O mago teve vontade de contra-argumentar, dizer todos os itens que ganharam até lá, mas sentiu que seria injusto uma comparação tão pífia, logo ficou em silêncio enquanto escutava o desabafo.

— Alice ganhou tantas habilidades que parece uma divindade, além de equipamentos fortíssimos; Alexsander tem um escudo lendário, uma espada fodona, é um estrategista nato; Barbara tem um grimório poderoso e invoca centenas de milhares de mortos-vivos; e você virou essa garotinha birrenta, que aprendeu a usar magia, que consegue brandir uma espada mágica, que aprendeu muito mais do que esperava… e como eu fico? Porra, o que eu tenho pra me destacar? Uma capa, uma adaga amaldiçoada que mal consigo usar e esse trevo…

Ele tirou o trevo de dentro do casaco, era pequeno e simples, com as quatro folhas abertas. Lohan encarou a plantinha sem conseguir falar nada. Aquele silêncio era característico, significava que em uma das poucas vezes que o inteligente mago possuía para debater contra alguém, simplesmente seus argumentos acabaram.

Entendia bem o que Minerva queria dizer. Era a mesma sensação de quando foi transformado em garotinha e precisou brandir uma espada. Por um tempo, sentiu-se inútil por nem erguer a arma, mas depois de tanto tentar, encontrou uma paz em se superar. Seu amigo não tinha encontrado isso ainda.

— Tá bem, tá bem… Eu sei o que você quer dizer… mas eu não quero te ver se autodestruindo porque está furioso consigo mesmo. Não de novo.

A última parte do comentário pegou o coração do ladino. Ele suspirou, dando de ombros e enfim abrindo um sorriso cheio de dentes na cara.

— Bora fazer assim então: me paga uma rodada de bebida essa noite pelos velhos tempos e eu não saio de novo pra fumar.

— Jura? 

— Juro.

Lohan trouxe seu amigo de volta aos seus sentidos. Os dois passaram pelo portão da entrada de Skalp e rondaram pela noite, parando num bar onde somente Minerva encheu a cara e Lohan o observou pacientemente ficar bêbado. 

Ele sempre tinha uma cara idiota quando bebia, não importava onde fossem, mas ainda assim, era melhor vê-lo assim do que de volta ao seu estado decadente de anos atrás. O mago sorriu, aliviado por tê-lo ao seu lado como um bom e velho amigo.

 

☆ ☆ ★ ☆ ☆

 

Alice era uma garota pura de coração, mas nos dias que sucederam a aventura, essa pureza se demonstrou muito fácil de se manchar. Ódio, raiva e inveja eram sentimentos universalmente transmitidos entre as criaturas que andavam pela terra, e como santa deveria ter previsto que nem sua alma bondosa era penada de tais sentimentos.

Ela só percebeu isso depois da luta, quando as muralhas brancas no céu apareceram, por isso decidiu uma última vez rezar pelo bem de seus companheiros. Desde o momento que pisaram em Skalp, procurou um templo, há dois dias ela se prostava diante da estátua da deusa para orar.

A linda estátua da mulher à sua frente representava toda pureza que uma santa desejava. Não era sua aparência que atraia, o longo cabelo descendo pelas costas e as proporções perfeitas do ídolo eram a casca, o que importava era a “aura” transmitida por sua figura. Por mais elogiada que fosse por quão bonita era, Alice desejava mais do que tudo ter o poder de sua deusa de encantar as pessoas sempre que era vista, essa habilidade de acalmar o coração do próximo quando ajoelhado diante dela.

Se eu tivesse isso, com certeza seria mais amada. Desde pequena, Alice foi deixada numa catedral para ser treinada nos deveres de uma sacerdotisa, mas ela nunca entendeu porque seus pais queriam impor isso contra sua vontade. Deusa, eu sei que nunca tive intenção de ficar aos seus pés, me sinto envergonhada de até mesmo vir aqui e pedir alguma coisa. Sei que tem sido gentil comigo, mas não posso virar os olhos de como a minhas condutas tem ido contra a sua vontade…

Ela abriu os olhos e levantou suavemente a cabeça, mas se sentiu obrigada a baixá-la perante a imagem divina. Quantas vezes repetiu aquele ritual para limpar seu coração? Não havia como contar, pois desde muito pequena era forçada a se submeter às práticas dos apóstolos e padres. Uma garota abandonada para o templo se rendeu a deusa, logo, não tinha seu livre-arbítrio. 

Teria sido um pecado fugir…? Seu corpo retorceu com a memória. Com um suspiro, ergueu-se, batendo as barras de seu vestido, costume adquirido depois de passar tantos meses viajando. Mesmo em um lugar limpo, ela ainda tinha a impressão que seus joelhos e roupas estavam sujas por terem tocado o chão.

Uma risadinha escapou da sua boca ao reparar na ação involuntária. Ela se virou, rumando para a saída do templo, até se deparar no caminho com Alexsander sentado num dos bancos mais afastados do templo, com as mãos unidas numa prece.

— A-Alexsander?!? — o grito fugiu da boca de Alice, chocada por vê-lo sentado no templo. Depois de reparar na sua falta de modos dentro do santuário, rapidamente se recompôs e abaixou o tom dizendo: — E-eu não esperava que viesse a-aqui… 

De fato, Alexsander não era nem um pouco religioso, ninguém nunca o viu carregando algum artefato que remetesse a deusa, entidade, demônio ou qualquer coisa que pudesse ser cultuada. A maioria acreditava que ele era ignorante quanto à religião, focado somente na luta, exceto por Alice, que por acidente o encontrou ali, num dos largos bancos de madeira que decoravam a humilde igreja. 

O guerreiro não demonstrou muita reação, somente se levantou e deu um aceno de cabeça, e mesmo que aparentasse estar no seu estado natural de sempre, a clériga teve a impressão de algo espetar seu peito ao observá-lo.

Era um daqueles raros momentos quando se olhava para alguém e imediatamente uma força maior falava com seu coração, indicando o que estava havia de errado com a tal pessoa, mesmo não possuindo lógica ou motivo algum para questioná-la.

— Sim — respondeu o homem, também em tom baixo. — Eu achei melhor vir aqui. Talvez ia me arrepender de não pedir qualquer ajuda possível para enfrentar o que nos espera lá em cima.

Ele indicou com o dedo a grandiosa fortaleza no céu, e de repente Alice reparou numa paisagem digna de um quadro melancólico. Nele, Alexsander estava perto de uma das janelas, abaixo de um vitral colorido de um santo e com a mão quase agarrando a tal fortaleza, que pela distância parecia minúscula. 

Seu rosto, no entanto, não revelava calma ou frieza da qual Alexsander sempre tratou todas as situações, era amargura. Somente amargura. 

Por que ele está desse jeito depois de tudo o que passamos?, pensou Alice, apertando a barra das suas roupas de clérigo. Não… Ele sempre foi assim. Desde que o conheci, o olhar não mudou. Ele raramente sorriu, não se abriu conosco. Essa distância esse muro sempre estava lá, só fui ignorante demais para falar.

— Isso logo acabará e voltaremos para casa — disse Alexsander, mas sua fala não se direcionou a clériga ao seu lado, na verdade parecia que ele estava conversando com uma terceira pessoa.

Alice olhou de um lado para o outro. Seus lábios hesitaram em se abrir, o que diabos contaria a um homem cheio de cicatrizes e traumas de uma vida que ela nunca teve um pequeno vislumbre? Seria melhor fechar a boca, deixá-lo com seus fantasmas para se resolver, ou assim a resposta de qualquer pessoa sem um pingo de vontade para ajudá-lo agiria.

Ela pegou na mão calejada e dura do líder. As cicatrizes se estendiam até suas palmas, as marcas escuras abaixo dos dedos provavam o tanto de guerras, lutas e perigos que aquele homem sofreu. Mesmo usando sua magia de cura mais poderosa com toda sua mana, estaria longe de retirar aqueles símbolos de discórdia. 

— E-eu não se-sei como di-dizer isso ou por-porque não con-con-consigo me manter di-direito… mas… só dessa vez, por favor, se abra comigo…

A jovem senhorita Lux pedindo para que seu grande líder e amigo Alexsander, aquele que apoiou a todos e especialmente a ela mesma durante toda viagem, libertasse as coisas contidas no seu coração. Era uma decisão hipócrita, além do mais, todas as vezes ela acabava nos braços dele, sendo acolhida e consolada pela menor das coisas que aconteceram, desde uma mente preocupada a um coração partido.

O guerreiro riu baixinho. Sua larga mão caiu sobre a cabeça de Alice, recebendo um cafuné que a assemelhou a um gato sendo acariciado. Ela não negou o gesto, mas se magoou por ele se esquivar tão na cara assim.

— Alice, um dia eu direi. — Um sorriso apareceu, muito radiante, um que somente seu líder reproduziria e usaria para levantar seu humor. — Antes disso, quero apenas terminar nossa missão. Quando terminarmos… não, quando tudo o que fizemos acabar e podermos retornar para casa, eu direi tudo. 

Os ombros dele caíram. Um suave relaxamento tomou conta das bochechas e mãos tensas por causa do toque repentino da clériga, que se recusava a soltá-lo.

— Sei que pode ser que eu morra lá em cima, ou que todos nós nunca mais se vejam, mas ainda desejo que as coisas sejam assim. Se eu contasse agora… quem sabe perceberia o quão idiota é o meu desejo e o quão egocêntrico sou. 

— Ma-mas não precisa se preocupar com isso! E-eu penso frequentemente o mesmo, sabe? Tanto que nem sei se é isso que vou realmente pedir…

— Exatamente por isso, Alice. Eu quero que meu passado seja mantido comigo até que nossa aventura termine. Ou meus segredos morrem comigo, ou eu vivo para partilhá-los com alguém em breve. Sempre segui esse pensamento, e não quero parar de segui-lo até que não haja mais nada em minha cabeça para me atrapalhar.

A boca de Alice se fechou mais uma vez. Sendo a pessoa mais expressiva do grupo, era fácil indicar a tristeza que sentia agora. Ela queria ajudá-lo nem que fosse uma vez para retribuir todo o apoio que recebeu ao longo dos meses que viajaram pelos continentes, queria usar um pouco de si para compensar aquela dor. 

Clérigos eram pessoas importantíssimas para aventuras. Eles curavam os ferimentos, purificavam maldições e tiravam venenos, e ainda assim, Alice acreditou ser uma inútil. Ela podia fazer tudo isso sem esforço, mas do que adiantava essas façanhas incríveis se sequer podia tirar o fardo das costas dos outros? 

Por que as coisas são sempre assim…? Lágrimas escorreram de seus olhos e Alice não percebeu. A melancolia do líder, agora transmitida à garota, petrificou sua face com gotas.

Alexsander a observou chorar. Lembrava uma determinada pessoa de muito tempo atrás, uma garota que também chorava da mesma forma quando ralava o joelho no chão ou batia a cabeça na terra batida. Seus dedos limparam as lágrimas, seguido por um simples lenço que serviu para assoar o nariz. 

Até num momento assim, de fraqueza extrema, o guerreiro não perdia sua gentileza. Alice perdeu a habilidade de sorrir após ser acolhida daquela forma, do jeito que seu líder sempre fazia quando um dos membros estava a beira do abismo. Como ele conseguia isso? Por que sempre era capaz de ajudar a todos independente do quanto se ferisse ou caísse? A clériga achou essas perguntas impossíveis de responder, mas ainda ficou parada, num momento do tempo que congelou.

Era só o vento, os vitrais, a igreja vazia, o céu nublado e a areia do deserto voando. Um momento tão triste e desencorajador que qualquer um desistiria da aventura no último instante, abandonando todas as conquistas para meramente voltar atrás.

— Eu não me importo de ter que fazer isso — respondeu Alexsander, esboçando um sorriso leve e fazendo um cafuné na garota. — Só quero que tenha paciência. Estamos perto, nossos desejos serão realizados e não precisaremos passar por aqueles momentos novamente.

Mas… essa aventura inteira foi a melhor coisa que me aconteceu nessa vida… Alice não teve forças para dizer isso, restringida ao mero pensamento e um olhar pesaroso sobre o homem à sua frente. Ela suspirou, batendo nas bochechas para ganhar de volta sua energia e personalidade.

Depois de um balanço de cabeça frenético para ter sua positividade de volta, ela respondeu: — Tudo bem, eu esperarei! Você vai me contar, é uma promessa!

— Sim, uma promessa… 

Assim foi selado o trato entre uma ingênua clériga e um guerreiro ferido… no entanto, ninguém poderia dizer se um dos dois estaria livre para compartilharem suas histórias.

 

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