Volume Único
Capítulo 20: Adeus reino gelado
O conflito havia terminado e a segunda marca adquirida em seus corpos. Os aventureiros demoraram para sair daquele lugar, já que Alexsander e Lohan tiveram que ser resgatados pela ordem de cavaleiros responsáveis por proteger a entrada na masmorra.
Depois de serem levados de volta à superfície, quase tudo estava resolvido, mas Alice ainda estava incomodada com toda a situação envolvendo Flávio.
As caretas de raiva da moça causavam desconforto e medo nos cavaleiros, que preferiam não olhar a clériga irritadiça e se concentrar em seus respectivos trabalhos. Assim que a garota de branco pôs os pés de volta ao piso gelado, saiu andando o mais rápido que podia. Alexsander estranhou a reação, e mesmo depois de perguntar aos demais o que tinha acontecido, ninguém soube responder direito.
Depois disso, os cavaleiros conduziram uma longa e cansativa entrevista. Fazia muito tempo que aquela masmorra não era uma ameaça. De repente, um monstro mecanizado causa destruição e foge de dentro dali. Aos olhos deles, aquilo era problema.
No final, a guilda interveio e eles foram obrigados a liberar os aventureiros, sem cobrar nenhuma taxa pelos estragos, especialmente por conta da santa raivosa, que tinha mais conexões políticas, eles imaginavam, por ser do templo.
Eles saíram do quartel dos cavaleiros na cidade e caminharam pelas ruas. Agora era hora de seguir para a próxima região. O método mais rápido, de acordo com Lohan, era viajar numa engenhoca anã. A engenhoca era um largo cilindro sobre rodas, acopladas em um par de barras de metal fixadas com placas de madeira grossa. Arthur, ao ouvir aquilo, logo adivinhou: era um trem!
Os aventureiros pegaram suas passagens e se impressionaram que outras pessoas entravam e usavam a tal máquina com a maior naturalidade. Algo que certamente não seria o normal às pessoas comuns, especialmente aqueles que estavam andando por todo os continentes a pé.
Cada um dividiu sua cabine com outra pessoa. Infelizmente, a pessoa que ficaria com a maluca Bárbara era Arthur, por ter perdido num jogo de pauzinhos ao tirar o pauzinho mais curto. Lohan e Minerva ficaram em uma das cabines, enquanto a última ficou reservada a Alexsander e Alice.
O guerreiro analisou a expressão da clériga, vendo seus olhos atirarem contra a paisagem gelada da janela. Ele colocou sua bolsa e a da amiga nos compartimentos de cima, enfim podendo se deitar no banco aconchegante e olhar para o teto.
— Esse continente foi mais louco que o anterior, eu acho… — disse, tentando puxar a conversa e talvez tirá-la daquele transe.
— É, foi — respondeu Alice, de forma seca, batucando os dedos contra o vidro.
— Sim, eu não esperava que você fosse se apaixonar por alguém, sinceramente.
— Eu… não era pra ter acontecido isso. — Ela suspirou, abaixando um pouco de sua postura marrenta. — Não devia ter confiado nele, eu nem sei o que vi naquele sujeito.
— Quanto a isso... — Alexsander colocou as mãos na cabeça como um tipo de travesseiro. — Existe todo tipo de gente por aí, Lohan e Minerva são a prova viva disso. Você não tem culpa, esse tipo de coisa acontece.
— Mesmo com tudo o que ele me causou?
— Mesmo assim. Muito tempo atrás, eu confiei em outras pessoas, confiei que elas fariam o trabalho delas, e isso trouxe o inferno pra minha vida.
A conversa de repente parou. O som das rodas acelerando aumentou, ao ponto que a velocidade da máquina atingiu um estado surreal, mas não afetou Alice, que agora possuía uma expressão tristonha. Ao invés de culpar a si por tamanha idiotice, ela procurou um jeito de jogar fora toda sua revolta, mas não achou. Por que eu ainda quero causar algo de ruim? Esse sentimento parece um espinho, me perfurou e agora só tenho raiva pelo meu descuido.
O brilho da lua entrou no cômodo, iluminando parte do lugar. Alice deitou, sua cabeça doía e por algum motivo estava tudo bagunçado lá dentro. O sono não vinha, os acontecimentos iam e vinham em sua mente, impedindo ela de fechar os olhos.
— Não consegue dormir, né? — perguntou Alexsander, ainda olhando para cima.
— Não, não consigo. Eu ainda tô pensando nisso…
— Que tal conversarmos sobre quando você viveu no templo? O que acha?
— Bem, pode ser. Talvez eu me sinta um pouco melhor.
Ela contou sobre como era viver naquele lugar, resumindo a basicamente: roupas brancas, santidade e muita ideologia religiosa gravada na cabeça. Haviam rituais, celebrações e datas festivas, além de que as mulheres do templo tinham obrigação de ajudar em serviços comunitários nas localidades que estivessem. Nem todas possuíam milagres, só as "damas abençoadas pelas entidades" tinham, assumindo uma posição maior na hierarquia por isso.
Era uma parcela minúscula que podia usar esses poderes divinos, e, mesmo em um cargo maior, os homens de outros templos não respeitavam as mulheres ou viam como iguais. Era chato, os problemas sempre apareciam e os tais abençoados ganhavam deveres que nem mesmo as escrituras da deusa mencionaram.
— E por que você continua lá?
— Eu não continuei, eu fugi. Não era pra uma clériga atuar facilmente como aventureira, mas consegui sair daquela prisão e agora vim parar aqui.
— Não tem medo de te acharem ou de acabar morrendo por ter feito isso?
— Tenho… todo dia tenho. Às vezes durmo pensando se um dia eles vão entrar pela janela e me levarão de volta para punir. Não aguento Bárbara exatamente porque ela é de lá e conseguiu se libertar da prisão deles por conta própria, mas em troca se tornou uma pessoa detestável, enquanto eu ainda dependo de poderes que não sou dona. É frustrante.
— Entendo, e você já pensou em arrumar um jeito de se livrar disso para sempre?
— Nunca achei uma resposta… só fico usando o que tenho de novo e de novo.
— Já que é assim, pode dormir tranquila. — Ele virou a cabeça para o lado, vendo-a com os olhos marejados. — Eu vou proteger você, assim como pretendo fazer com todo o grupo. Assim como vocês também vão.
— Obrigada.
— Não considero o que você fez errado, se aquele lugar te limitava e você se sentia presa a algo, então creio que ter fugido possa ter sido uma boa escolha. Usar seus poderes para o bem ou para alcançar o seu desejo é uma benção para todos. Já imaginou o que aconteceria se você não estivesse ao nosso lado?
Alice ficou um pouco constrangida por aquelas palavras. Eram mais diretas e verdadeiras que as de Flávio, o que fez seu coração palpitar de leve. Alexsander, por mais que parecesse uma muralha de músculos, era sempre daquele jeito com os outros, um grande amigo, uma pessoa que prezava pelo bem dos demais. Raramente falava muito, mas sempre falava a verdade, motivando quem estivesse ao redor.
Sentiu-se na obrigação de retribuir de alguma forma, mas nada veio à mente fora dizer: — Obrigada, Alexsander, de verdade.
Ele deu uma risadinha no meio do escuro, agora tendo certeza de que sua amiga podia pelo menos descansar com menos preocupações após a conversa, e foi isso o que aconteceu.
Cada pessoa dentro do vagão dormiu sem muito pesar, exceto por uma cabine em especial. Lá, havia uma vela acesa e uma mulher tateando a capa grossa de um grimório negro e trocando ocasionais olhares com seu companheiro de quarto.
— Hah, que tédio — falou Barbara, deitada girando um crânio velho entre as mãos.
— Espero que esta coisa esteja limpa. Você pode pegar alguma doença bem ruim, sabia? — indagou Arthur, que continuava sentado a admirar a paisagem.
— Sei, por isso que tenho ele comigo. Ficar doente de vez em quando não é ruim, é completamente natural.
— Doenças são ruins e podem destruir seu corpo por dentro. Podem até te matar.
— E daí? Não é algo natural a se acontecer? Morte é um conceito extremamente simples e que é levado por qualquer coisa viva, não tem como escapar. — Levantou o torso, encarando-o de cima. — Olhe para você, sua perna não funciona. Quantos cachorros aleijados você já viu por aí, sendo que ninguém nunca vai ajudar?
Arthur emudeceu. Ele sabia o que responder, mas por algum motivo sua língua estava presa.
— É pelo exato mesmo motivo pelo qual sua perna não funciona. Talvez dê para dar um jeito, mas isso não importa, o mesmo acontece aos animais e plantas. Eles ganham marcas e cicatrizes de que resistiram a morte uma vez. Mas que ela um dia voltará para pegá-los.
Uma cicatriz, é? Aquelas palavras pregaram no cérebro dele, antes do silêncio e da escuridão consumirem os vagões assim que o trem entrou por um túnel. Estava tudo escuro, tão escuro que não via um palmo de distância, mas por algum motivo ele não conseguia se importar ou sentir medo da falta de luz.
Arthur dormiu tranquilo, mais do que conseguira nas noites anteriores, sentia em algum lugar de seu ser que, no final das contas, conseguiria retornar para casa.
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