Marcas do Poder Brasileira

Autor(a): Tellus


Livro 1

Capítulo 4 (Mary): Joana sabe

 

— O que houve? Não gostou do tempero? — Joana quis saber. Naquela manhã, Mary sentava-se à mesa com ela. — Devia ter perguntado se gosta de pimenta, me perdoe.

E, de novo, Mary perdeu o foco. Puxava um cabo de guerra mental desde o momento em que entrou na cozinha e se deparou com Joana enfeitando a mesa para o café. De um lado da corda estava a Mary disposta a prestar atenção ao assunto, do outro, a que não se importava com nada do que a velha dissesse.

— Seus cabelos estão lindos hoje, Mary. Oh, Mary? Você está bem?

Cabelos lindos? O que ela pretendia?

Sentiu que precisava dizer algo, então disse a coisa mais apropriada que pôde:

— A pimenta pouco me incomodou, mas prefiro evitar comer.

— Querida, você precisa se alimentar. Muitas horas de sono nos fazem sentir fome.

Querida? Isso foi demais.

Afastou o prato para o centro da mesa e se levantou.

— Me poupe de sua falsa amenidade. — Era a primeira vez que confrontava Joana assim. — Odeio elogios falsos.

— Por que não senta e se acalma? — Joana cruzou as pernas e alinhou a postura. — Jamais a obrigaria a nada.

— Não vou comer.

— Sim, foi o que eu disse.

Mary olhou em volta. Achou ter ouvido alguma criança se aproximando. Estava mais apavorada do que devia.

— Sente-se, Mary. Está muito aturdida, não há nada para fazer a não ser conversar. Posso começar, se quiser...

— O que quer de mim? — perguntou sem temer. — Por que arrumou a mesa? Sou eu quem devia fazer isso.

— Faltou-lhe entendimento? Você perdeu o horário, querida. Com sua ausência, eu mesma preparei a mesa. A do café da manhã, do almoço... e agora do café da tarde. E antes que questione, não quis te acordar. Você faz tanto todos os dias. Te dei esse descanso extra. Revigorou as energias, correto?

Mary não sentiu culpa por acordar tarde. Mas sua surpresa ao descobrir isso foi tanta, que precisou voltar a sentar.

— Cadê o Dante? — perguntou.

— Pedi que fosse até a feira buscar um conhecido meu. — Tossiu. — Há muitas folhas no telhado, e somente ele pode cuidar disso. — Voltou a tossir.

Mary ergueu uma sobrancelha. Nunca ouvira Joana tossir antes. A velha estaria doente?

A tosse se prolongou por mais alguns minutos e só parou quando Mary lhe ofereceu um copo de água. Foi estranho Joana ter ficado sem mover um músculo durante a crise.

— Que loucura — disse ela, ainda ofegante. — Esse clima... não está bom.

— É... — Mary pensava se já poderia sair dali. Joana se calou, então a decisão que tomou foi um sim.

— Aonde está indo?

O que essa velha quer?

— Vou subir.

— Espere. — Joana levantou-se devagar. Sua pele estava pálida, talvez estivesse mais branca que a de Mary agora. — Vou precisar de você.

— Preciso limpar o banheiro agora.

— Esqueça, você vai limpar, mas em outro momento.

Mary fez a expressão mais confusa que conseguiu.

— O que quer de mim?

— Deixei um conjunto de roupas em cima do sofá. Quero que dê uma olhada.

— Vi quando desci. Quer que eu lave?

— Quero que experimente, querida.

— Não gosto de bata e vi que a saia é muito longa.

Mary se tornaria uma versão mais jovem de Joana se usasse as peças. Pensar nisso a deixou enjoada.

— Mas o branco combina tanto com você, tenho certeza que ficará linda!

— Eu prefiro...

— Vá logo! — Pela expressão de Joana, o grito saiu mais irritado que o planejado. Mary sabia que o teatro duraria pouco. — Perdão... eu...

— É difícil esconder sua verdadeira natureza, né? — Mal acreditou quando as palavras saíram de sua boca. — Mas comigo você não precisa fingir. Seja a Joana que sempre foi.

Por um momento, Mary achou que ela não responderia. Ficou sorrindo por quase um minuto antes de dizer qualquer coisa, e quando disse...

— Você parece tanto comigo...

Mary correu para a sala antes de Joana terminar a frase. Suas mãos tremiam e ela mal controlava a respiração.

Desgraçada! Que velha desgraçada! dizia a si mesma. Nojenta! Imunda! Ela é tudo de ruim! É tudo de ruim! Odeio ela! Odeio ela!

Foi só depois de alguns minutos jogando seu ódio em Joana que a garota percebeu o que fazia: Estava segurando as roupas? Por quê? Obedecer a velha estava entre os planos? Amarrotou o conjunto e o jogou com força contra a parede. Berrava como uma cabra quando as roupas se espalharam pela sala.

Emanava um ódio nunca sentido antes. Sabia que estava surtando. Poderia se acalmar se quisesse, confiava nisso. Mas para quê? Aguentou Joana durante um mês. Reprimiu suas emoções durante um mês. Não pararia agora.

Notou que Joana a assistia e foi correndo catar o conjunto. Não fez isso por medo, nem por arrependimento. Queria apenas a encarar no fundo de seus olhos antes de destroçar a bata em sua frente.

Teria feito o mesmo com a saia se o tapa que levou não a tivesse desconfigurado por inteiro. Tocou devagar na marca avermelhada em sua bochecha e conseguiu até imaginar o desenho perfeito da palma de Joana nela. Segurou o chorou e não revidou. Joana sumiu tão rápido de sua frente que Mary nem saberia dizer para qual direção ela foi.

Mal acreditava, mas o tapa amenizou seu ódio. Não por completo, Mary até duvidava que isso fosse possível, mas o suficiente para voltar a raciocinar como alguém normal.

Então, seguindo o raciocínio de alguém normal, o próximo e mais adequado passo seria sair da casa e esperar que o irmão chegasse. Ele era ele — homem —, dois anos mais velho, mais forte e poderia dar um jeito na situação.

A situação de guerra que se encontrava na relação das duas únicas mulheres da casa. Sim, mesmo com seus quatorze anos, Mary já se considerava uma mulher.

Uma mulher que nunca consegue tomar decisões óbvias. Decisões tão óbvias que acabam não sendo tão óbvias assim. Antes de seguir o passo adequado, Mary optou por fazer o arriscado.

Subiu as escadas. Um pensamento, talvez infortúnio, sugeriu que ela conferisse o bem-estar das crianças. Uma preocupação genuína, mas feita na hora certa? Ela confiava que sim...

A pena foi ter sido em vão. Bateu repetidas vezes nas portas de todos os quartos, gritou, chamou nome a nome, chutou e socou, mas ficou sem resposta. Quando fechadas, as portas abririam somente do lado de dentro. Era esperar que as crianças respondessem, ou... pegar a chave mestra da casa. Devia estar em algum dos vários bolsos da calça horrorosa de Joana.

— Mary! — Joana... O que ela quer? Talvez pouco importasse, mas seu chamado foi intrigante.

Obviamente não respondeu.

— Desça até aqui — Joana voltou a chamar. — Tem alguém louca para vê-la.

Tudo bem, isso chamou a atenção de Mary. Caminhou o suficiente para poder ver a sala do topo da escada, mas sem ficar visível para Joana. Onde estava? Não conseguia ver ninguém. Quem sabe se descesse alguns degraus. Sim. Era isso. Desceu dois degraus. E desta vez conseguiu ver: Aurora.

Estava cabisbaixa e mal mantinha os olhos abertos. Sua pele pálida como a de Joana. Olhando de cima, Mary poderia jurar que ambas eram fantasmas. Um pressentimento ruim a abordou.

Desceu o restante dos degraus com cautela.

— Tá machucando ela — disse, quando viu que Joana apertava os ombros da criança. — Solta agora!

— Estou? — Aumentou a força do aperto. Suas unhas quase furavam a bata que a criança usava. — Ela aguenta. É uma menina forte. Você a fez forte.

— Ela sempre foi. — Sorriu de canto. Sentiu que precisava passar confiança para a criança.

— Se é o que acha... — Soltou as mãos dos ombros de Aurora. — Mas chega disso. Estamos de partida. Se despeça de Mary, querida.

A criança nada disse. Parecia entalada.

— Há algo errado — disse Mary, preocupada. — O que fez com ela?

Joana ignorou a acusação.

— Aurora, se despeça de Mary. Não a verá mais depois. — Sorriu de canto.

— Você não... — Colocou a mão sobre a boca quando compreendeu que o destino de Aurora batia à porta. Seus olhos lacrimejavam e precisou mais uma vez fazer força para impedir que as lágrimas jorrassem.

Joana falou, caminhou e alcançou a maçaneta da porta. E de novo, Mary ficou sem reação.

Não conseguiria se virar para ver a porta abrindo.

Não conseguiria se virar para ver Aurora indo embora...

Mas, mesmo que Joana dissesse que não... Mary provava que sim.

— Você queria que eu fosse junto — disse, com a voz de alguém que nada teme. Suas costas viradas para as de Joana. — Queria que eu estivesse junto quando Aurora fosse entregue a algum rato idealista. Assim me veria impotente de novo...

Virou-se. A porta estava aberta, mas Joana não se moveu.

— Saiba que falhou nisso e também falhará em levar Aurora daqui! Ela vai ter o direito de escolher seu próprio destino! Solta ela agora!

Joana somente suspirou. Parecia nada preocupada.

— O céu está escuro hoje — disse a mulher. A fala carregada de morosidade. — Estranho isso... Onde está o cheiro de chuva? Há algo errado...

Joana soltou a mão de Aurora. Não pareceu ser voluntário, mas Mary conseguiu o que queria. Se aproximou da criança e a puxou para perto. Estava muito gelada. As veias de pescoço pulsavam e a falta de coloração de sua pele destacava a cor escura delas. Era como um rastro de tinta preta em um chão coberto de neve.

— Deite no chão, amor — Mary mal raciocinava quando pediu. — Isso. Cuidado. Vou pegar um copo de água. Espere... Aurora!

A tosse veio primeiro, daquelas que só de ouvir o som é possível perceber que vem rasgando. Em seguida, os respingos. No chão, no sofá, na mão, no rosto de Mary... E, mesmo com esforço, Aurora não foi capaz de segurar o que veio depois. Sua última tosse liberou tudo que a entalava.

Mary se apavorou. O que era aquilo? Tão escuro. Tão preto. Não podia ser um vômito comum. Sabia que não era.

Isso é... isso é sangue, concluiu em desespero.

Pensou no que fazer, mas nada vinha a mente. Só queria o irmão...

Teve um alívio momentâneo quando Aurora encostou a cabeça em seu ombro, parando de vomitar. Deixou que ela ficasse assim por alguns minutos. Durante esse tempo, evitou encarar a grande poça de sangue à sua frente. O fato dele não ser vermelho pouco amenizava a situação. A verdade é que podia ser até pior, se pensasse muito.

Decidiu se levantar antes que Aurora vomitasse novamente. Correu para a cozinha à procura de um balde, e achou um embaixo da pia, com alguns panos de limpar o chão jogados ao lado. Era o combo que precisava. Encheu um copo de água e voltou para a sala. Tudo isso sem perder a atenção em Aurora. Ou, pelo menos, achou não ter perdido, porque, num piscar de olhos, viu Aurora ser arrastada por Joana até a porta. A velha agarrava os pés da criança como se fosse sua presa. Sedenta igual a um animal.

— Aurora! — Mary berrou. — Larga ela! Larga ela, Joana! — Soltou o copo, que espatifou no chão, espalhando toda a água, e arremessou o balde na cara da mulher. Os pés de Aurora foram livres, mas Joana ainda estava determinada a levá-la.

— Ela é minha! Aurora é minha! — a velha gritou para Mary, descontrolada.

Mesmo tremendo, Mary não hesitou em puxar Aurora para perto. Suas costas mergulharam no sangue da poça, deixando para trás um rastro. A criança parecia desmaiada. Que estado, pensou, perguntando-se se conseguiria parar Joana. Eu consigo! Eu vou!

A mulher vinha em sua direção: mais alta, mais fina, mais assustadora. Tentou puxar Mary pelo braço, mas a garota reagiu acertando um soco em seu rosto. O sangue que escorreu de seu nariz era preto como o de Aurora.

Assim, Mary percebeu que as veias de Joana também pulsavam. Que seu cabelo, antes metade grisalho, agora estava totalmente preto. Que suas unhas estavam compridas e afiadas e que a íris de seus olhos tinham sido dominadas pela pupila.

Olhou de relance para Aurora e viu que seus cabelos também haviam escurecido. O que tá acontecendo?

— Preste atenção à sua frente, garota! — Joana avisou, enquanto agarrava os cabelos dela. Fios e fios caíam no chão conforme a força da puxada aumentava. A velha parecia estar mais forte, mesmo com a aparência debilitada. Mary não conseguia reagir.

— Me solta! — gritava sem parar. — Me solta, sua velha! Me solta!

Joana a jogou contra a parede, ainda segurando seus cabelos com força.

— Você escolheu me desafiar, garota — sussurrou em seu ouvido. — Uma menina tão forte... Foi uma grata surpresa em minha vida. Seria difícil para mim perdê-la também, então peço que... peço que aguente as consequências.

Foram poucas vezes. Não soube quantas, por que ao se ter a cabeça batida na parede, fica fácil desaprender a contar. Mas Mary estava bem. Sua cabeça sangrava, mas estava bem. Quase perdia a consciência, mas estava tudo bem.

Após ser chutada porta afora, a garota decidiu seguir o adequado. Rastejou pelo jardim de lírios, arrancando alguns deles com seu movimento. A essa altura, a fúria de Joana pelas flores secas pouco importava. Não olhou para trás, mal enxergava. Sua visão estava turva, mas sabia que a mulher a seguia.

— Mary, volte para dentro. Me precipitei em jogá-la aqui. Me perdoe...

A garota continuou rastejando, sem dar ouvidos. Estava quase alcançando o portão.

— Mary... Perdeu a audição? Pare de fingir! Volte agora para dentro! Já perdi grande tempo com você. Preciso levar Aurora, ela tem de ser entregue!

Mary alcançou o portão e, apoiando-se nele, conseguiu levantar. Apesar da visão embaçada, viu que Joana a encarava. Estava parada no centro do quintal e segurava algo reluzente em sua mão. A possibilidade de ser uma arma a fez se apressar.

Usou seu tato para achar a maçaneta.

Vai... vai lá.

Puxou.

— Hm, parece que o portão está trancado — disse Joana. Sua voz indo do agudo ao grave. — Isso é novidade. — Gargalhou.

Mary estava sem mais saídas. Pensou em gritar por ajuda, mas sabia que ninguém a ouviria seria ouvida. Seu plano? Não tinha um. Se o portão abrisse, apenas correria. Iria até Dante. O acharia. Ele salvaria Aurora e as crianças. Ele tinha um plano. Ele...

— Não vem. Seu irmão não vem. — falou Joana. — Era um garoto bom. Forte igual a você. Ele, assim como a maioria, preferiu se cegar ao enxergar o que o aguardava. Estava preso... você deve conseguir imaginar aonde. Então, eu o guiei. O guiei para seu destino. — Deu um passo à frente. — A conexão entre vocês é muito poderosa, mas para os dois conseguirem atingir seus potenciais máximos, foi preciso cortá-la. O destino de vocês é separado, Mary. E agora você deve aceitar a cura.

A garota nada disse. Ocupava-se em olhar para o jardim de lírios mortos. De alguma forma, conseguiam atrair sua visão. Ela olhava cada flor, cada canto, cada... O rifle!, arregalou os olhos quando viu. Continuava ali? Por quê? Mal acreditava. Era a chance que tinha de derrubar Joana e, mesmo que o disparo não funcionasse, poderia usá-lo de outras formas. Só tinha de ser rápida. Rápida e forte.

— Mary? — A mulher deu mais um passo à frente.

Precisava agir logo. Esperou o primeiro piscar de Joana e correu para a arma. Foi rápida, como disse que seria, mas faltou força para erguê-la. Não lembrava de ser tão pesada antes. Levanta, levanta, levanta. Conseguiu tirá-la do chão com muito esforço, o peso parecia estar diminuindo.

— Mary! — A mulher vinha em sua direção, estava tão deformada que não foi capaz de encará-la por mais de alguns segundos. Seus olhos tremiam e sua coluna tinha duplicado de tamanho.

Era a hora de atacar. Se falhasse em golpeá-la, seria o fim de tudo.

Ergueu o rifle à altura da cabeça e atacou o usando como bastão. Acertou o cadavérico rosto da mulher, sangue preto escorreu de sua bochecha — a consistência lembrando uma geleia. Joana recuou por um segundo, dando brecha para mais um golpe, mas esse não acertou. Mary descobria com a dor que o objeto reluzente nas mãos da mulher era uma tesoura.

O pulso furado a impediu de continuar segurando o rifle. Sem defesa, os ataques de Joana eram fáceis, e poucos deles já foram suficientes para fazê-la cair novamente sobre os lírios.

A mulher, longe de parecer uma, sentava-se sobre seu corpo, apontando a tesoura para o seu pescoço. Pressionou um pouco e foi subindo: passou pelo queixo, depois os lábios, depois da ponta do nariz ao começo da testa. Chegando ao cabelo, abriu a tesoura, segurou alguns fios e a fechou. Mary fez força para tirá-la de cima, gritou e esperneou. Tudo em vão. Estava nas mãos dela agora. Sofreria o que tivesse que sofrer e não conteria as lágrimas desta vez.

Encarava o rifle, frustrada por não conseguir causar mais danos. Fui tão fraca, pensou. Tão fraca...

Joana virou um monstro. Ela sempre fora um, mas agora era diferente. Estava assumida. Conformada de ser má. Talvez louca, sim. Mas nunca boa. Nunca.

 E Aurora? Se perguntava sobre qual das duas teria o pior destino. Será que ainda estava viva? As outras crianças ainda estavam vivas? E Dante? Ainda estava? Pensar sobre eles a deprimiu ainda mais.

Não estava pronta para despedidas. Sentia que ia morrer, mas, ao mesmo tempo, não. E se tentasse... Talvez se tentasse...

Estendeu o braço machucado em direção ao rifle. Algo a dizia que seu disparo funcionaria desta vez. Só precisava de uma chance. Sua última chance. Venha, mentalizou. Venha até mim. Abriu a mão, esperando que o rifle chegasse até ela. Como se fosse mágica. Igual a ele.

Por sua vontade, por bênção ou por pacto, o rifle veio até sua mão. O pulso furado não a impediu de atacar agora. Bateu com o cabo em cheio no queixo de Joana, fazendo-a tombar para trás.

Hora do disparo.

As linhas pretas do rifle agora brilhavam em branco. Um click soou. O disparo viria dos três canos?

Antes de atirar, Mary contestou:

— Decorativa, né?

Os disparos atingiram Joana em três lugares. Peito, ombro e pescoço. Estava morta.

 

M

 

Aurora não estava mais no chão da sala e a poça de sangue preto se arrastava até a cozinha. Mary temia várias coisas no momento: uma delas era entrar lá. Tudo que existia na casa era morbidez e um silêncio sepulcral.

Fixava o olhar no canto do teto, na tentativa de desviar a atenção da poça. Das roupas rasgadas, jogadas no chão. Do buraco feito na parede de madeira. Da escada... Precisava poupar sua sanidade.

Mas também precisava tomar uma decisão. Ficar parada não mudaria as coisas. Caminhou devagar até a porta da cozinha. Temeu entra com tudo. Algo a alertava para sair da casa. Poupar sanidade. Não há motivo em ver o que não precisa ser visto. Mas era tarde. Ela viu...

Aurora, a faca e seu pescoço furado.

 

M

 

Saiu para o quintal com o rifle em mãos. As lágrimas saltando de seus olhos não a atrapalharam quando atirou contra o portão. Queria sentar e chorar, mas, ao invés disso, berrava.

Socorro! Dante! Dante! eram suas súplicas. Queria paz, mas seu tormento nunca foi tão grande. Queria o irmão, mas duvidava que estivesse vivo. E se estivesse? Seria ele?

Havia poucas casas na rua. Talvez doze fosse o máximo. Oito se contasse somente com as habitadas. Nem uma com algum morador disposto a ajudá-la. Ali funcionava assim: eu cuido dos meus problemas e você dos seus.

Mas... que pensamento limitado. Se Dante corria o risco de não ser mais ele, o que impedia de seus vizinhos também estarem em perigo? Perceber isso a fez chorar ainda mais. Se fosse assim, todo o reino estaria sendo condenado. Por algo. Por alguém. Jamais saberia.

E por que não ela? Seria a única imune? Seria realmente imune? E se fosse, Dante também seria? Torceu para os dois últimos pensamentos serem reais. Se ela e o irmão estivessem bem, o resto nada importava. Não ligava em ser egoísta.

Queria correr dali. Deixar para sempre esse ambiente de dias mal vividos. Mas estava difícil. Era como se algo a segurasse, soprando sons quase inaudíveis em seu ouvido.

Fique aqui. Fique... Quem sabe fosse um espírito. Talvez o de Joana, negando seu fracasso. Talvez o de Aurora, tentando mostrar algo. Ou talvez só estivesse louca. Cada opção era válida, e Mary começava a acreditar em todas elas.

Encarava a janela do vizinho com atenção. Sabia que poderia estar maluca, mas ver quatro vultos seguidos em um tempo tão curto foi um alerta que não podia deixar passar. Viu de novo. Desta vez com mais clareza. Era a gata do velho Jenion, tão estranho quanto o seu nome.

A gata era idosa. Passava metade do dia deitada na janela do quarto e a outra metade na da sala. Havia algo errado com tanto movimento.

De repente, parou de ver os vultos. O velho e a gata estavam bem. Ouviram seus gritos, sim, mas ignorar sempre seria mais fácil. Com isso, ao menos recebia o veredito de loucura. Se não fosse por achar que todos no reino viraram monstros, seria por pensar que uma gata a ajudaria.

Sem dar aviso, a palma de uma mão apareceu na janela. Mary tremeu. Com mais pavor agora. O pior foi não ser pelo susto, mas pela resposta que a palma entregou. A cabeça do velho aparecia devagar em sua visão. A cada segundo, mais horripilante a cena ficava. Ele a encarou, sorriu e encostou o seu rosto no vidro. Seus olhos como os de Joana. Sua palma suja de preto. Uma cauda pendendo da boca. Somente a cauda.

Alucinação ou não? Pouco importava. Correu de lá, ignorando a voz que ouvia.

Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para. Para.

Soltou a voz em seu mais alto grito:

— Danteeeeeeee!

Quando ouviu a resposta era tarde.

— Mary! Corre daí! Corre!

Ele chorava como ela. Parecia estar com medo como ela. Mas, diferente dela, ele sabia o que ia acontecer.

E, antes da explosão varrer tudo, ela viu no céu alguém de preto.



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