Livro 1
Capítulo 5 (Mary): Quando as crianças gritam
Mary pôde sentir o cheiro de morte infestado no ar saindo dos escombros. Demorou a perceber onde estava. Tudo à sua volta mudou tão rápido, que só conseguiu pensar na possibilidade de alguém tê-la teletransportado. Não sabia como seria o fim do mundo, mas a paisagem que se estendia à sua frente poderia servir de exemplo.
Estava difícil se localizar. A explosão a fez voar e rolar por um tempo, antes de ser consumida por terra, areia e pedaços de casas. Agora, em pé sobre telhas quebradas, ela se concentrava em lutar contra o desespero. Precisava achar o irmão. Se ela tinha sobrevivido à explosão, Dante também teria.
Seu corpo inteiro tremia: frio, medo, talvez a mistura dos dois, teve dificuldade em dizer. Tremia e isso a incomodava. Teve até a suspeita de estar chamando a atenção de algo com tanta tremedeira. Nada viu, nada ouviu, mas aprendeu que ser neurótica nessas situações era essencial.
Quis gritar pelo irmão. Estava cansada de vagar no escuro, sem perspectiva de encontrá-lo. Um grito poderia resolver a situação... ou piorá-la. Não tinha ideia se chamaria a atenção de algo, era perigoso arriscar. Cortaria os pulsos se tivesse que enfrentar outra aberração como Joana.
Sentou para descansar os pés e a mente. Pouco andou desde que recobrara a consciência, mas com tanta destruição em volta, era difícil ir muito longe...
Após um tempo, sentiu a cortina de poeira diminuir. Apesar da visão ter melhorado, seus olhos ainda ardiam. Estava em uma situação complicada: ou deixava os olhos entreabertos e aguentava a poeira, ou os fechava e ficava ainda mais vulnerável. No fim, decidiu por mantê-los entreabertos. Desta forma, o risco de morte seria menor.
De repente, a paisagem mudou de novo. Desta vez menos destruída e mais acolhedora. O céu, pintado de laranja, aumentou a simpatia de Mary por nuvens. E o grande campo verde a fez querer correr.
Pouco entendeu o que sentia, mas gostou. Correu pelo campo. Liso, sem pedras ou raízes que a fariam tropeçar e cair. Estava cansada de cair.
Chegando ao precipício no fim do campo, viu o azul. Ele batia e voltava em várias rochas lá embaixo. Sua beleza a encantou. Queria pular e ser levada pelas ondas, mas também queria voar tocando as nuvens. Os dois eram possíveis, só precisava escolher um.
A paisagem mudou de novo depois. As nuvens do céu fecharam. Pareciam irritadas com algo, estavam desbotadas, quase pretas. As ondas ficaram maiores a cada volta que faziam, e a água que respingava em Mary era densa, quente e escura.
O campo secou e a vontade de correr por ele deixou de existir. Esperava para ver o que a consumiria primeiro. Torceu para serem as luzes coloridas que brilhavam em uma parte do céu. E, se assim fosse, seria salva de novo por uma aurora.
Voltou suada, trêmula e com poeira acumulada nas pálpebras, para o real pesadelo. Sentiu raiva de si mesma. Como pode ter dormido ao ponto de chegar a sonhar? Que ato irresponsável. E se algo a atacasse? E se algo...
Se assustou com a imagem à sua frente.
Parecia uma pilha de vigas entrelaçadas, mas não poderia. Mary viu se mexer. Juraria pela vida de Dante que viu. A visão embaçada a impediu de focar, então, chegou mais perto: o suposto entrelaçado de vigas moveu-se para a direita, e mais para a direita.
Estava perto dela. Quase a encostava. Travou sua posição; o coração batendo a mil. Encará-la aumentaria seus arrepios, então evitou olhar para o lado. Não era humano. Disso sabia. Só não sabia como sobreviveria se isso resolvesse atacá-la.
Perdera sua única forma de defesa: quando a explosão chegou, o rifle voo longe.
Sentiu um movimento devagar em sua direção, então procurou por algo pontudo ao redor. Qualquer tamanho de viga serviria, mas somente pedras chegavam a sua visão. A maior estava perto dela; um ou dois passos seriam o bastante para alcançá-la.
Evitou pensar muito, apenas agiu. Um. Dois. Pedra em mãos. A criatura correu para atacar no mesmo instante, e Mary colocou-se em posição. Seu corpo dolorido por pouco a impediu de erguer o braço. Acerte a cabeça e fuja. Acerte a cabeça e fuja. Era seu plano, mas... Que cabeça iria acertar?
Tudo que viu foi uma grande boca aberta, o rosto do monstro rasgado, e dentes tão afiados quanto a ponta de uma faca. Ser mordida por aquilo poderia arrancar metade do seu corpo. Que dano uma pedrinha faria? Deveria ter cortado os pulsos antes...
Então, ouviu os escombros desabando atrás de si e logo depois o som de um disparo. Sangue preto manchou seu rosto e a aberração caiu sobre seus pés, morta. Não eram os escombros que desabavam, alguém os fazia desabar: era seu irmão — seu salvador. Dante. Vivo e inteiro.
Correu para ele como se estivesse sem o ver há tempos. Chorou igual um bebê quando o abraçou. Seu toque era acolhedor, e ela precisava disso. Os dois precisavam.
O irmão apertava suas costas, e ela as dele. Sem palavras, apenas soluços de alivio. Sua sanidade sendo recuperada com um abraço.
— Foi muito perto — o irmão disse. A voz carregada de angústia. — Achei que não daria tempo. Achei que você fosse morrer...
Mary mal tinha voz para responder, mas se esforçou pelo irmão.
— Obrigada... — Se segurava para evitar chorar demais. — Também achei que fosse morrer.
— Não precisava me agradecer. A sorte foi eu ter achado isso brilhando debaixo da terra. — Mostrou o rifle, com as linhas ainda brilhando em branco. — Pensei que fosse decorativa.
— É, eu também...
Limpou as lágrimas que escorriam por seu rosto.
— Essa é da Joana. — A espada... — Pegue.
— Onde achou isso? — perguntou, perplexa. O irmão estar com duas armas era no mínimo extraordinário.
— Já estava comigo. — Ofereceu mais uma vez. — Precisamos sair daqui.
— Por quê? — quis saber. — Onde estava antes da explosão?
Percebeu que ele evitava encará-la.
— Falamos disso depois. Há muita coisa para conversar.
Mary sentia-se atordoada demais para insistir, então se conformou.
— Pode ficar com o rifle se preferir — sugeriu Dante.
Ela fitou a lâmina, aflita. Sua força para continuar lutando quase se esgotava, mas sabia precisava ser o apoio do irmão.
— Não, sua mira é melhor. — Pegou no cabo da arma. — Eu fico com a espada.
— É melhor sairmos daqui logo. Te ajudo a escalar aquelas pedras. — Apontou para uma colina de destroços. — Vai na frente.
— Dante... — desalento se fundia a sua voz. — O que tá acontecendo? Cadê todo mundo?
O irmão a olhou, abriu a boca para dizer algo e, então, colocou-se em posição atenta.
— São hakans — sussurrou ele.
Mary deu meia olhada em volta e avistou.
— Prepara pra atirar.
— Onde?
— À direita de onde você veio. Bem em cima. Tem outro por ali.
Destroços cercavam os dois, formando uma espécie de anfiteatro. Ali, Mary lembrava das extintas arenas de batalha idealista. Fossem grandes, ou pequenas, nelas os selecionados precisavam provar para a plateia que estavam aptos a se tornarem idealistas formados. Lutando e, na maioria das vezes matando, suspeitos de serem marcados — pessoas que carregam a maldição de serem... diferentes. O trabalho de um idealista é acabar com eles e seus derivados.
O espetáculo na arena era realizado para lembrar ao povo do reino que eles estariam seguros se tomassem a fé idealista para si. Uma grande bobagem, claro. Por que ter fé em algo protegeria as pessoas? Mary era muito nova para lembrar de todos os detalhes do espetáculo, o que sabia era um senso comum que todos precisavam saber. Não comentar, saber.
— Cole suas costas nas minhas — pediu Dante. — Ele pode vir de qualquer lugar. Se tiver mais de dois, corremos na hora. Vá na direção que apontei.
Mary concordou e ficou alerta. Sua tremedeira havia parado.
Pedrinhas caíram de uma parte dos destroços e ela soube que algo viria de lá.
— Dante! No ar!
A criatura saltou das pedras mirando pousar as garras na cabeça do irmão. Mary saiu da posição para tentar perfurar seu estômago, mas Dante atirou primeiro. Saíram dois disparos dessa vez. Um passou longe. O outro acertou e explodiu a perna esquerda do monstro, fazendo-o cair no outro lado da arena.
Em poucos segundos ele se ergueu, encarou os irmãos e emitiu um som temeroso. Era assustador por lembrar um grito humano, mas havia algo mais: o som causava dor.
O grito aumentava de intensidade a cada segundo em que os irmãos permaneciam parados. A dor era excruciante, e recordava Mary imagens que ela tanta lutava para esquecer. Para, por favor, suplicou. Por favor...
O rugido continuou, mas Mary conseguiu recuar com a ajuda do irmão. Sem virar as costas para o monstro, sem movimentos rápidos. Encostaram nos destroços e ela começou a escalar.
Quando chegou ao topo, foi a vez de Dante.
— Segure — pediu estendendo o rifle para ela.
O brilho havia sumido, talvez tivesse deixado de funcionar, mas a precaução de mantê-lo por perto era honesta.
Com ambos no topo, Mary entendeu o que tinha perdido na época dos espetáculos: era triste e digno de piedade, e mesmo que essas coisas estivessem ali para matá-los, ela pediu para o irmão:
— Atire.
O irmão mirou, a luz voltou ao rifle e as imagens na sua cabeça foram embora com o grito do hakan.
M
Seguiram o caminho possível de se seguir e chegaram à conclusão de que não sairiam de lá vivos. A conclusão partiu mais de Mary. Após achar o irmão, passou a aceitar a morte mais fácil. Talvez até torcer para ela chegar.
Estava difícil manter a cabeça no lugar, sabia que esses pensamentos nunca fariam parte de sua verdadeira vontade, mas eles eram quase involuntários.
Seu foco partiu para Dante quando ele perguntou:
— Quer conversar? Não precisamos fazer tanto silêncio.
Gostou da ideia do irmão. Sua voz ainda estava ruim, mas pouco se importou.
— Quer falar sobre o quê?
— Algo alegre de preferência. Há muita morbidez por aqui.
— Tenho uma pergunta em mente.
— Pode fazer.
Quase inventou outra coisa antes de perguntar o que queria.
— Qual era o seu plano? Lembrei disso do nada, e tá difícil tirar da cabeça.
Dante a encarou, desorientado, lerdo, burro... Por pouco Mary fugiu da raiva. Especificou antes que ele perguntasse:
— Seu plano pra hoje! O recado que deixou com Aurora. Fiquei sem entender. Aquela casa deixava tudo tão confuso...
— Do que tá falando? Que plano é esse? — Dante coçou a cabeça. — Não dei recado à Aurora. Ela devia estar brincando com você.
— O quê? Aurora estava séria. Não era brincadeira.
Não era…
— Por quê? — murmurou encarando o nada.
A compreensão se recusava em chegar até ela, mas outra coisa chegou: pavor.
Mary avistou o portão laranja de Joana amassado entre pedras à sua frente. Nem mesmo uma explosão conseguiu quebrar a ligação que tinha com a casa. Se perguntava o que precisaria fazer para isso.
Tentou correr, mas Dante segurou seu braço antes de completar dois passos.
— Mary... — Ele balançou a cabeça. Desânimo acompanhava todas as suas expressões. — Precisamos fazer isso.
Mary se recusou a concordar.
— Olhe pra mim. — O irmão segurou sua cabeça. Choro entalava sua garganta. — Fique perto de mim quando eles aparecerem. Se não conseguir atacá-los deixe comigo, mas fique perto de mim! Feche os olhos se precisar. — Beijou sua testa. — Eu te amo.
Dante apertou o rifle e caminhou um pouco à frente.
Mary quase fechava os olhos quando o primeiro apareceu — A primeira. Sempre ela. Aurora, agora sem seu brilho.
O rifle tremia nas mãos do irmão. Seria medo? Parecia tão fácil apertar o gatilho, mas Dante continuava hesitante. Não era Aurora à sua frente, então por que tanto receio? Por que tanto receio?
Caminhou até o ele e bastou apoiar a mão em seu ombro para a tremedeira cessar, e o primeiro disparo sair.
O receio deu lugar à fúria. Ao ódio. Estavam prontos.
Aurora desviou, e deu início ao seu grito avassalador, mas Dante continuou a atirar. Os outros chegaram com seu chamado pouco depois: Lucy e Ramos à esquerda, Eric e Opal à direita. Carlos chegava por trás e Pam simplesmente apareceu do lado de Aurora. Lorte não veio, pois já estava em outro lugar...
Todos somando ao coral. Todos com o mesmo alvo.
Mary apertou firme o cabo da espada e a ergueu. Antes de atacar, ela sussurrou:
— Agora.
O primeiro ataque veio de Carlos. Avançou direção as costas do irmão, e o feriu com suas garras. Dante levou três profundos arranhões, mas conseguiu fazê-lo recuar com um disparo.
Mary finalizou Carlos antes que fugisse de seu alcance. Correu, apontou a espada em sua cabeça, e a espetou. A lâmina ficou gosmenta e escura, mas agora tinham uma ameaça a menos para se preocupar.
Dante eliminou Opal e Ramos após ambos entrarem em sua linha de ataque. O rifle soltou dois disparos que combinaram de acertar suas cabeças. O sangue preto começava a se espalhar pelo chão, e seus respingos maculavam ainda mais os rostos dos irmãos.
O brilho do rifle diminuía a cada disparo, fazendo Mary se ansiar de que talvez ele parasse de funcionar a qualquer momento. Tomou isso como um sinal para finalizar a luta de vez.
Desviava dos ataques de Eric e Pam, enquanto Dante tentava pela terceira vez acertar um tiro em Lucy. As criaturas pareciam ter vigor infinito, e uma velocidade acumulativa. Quanto mais dano recebiam, mais ágeis se tornavam. Talvez fosse apenas uma impressão de Mary. Estava cansada, mal raciocinava. Mas começava a enxergar vultos nos movimentos das criaturas.
Tentava se manter concentrada quando viu o irmão cair, e ser mordido na perna por Lucy. Ele levantou rapidamente, parecia bem, mas temeu por seus ferimentos. Sangue preto e vermelho se misturavam em sua pele, tornando difícil saber o quão grave os cortes eram.
Pensou em ir ajudá-lo, mas lembrou que também lutava. A morte viria fácil se dividisse o foco. Os golpes quase fatais que levou a alertaram disso: Eric a arranhou abaixo do peito e, com uma investida de Pam, ela caiu sobre um pedaço de viga. Conseguiu salvar suas costas de serem perfuradas, mas foi inevitável ganhar um corte no flanco.
Levantou por pouco e cortou a garganta de Eric em um ataque rápido. Golpeou seu pescoço repetidas vezes até notar a cabeça ceder e, quando somente um fio de carne restou, esperou a cabeça tombar para trás.
Os ataques da espada se mostravam perfeitos para enfrenta-los. Sem dúvidas, essa também devia ser uma arma idealista, pensou, enquanto perfurava o estômago de Pam. Quase teve sua orelha arrancada, mas, ao menos, eliminava mais uma do jogo.
Pam caiu à sua frente ao tempo em que Dante também acabava com Lucy — um disparo na testa derrubava qualquer monstro.
Agora restava somente Aurora.
Ela não se moveu desde o início da luta. Talvez apenas observar fizesse parte de sua estratégia. Talvez ainda estivesse consciente. Talvez ainda fosse Aurora...
Mary renegou qualquer motivo. No fim, sua eliminação era iminente. Precisava ser.
O irmão ainda levantava do chão, então agiu sozinha. Correu em direção à Aurora, evitando desviar o olhar de seu rosto. Da cabeça. Pretendia acabar com ela em um único ataque.
Aurora não se moveu quando a ponta da espada encostou em sua testa, e também não se moveu quando Mary desabou diante dela.
Sentiu-se fraca por falhar, mas como poderia? Aurora estava ali. Era ela. Quis abraçá-la, apertá-la e girá-la em seus braços. Quis tê-la...
Sucumbiu em lágrimas. Olhá-la tornava-se impossível, então lembrou da sugestão do irmão e escureceu sua visão.
Mesmo que os olhos estivessem fechados, as lágrimas ainda escorriam e ela ainda ouvia: sua respiração descontrolada, os grunhidos de Aurora e passos que ela imaginou serem do irmão. Ouviu um soluço, um click e uma palavra de sua própria boca: Maria.
Ouviu abafado o som do último disparo quando tapou os ouvidos.