Marcas do Poder Brasileira

Autor(a): Tellus


Livro 1

Capítulo 3 (Mary): Agora

 

Em três semanas de convívio com Joana, Mary mal reconhecia a si própria. Olhava seu reflexo em vários dos espelhos espalhados pela casa e não conseguia achar a Mary que tanto admirava. A pouca quantidade de banhos por semana mostrava ser um mal maior que o esperado.

Seu antigo cabelo — definitivamente estava fora de seu ápice —, era a parte que mais gostava em si. Mary era toda bonita, mas aprendeu de um jeito azedo que sem seus fios claros e reluzentes na cabeça, podia dar adeus aos frequentes elogios que recebia.

E, apesar das crianças — as oito crianças —, não terem se tornado um fardo como havia imaginado, crianças são crianças, e com um número tão alto... bom, a garota sabia o que passava.

Mas, se um cabelo sujo ou a ausência de elogios fossem o principal motivo de seu aborrecimento, Mary aceitaria que a chamassem de fútil. Seu desgosto era mais denso que isso. Joana, claro, causava a maior parte dele.

Eram tanto as ofensas diárias, quanto os afazeres sem fim. Após a primeira semana, passou a suspeitar de que Joana sujava propositalmente as áreas já limpas da casa, apenas para ela ter que limpar de novo. E ficar mais cansada, e mais ausente... No fim, a suspeita ficou na suspeita e, com isso, a velha ganhava motivo, razão e causa para jogar suas ofensas nela.

E seu irmão...

Para ele devia ser tão mais fácil. Tinha suas tarefas, sim, algumas delas até mais cansativas que as da irmã. Mas nunca, jamais, Dante poderia dizer que seu tormento era maior. A preferência estava com ele. Assim como sempre esteve.

Ter parado de correr quando ouviu seu chamado havia sido uma boa decisão? Repetia essa pergunta dia após dia, e a primeira resposta sempre era um não. Acreditava fielmente que conseguiria ficar longe do irmão. Viver sem ele... Que piada. A segunda resposta chegava nesse momento e mostrava a realidade para Mary.

— E aí, como você tá? — Era a pergunta que Dante fazia sempre que a via pela manhã.

E, só pela manhã, ela respondia:

— Bem, e você?

Como podia? Estavam sob o mesmo teto, se viam todos os dias, e ainda assim... a saudade estava lá.

Em outra conversa, longe dos ouvidos de Joana, Mary decidiu questioná-lo.

— Pode me dizer até quando vamos ficar aqui?

— Já respondi essa pergunta algumas vezes, Mary.

— E até agora não ficou claro pra mim.

— Até o necessário.

— Merda de necessário! — choramingou. — Vamos embora daqui! Por favor!

— Eu juro que tá perto. Aguenta só mais um pouco, tá bom? Precisamos sair do reino pra tudo ficar bem. É difícil. Mas calma, vou dar um jeito. Vai saber quando a hora chegar. Eu vou te salvar.

Nesse dia, Mary recebeu um dos melhores abraços de sua vida, e isso valeu mais do que qualquer palavra de conforto que pudesse ouvir.

Ficou conformada por alguns dias, mas prometeu nunca se acostumar a estar ali. Se tornaria uma completa infeliz se fizesse. Se tornaria Joana.

A velha saía às compras toda quarta. E sem sua presença na casa, um enorme peso caía das costas de Mary. Ficar sem toda a energia negativa da mulher por algumas horas, era de um alívio incalculável.

Preparava-se para tomar seu último banho semanal quando Aurora, uma das oito crianças, bateu à porta do banheiro.

— Maria! Maria! Mariaaa!

Correção: bateu à porta do banheiro gritando.

— Eles já foram! Venha! Vem!

— Aurora! — gritou Mary do banheiro. Não abriria a porta desta vez. Precisava desse tempo para relaxar e faria bom proveito dele. — Não vou abrir. Sai!

— Por favor, Mariaaa! Precisamos aproveitar! Mariaaaaaaaaaaaa!

Maria, Maria, Maria... Aurora vinha primeiro, era a mais nova e a com o grito mais potente. Em seguida, chegavam Lucy e Ramos, apenas para somar ao coral. Depois Eric, Opal, Carlos e Pam. Maria, Maria, Maria, Maria... E por último, esse nunca gritava, Lorte.

Mary — ou Maria —, cedeu aos gritos, enfim. Descansar para quê? Faria isso à vontade no céu. Mas esses pestinhas... precisavam aproveitar a vida ao máximo. Ela podia durar pouco.  

Abriu a porta o suficiente para mostrar que estava de toalha, mas que iria, sim, brincar com eles. A alegria se instalou. Os gritos aumentaram e uma chuva de palmas surgiu. A barulheira só diminuiu quando Mary pediu, gritando mais que os loucos, que fossem para o campo. Precisava se vestir antes de tudo.

Saiu do banheiro, apressada para satisfazer a vontade dos pequenos. Mais audível do que Mary gostaria, agora o barulho se concentrava fora da casa. Desceu as escadas e avistou ela, a diabinho número um. Aurora. Estava sentada no último degrau esperando. Segurava algo na mão.

— Ei! — Mary chamou.

Ela virou a cabeça e levantou-se depressa, um grande sorriso estampando o rosto.

— Maria! — gritou Aurora. — Vamos indo, vamos! — A puxou pelo braço.

— Espera, espera, Aurora. O que isso na sua mão? Não é o que eu tô pensando, é?

— Não. Não... — Suas bochechas coraram. — Já comeu hoje?

— Aurora...

— Toma! — Aurora tinha a terrível e adorável frequência de pegar bolinhos extras do café e entregar para Mary. Terrível, porque se Joana desconfiasse, nem mesmo ela se livraria do castigo. Adorável porquê... bom, Aurora era adorável.

— Já pedi pra parar com isso.

— Joana deixou sobrar muitos bolinhos hoje — respondeu baixinho. — Entreguei um a Dante também!

— E ele aceitou? — Pergunta idiota. Claro que havia aceitado.

— Sim! Comeu em uma mordida só! — Lembrar disso a fez gargalhar.

Mary também gargalhou antes de aceitar o bolinho. Reclamava, mas era grata a Aurora por isso. Com a escassez de alimentação na casa, um pedaço de bolinho massudo fazia toda a diferença no fim do dia.

Comeu o bolinho, encheu Aurora de beijos e abraços, e foi com ela ao campo. Os gritos começaram a quebrar a barreira do aceitável e, mesmo que Joana não estivesse por perto, havia uma rua inteira de vizinhos. Todos sempre dispostos a oferecer a cabeça de Mary a demônio.

Crianças e silêncio nunca andam juntos, e essa frase pode até ser enfatizada se as crianças forem sedentas por diversão. A sorte de Mary foi ter descoberto isso no orfanato.

— Escutem só! — Mary anunciou e os gritos cessaram. — O jogo vai começar agora. Lembram da regra?

...

A resposta não veio, mas Mary deu um sorriso satisfeito.

— Muito bem. Vocês devem pular. Pulem!

Todos pularam, exceto Carlos, o que resultou em sua eliminação.

A rodada seguinte também houve eliminações: Opal e Ramos se juntavam a Carlos no banco dos perdedores.

— Achei que lembravam da regra, pessoal — disse Mary, risonha. — Como agora vocês estão em cinco, quero duas palmas.

Eric e Pam davam adeus ao jogo após suas palmas. Três pestinhas restavam, mas Mary trataria de eliminá-los na próxima rodada.

Inteligência ou sorte? A garota se perguntava. Aurora, por ser a mais nova, estava a surpreendendo bastante. Sua última participação no jogo fora vergonhosa, mas quem sabe ganhasse desta vez?

Lucy era esperta, e ainda mais sortuda. Quase foi a vencedora na primeira semana, e só perdeu por tentar dar vitória a Lorte, o mais velho e mais persuasivo.

— A dificuldade vai aumentar agora. Não vou aceitar que passem daqui. Todos vão perder. Todos vocês. — Mary dava mais um sorriso. Ter desistido de seu relaxante banho mostrava-se recompensador. — Quero uma giradinha de todos vocês.

Se passarem dessa...

Sem giro da parte de nenhum. Ao invés disso: Aurora falou “azul”, Lucy “lua”, e Lorte disse “leitão”.

— Ei! O jogo ainda está rolando! — Mary alertou para Aurora, quando notou sua empolgação para falar. — Se esqueceram da regra?

Ao comparar com as crianças do orfanato, Mary sabia que as de Joana eram incomparavelmente mais inteligentes. Apesar disso, num cenário em que a experiência conta tanto, a inteligência se sobressairia? Mary gostava de dar sua opinião em qualquer que fosse o assunto e, quando Dante perguntou sobre isso, ela não deixou de opinar.

— Andaram estudando as regras? — Mary perguntou aos três. — Mal passaram da terceira rodada no último jogo. Agora eu dou meus parabéns a vocês, mas dessa rodada não vão passar. Quero que digam o próprio nome. Vou dar um minuto para pensarem.

Começou a contar: um, dois...

Mary via em seus rostos a expressão que tanto viu nas crianças do orfanato. A expressão exata que ela mesma fazia quando Dante pedia pulos e falava agora.

— Cinquenta nove. — Fez uma pausa antes do fim. — Sessenta.

Então veio o resultado, e para seu espanto, cada um havia escolhido um caminho diferente:

Pam optou por fechar os olhos, deve ter pensado demais e acabou se atrapalhando. Lorte seguiu Pam e também fechou os olhos, diferenciou-se dela por dizer outra palavra com L, desta vez “liberdade”. Já Aurora... Por pouco não fez a cabeça de Mary sair do lugar quando hesitou, por quase dez segundos, em dar resposta após ela ter terminado de contar. No fim, ela largou o silêncio e tomou sua decisão. Disse com todas as letras e com toda sua voz: AURORA!

Com o fim do jogo, Mary comprovava que sua opinião estava certa.

Foi quase. Um gigantesco quase.

Mary usou o restante do tempo em aulas de defesa com a espada.

Depois de nenhum pestinha obter vitória no jogo do agora, um grande protesto começou entre eles. Alguns acusaram Mary de trapacear por não dar vitória a Aurora. Outros reclamavam que a brincadeira deveria ser mais fácil. Para cessar a confusão que nascia, Mary foi obrigada a sugerir um novo jogo.

Pegou alguns dos bastões de madeira que eram usados pela própria Joana quando precisava ensinar algo para as crianças — era ela quem treinava os pestinhas na maior parte do tempo —, e distribuiu para todos.

O treino não se prolongou por muitos minutos, mas fez o possível para ensinar os fundamentos da defesa a todos. Joana chegaria a qualquer momento e, mesmo que pouco, Mary conseguiu passar algum ensinamento a eles.

Embora faltasse muita satisfação aos pestinhas, ela estava com muita.

Pouco depois de designar cada um ao seu quarto, a garota aguardava Joana e Dante voltarem com as compras, em frente ao portão da casa. Se balançava nele, pensando qual cor usaria em sua pintura, se fosse a dona da residência. Roxo estava proibido entre as opções.

Mergulhou-se em pensamentos distrativos à medida que aguardava, agora sentada na calçada. Tamanha foi a sua distração, que só percebeu Aurora atrás de si ao ser chamada. Foi quase um sussurro: Maria.

O susto a fez voltar para a realidade, e temeu por Aurora estar ali. Ela não podia. Não com Joana prestes a chegar.

— Dante me pediu pra te dar um recado — sussurrava agora.

Recado de Dante?

— Que recado? — perguntou ela.

— Disse pra estar pronta no dia vinte e sete. Disse para não dormir. E disse para não se assustar...

Não se assustar? O recado era mesmo de Dante?

— Como...

— Joana está vindo agora — disse Aurora ao avistá-la. Se despediu de Mary, a agradeceu, e entrou.

Quando Joana e Dante passaram por Mary, ela evitou falar. Respondeu seus cumprimentos assentindo com a cabeça.

O primeiro agora estava ativo, e o dia vinte e sete chegaria em poucas horas.



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