Marcas do Poder Brasileira

Autor(a): Tellus


Livro 1

Capítulo 2 (Mary): Disparos ou limonadas?

 

Mary reconheceu em Joana um sorriso satisfeito após perder a disputa para o irmão. Quase se deprimiu, mas havia recentemente aprendido que velhas como ela sentem prazer em abalar quem não conquista seus corações. Dante, grande conquistador, sempre ganhava a simpatia de coroa amargas.

E, sim. Mary chegara à conclusão de Joana ser realmente uma velha.

Sentada no sofá da sala, se empenhava em limpar os pequenos cortes que recebeu durante a luta. Apesar de serem muitos, não sentiu dor ao receber nenhum deles. Isso a aliviou, pois ao menos os cortes poderiam ser decorativos.

Após concluir a limpeza, chamou o irmão que estava na cozinha descascando alguns limões. Joana havia sugerido fazer uma limonada ao fim do jogo e ele acatou a ideia. Um sinal de má-fé, claro. Para quê limonada se toda a acidez que precisavam estava em Joana?

Teve coragem de chamá-lo mais duas vezes, antes do medo de levar outra repreensão invadir sua mente. Decidiu ir até ele no fim.

— Esses limões são mais importantes que eu? — perguntou, entrando na cozinha. — Estou te chamando há horas. — Sentia-se humilhada implorando por atenção. Uma hora perto de Joana e o irmão já estava se transformando? — Dante, olha aqui.

O garoto deu meia olhadela e voltou a descascar o último limão. A tarefa exigia toda a sua concentração, atenção, cuidado, dedicação, esforço... Dante tinha dificuldade em descascar limões? Era isso?

— Por que você só não espreme os limões? Bota água e tá pronto. Me dá essa faca. — Pegou a faca de sua mão.

— Pare de se meter, Mary! Joana me pediu pra descascar os limões, e estou fazendo isso. Devolve a faca.

— Ela só tá te dando trabalho! — Jogou a faca na bancada da pia. Suspirou fundo antes de voltar a falar. — E você nem tá descascando esses limões direito. Estão parecendo a cara enrugada dela. — Soltou uma gargalhada.

— Mary... — Dante conseguiu dizer antes de também explodir em risadas. Tentava abafar o som dos risos com as mãos.

Mary ainda gargalhava no momento em que percebeu Joana parada na porta da cozinha. Parecia estar esperando o melhor momento para perguntar:

— Qual foi a piada?

A garota gelou. Esperava o pior, e ele chegaria logo. Sabia que a bronca cairia em suas costas, então se preparou para ela.

— Mary... — começou Joana.

— Eu contei. — Dante tentaria a livrar dessa. — Comentei, na verdade. Que sou péssimo em descascar frutas.

— Sim. Prossiga — pediu a mulher.

Mary encarava o irmão aflita.

— Então mostrei os limões a Mary, e começamos a rir. Nada de mais, eu sei. Peço perdão pelo barulho.

Joana levantou uma sobrancelha. O pior chegaria agora?

— Eu de fato pedi descrição a vocês dois. — Mantinha o olhar fixo em Mary. — Mas sei que adolescentes podem ser bastante escandalosos quando querem.

Se Mary tivesse uma espada...

— Esqueça os limões, Dante — disse ela. — Se é incapaz de descascá-los, Mary cuidará deles depois. Vamos para a sala. Tenho observações a fazer.

Observações? pensou a garota. Sou eu quem devia fazer as observações.

Mas não fez nenhuma. Apenas se sentou ao sofá e escutou Joana dizer o quanto podia ser insuportável. Começou sobre os horários: os irmãos deveriam acordar às seis, e irem se deitar antes das oito. As refeições seriam feitas em horários marcados por ela — não precisariam cozinhar, mas teriam a obrigação de pôr a mesa e arrumar a cozinha após as refeições. Três banhos por semana eram o máximo, e o vaso sanitário só poderia ser usado com sua permissão.

Mary deixou de prestar atenção quando escutou que a limpeza da casa cairia em suas mãos. Depois disso, só ouvia quando Joana forçava o “ro” ao dizer “garota”.

— Essas são as minhas observações — disse, por fim. — Se decidirem ficar, terão que respeitá-las. Prezo por uma convivência harmônica.

— Sim, claro. Nós também. Nem vai precisar se preocupar com isso — respondeu o irmão. Sua voz era dócil como um filhote de cachorro.

— Eu espero. — Sorriu a mulher.

Mary segurou a vontade de revirar os olhos.

— Então podemos ficar? — perguntou. — Prometemos respeitar todas essas regras.

— A decisão cabe a vocês. — Voltou a sorrir.

Mary quis dizer: a casa é sua, idiota. Como a decisão cabe a nós?

Mas, quando percebeu, dizia:

— Ok. Ficaremos então.

— Perfeito! — O sorriso de Joana aumentava a cada segundo. Seus dentes eram brancos e perfeitos, mas ainda assim... não era um sorriso bonito. — Sejam bem-vindos.

Mary empertigou-se no sofá. Lutava contra o impulso de sair correndo dali.

— Fiquem à vontade para explorar a casa. Com exceção do meu quarto, todas as portas do andar de cima estão destrancadas. O quarto de vocês é o da porta azul. Peço apenas que mantenham o silêncio. As crianças continuam dormindo. Não quero que as acordem.

Crianças? Joana disse crianças? Quantas seriam? Duas? Três? Se passasse disso, Mary teria realmente com o que se preocupar.

— São seus filhos, Joana? — perguntou Dante levantando-se do sofá.

— Filhos? Está enganado. Não tenho filhos, Dante. As crianças apenas moram aqui. Como o orfanato de onde vieram.

— Sei — murmurou o garoto. Havia um quê de suspeita em voz. — Mas aqui não parece muito um orfanato...

Mary olhou em volta, e deu razão para o irmão. Um orfanato de verdade teria ao menos meia dúzia de brinquedos espalhados pela sala.

— De onde as crianças vieram? — Quis saber o irmão.

Joana evitou responder à pergunta: virou as costas, e caminhou em direção à sua estante de livros. Estava com a cabeça inclinada para cima. Parecia encarar um... rifle? Mary não soube dizer. A arma era opaca em sua maior parte, com linhas pretas percorrendo todo o seu cano. Ou melhor — canos. A arma possuía três.

Afoita em pensamentos, Mary se assustou quando Dante pressionou seu braço. Intrigada, perguntou:

— Pra que isso?

Viu o irmão colocar o dedo indicador sobre os lábios. Silêncio. A palavra ecoou em sua mente. Mary havia finalmente percebido a urgência no olhar de Dante. Uma urgência de recuo.

Sua atenção voltou para a porta da casa, e logo tratou de se encaminhar até ela. Notou que o irmão não a acompanhava quando segurou a maçaneta de porta. Virou para trás e ele ainda estava lá: mesma posição, o mesmo olhar...

Cacete, Dante, vem logo! Uma ansiedade emergia em seu corpo. Que se foda isso.

Girou a maçaneta e puxou. A porta rangeu, mas o suficiente para chamar a atenção de Joana? Mary apostou que sim. Ouviu um estalo e imaginou ter vindo do pescoço da velha. Virou de novo e se deparou com Joana encarando o chão. Um calafrio percorreu todo o seu corpo.

— Dante, vem logo! — sussurrou.

O irmão foi ágil em chegar até a porta.

— Tenha calma — pediu ele, afastando a irmã para o jardim, a voz grave, mas contida. — Vai na frente.

Aquilo chocou Mary.

— Quê? Não...

— Está pisando neles. Está pisando nos meus lírios.

O sangue de Mary gelou; o calafrio voltou a assombrá-la.

A velha... é um demônio!

Chegando sem barulho pela segunda vez... Como?

Joana se movia como um espírito. Agia e falava como uma maníaca. O que viria mais?

Mary não esperou para descobrir. Pegou a mão do irmão e o puxou para perto de si. O próximo passo era correr. Correr até os pulmões estarem à beira de explodir. Correr até chegar ao verdadeiro orfanato... mas, quando se deu conta, Joana segurava o rifle.

Arma apontada. Dedos segurando o gatilho.

A cena despertou em Mary coisas que ela não estava preparada para sentir. Tenha calma, lembrou do irmão dizendo. Respirou fundo, tentando se manter no controle. Dante estava lá. Seu irmão estava lá. Se tinha o irmão, tinha tudo.

E ele nem hesitou em pôr-se como uma barreira entre ela e Joana.

— Estamos ao ar livre! — gritou Dante. Apertava firme as mãos da irmã. — Você não seria louca o bastante.

— Quer apostar? — desafiou Joana, o sorriso voltando.

Um click soou da arma. O disparo viria dos três canos?

Talvez os irmãos descobrissem em outro momento. Nesse, Joana soltava a arma ao chão, a chutava para longe, e com um resmungo quase inaudível, a velha dizia: decorativa.

Quanto mais esforço para entender, mais a sanidade de Mary se esvaía. A garota encarava a arma alarmada e seus pés tremiam como nunca. Estaria de joelhos se Dante não servisse de apoio. Joana pagaria caro... precisava pagar.

Mary encarou a arma e, com um impulso forçado, a pegou do chão. Sentiu algo estranho ao tocá-la. De alguma forma, a arma parecia sugar sua energia.

Também estava com dificuldade em segurá-la, como se ela não quisesse ter saído do chão. Seu peso seria um problema até mesmo para Dante. A situação exigia rapidez, mas uma Mary atormentada, trêmula, e sem força para erguer a arma, nunca entregaria isso. A incapacidade infligiu seu ódio.

O irmão, quase alheio ao que acontecia, tomou a arma de seus braços, deu uma meia olhada no instrumento, e logo o arremessou para algum canto de lírios.

— Deixa disso — sussurrou para Mary. Os dois arquejavam e suas peles estavam mais brancas do que de costume — e o costume era muito branco.

Joana parecia contida. Recaía agora à mesma posição de quando encarou os irmãos pela primeira vez. O olhar de gavião. A postura...

— Vocês conhecem o treinamento idealista? — perguntou, quando os irmãos já lhe davam as costas. A pergunta chamou a atenção de Mary, mas nem ela, nem Dante pararam o passo. — Devem conhecer, se estão fugindo deles. — Sorriu. — Eu pensaria bem antes de abdicar minha vida. Aqui vocês tem escolha, lá jamais terão esse luxo. Boa sorte para achar outro lugar que os aceite.

Os irmãos lidavam com um impasse. Mary nunca temeu idealistas, sabia que a fama de serem obstinados era mais em relação ao extermínio de marcados do que por qualquer outra coisa. Irmãos órfãos que fugiam do alistamento obrigatório, não chamariam a atenção deles. Se ficassem, Mary teria um problema maior e mais temeroso que idealistas despreocupados.

A garota sabia que, no fim, a decisão de ficar estava nas mãos do irmão. E, pelo jeito que as peças se moviam, a decisão já havia sido tomada.

— Vai responder minha pergunta? — insistiu Dante, a um passo de atravessar o portão. — De quem são as crianças?

— De quem são? E de quem mais seriam? São minhas, é claro.

— Respondeu outra coisa minutos atrás.

— Como?

O irmão ignorou o fingimento da mulher.

— Aquela arma ali. — Apontou para o campo de lírios. — Vi o brasão idealista nela. Você é idealista?

Joana idealista? Que ideia. Mary se perguntava quais seriam as pretensões do irmão com tudo isso.

— Assim você me honra, Dante. Tenho mesmo cara de idealista?

— Você tem cara de coisa ruim.

Joana gargalhou.

— Isso não é apropriado.

— Está evitando minhas perguntas. Isso não é apropriado.

— O problema, Dante, é que você desconfiou cedo demais. — O enigma percorria suas falas. — Mas se poupe de preocupações, eu vou dizer, mesmo que já saiba.

Que conversa de doido. O que estava acontecendo? A angústia por não saber consumia Mary. Tome logo uma decisão, Dante.

— Sou ligada ao Sistema de Idealistas, porém, não faço parte dele — começou Joana. — As crianças pertencem a mim, e se dúvida, pergunte a elas. É fato que um dia elas me deixarão, mas... Oh, estou bem. Há mais perguntas, Dante?

Que mulher louca...

— De onde vieram? Quantas são?

— Isso você pode descobrir entrando na casa e perguntando a elas.

— Quero saber de você.

Joana hesitou em responder.

— São oito crianças.

Oito crianças?! Mary quase não se sustentou em pé. Saber disso foi pior que Joana apontando a arma em sua direção. Sem negociações agora. Se Dante decidisse por ficarem, Mary decidiria por ela mesma ir embora.

— Surpreende a quantidade? Sua irmã parece desacreditada...

Um suspiro profundo antecedeu a fala do irmão.

— Me surpreende, sim. — Caminhou em direção à mulher. Mary continuou agarrada ao portão. — Mas não pelo motivo que pensa.

A mulher sorriu mais uma vez enquanto Dante a encarava de perto.

— Responda minha última pergunta.

Joana fez que sim com a cabeça.

— O que acontece com as crianças depois? Depois que te deixam.

— As mais fortes sobrevivem. — Mary sentiu uma falsa melancolia na velha. Talvez estivesse começando a entender o que o irmão estava enfrentando.

— Das oito crianças em sua casa, quantas são fortes?

— Achei que as perguntas tinham acabado.

— Responde!

— A força pode vir de vários lugares, mas, se estamos falando da mesma... acredito que nenhuma das crianças tenha o que é preciso para ser considerada forte.

O desprezo estampava o rosto de Dante, e a expressão de não-me-importo-com-que-pensa-de-mim estava fixa em Joana.

— Você...

— Estou farta desta conversa, Dante — anunciou a mulher. — Você, mais do que ninguém, sabe o que passou e até onde iria para manter seu futuro e o de sua irmã seguro. Se ficar corrompe sua honra, vá embora. Repito: a decisão cabe a vocês. O show de todos já acabou, e não há mais motivo para conversar. Faça sua escolha, garoto!

Dante respondeu mais rápido do que o esperado, e ao ouvir a decisão do irmão, Mary tomou a dela.

Fechou o portão com força, preparou os pés e correu.

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