Marcas do Poder Brasileira

Autor(a): Tellus


Livro 1

Capítulo 1 (Mary): Bem-vindos

 

— Cadê essa velha? Se ela demorar mais dois minutos, juro que arrombo esse portão — disse Mary, quando a luz do sol começou a iluminar a calçada. — É essa casa mesmo?

— É a única com portão azul — respondeu Dante. — “O casarão do portão azul”, foi o que a Layla disse.

— Azul? Isso tá mais pra um roxo.

— É. Tanto faz. — Coçou a cabeça. — Acho que devemos voltar outra hora. Ela deve aparecer mais tarde. — Olhou para a fileira de casas que percorriam a rua. — Estamos chamando muita atenção.

— E pra onde vamos? Voltar pro orfanato? — perguntou Mary esperançosa. Ainda estava superando a ausência de sua cama. — Chegaremos antes de Julipe acordar se formos agora.

— Não começa, Mary! — Dante se conteve. — Olhe lá. — Indicou com a cabeça para a figura de uma mulher se aproximando. — Será que é ela?

Mary a examinou de longe.

— Não parece tão velha olhando daqui.

O irmão ergueu uma sobrancelha e a encarou.

— Por que acha que será uma velha?

— Que jovem mulher moraria nessa zona do reino?

Dante não respondeu, mas quando a mulher parou frente a eles, souberam estar diante da pessoa que procuravam. O semblante em seu rosto era sério, e os deixou desconcertados assim como Layla dissera que aconteceria.

Ela usava uma bata branca de mangas longas, e uma calça quadriculada com diversas cores. O estilo da mulher beirava o tenebroso para Mary, mas evitou julgá-la. Além do olhar de gavião, sua postura rígida a fazia parecer uma estátua. Seu ponto positivo foi ser rápida em ser o mais direta possível:

— Chegaram cedo demais. Estipulei outro horário com a tutora de vocês — disse a mulher. A voz era firme. — Vocês devem ser Dante e Maria se bem sei, correto?

Mary percebeu que o irmão segurava um sorriso de canto. Erravam seu nome em uma frequência maior do que gostaria, e Dante sempre acabava rindo muito em todas as situações.

— Maria? — Ela mostrou um sorriso gentil. — Talvez tenha se enganado. Me chamo Mary. E sobre o horário... — Olhou para o irmão buscando amparo.

— Saímos sem chamar a atenção das outras crianças do orfanato, senhora Joana — respondeu Dante. — Layla pediu que fôssemos discretos. Por isso chegamos tão cedo.

— Nada disso me importa. Chegaram cedo demais! — Sua reclamação soava como tomar uma dose pura de limão. — Se fosse uma pessoa maldosa, os mandaria embora e pediria para retornarem somente no horário marcado.

Os irmãos se entreolharam, assustados com a bruta sinceridade da mulher.

— Agradeçam meu bom caráter — Entregou as sacolas que segurava para Dante. — Receberei vocês. Entrem pelo portão. Como a tranca está quebrada, ele nunca fecha por completo.

Mary sentiu um alívio imediato.

— Agradecemos, senhora.

— Esqueça esse “senhora”, Maria — chiou a mulher, nervosa. — Se me acha velha, guarde para você.

Ela fez de propósito, pensou Mary, sem coragem de corrigi-la outra vez.

— Que cara horrível é essa, menina? — perguntou a mulher, ao notar a expressão de desapontamento no rosto da garota. — Como me refiro a você pouco importará se decidir aceitá-los em minha casa.

Ficar no meio da rua tornava-se uma opção menos ruim para Mary agora.

— Que tal entramos logo? — Dante pediu, apreensivo. — Estamos atraindo olhares indesejados pra cá.

No outro lado da rua, o que parecia ser um homem, os espiava por trás de sua cortina transparente.

— Então vamos entrar — concordou a mulher.

Joana os guiou impaciente por seu quintal, pedindo cuidado para não pisarem em nenhum de seus lírios. Desobedecê-la podia ser perigoso, então mesmo que grande parte deles estivessem murchos, Mary acatou o pedido.

Na casa, as paredes na cor verde-claro — o cheiro forte de tinta indicava uma pintura recente —, fizeram Mary perceber que talvez azul-roxo do portão não fosse tão ruim.

Mas o fato era que, apesar do terrível gosto da mulher para escolher tonalidades, Mary pouparia críticas referentes à decoração da sala. Os luxuosos móveis prenderam tanto seu olhar que Dante precisou a alertar sobre as instruções da mulher inúmeras vezes.

Após passarem rapidamente pela sala, Joana os levou até a área externa e pediu para que a esperassem por mais alguns minutos. Um enorme campo cobria metade da área, e sua cor — diferente dos lírios no quintal que não possuíam cor alguma —, era de um modesto verde lustroso.

— É... Até que a velha manda bem na decoração — disse Mary segundos após Joana entrar na casa. — E esse campo, hein? Uma belezinha.

Dante riu com gosto ao ouvir isso.

— Que foi? — perguntou Mary. — Quer reclamar da casa? As paredes da sala são realmente horríveis, mas até que gostei. É bem grande, e parecer estar reformada.

— A casa é ótima. Só sua cara feia que incomoda... Tem algum problema com Joana?

— Ela é estranha — respondeu sentando-se em uma das cadeiras dispostas ali. — Sei que prometi ser tranquila, mas talvez seja difícil perto dessa mulher.

— Você fala como se a conhecesse. — Cruzou os braços. Nunca vinha nada bom depois disso. — Não precisamos gostar dela, mas ela precisar gostar de nós. Sei que consegue fingir simpatia.

— Ela parece a Layla — disse tentando ofuscar o discurso do irmão. — Expressão aborrecida, língua afiada... São duas desalmadas.

— Fale baixo! — sussurrou. — Ela pode ouvir. — Checou se Joana se aproximava. — Faça esforço pra gostar daqui. É nossa única opção até...

— Tá! Não precisa repetir a mesma coisa sempre, Dante. — Encarou o campo. — Eu entendi da primeira vez.

Antes que Dante pudesse abrir a boca para responder, Joana voltou de algum lugar da casa, segurando o que aparentava ser uma espada enrolada da ponta ao cabo por panos velhos. Trouxe consigo também um bastão de madeira grosso; similar ao que Mary usava para treinar com o irmão em momentos de folga no orfanato.

— Lá. — Joana apontou para o campo. — Vocês podem ir para o centro.

— Isso em sua mão é uma espada, Joana? — perguntou Mary, sem a chamar de senhora desta vez. — O que faremos com ela?

Os lábios de Joana se crisparam.

— Agradeceria se fizessem o que eu digo sem questionar. Por favor, se encaminhem para o campo. Faremos uma brincadeira. Acredito que irão gostar. — Entregou o bastão a Dante e esperou que estivessem no campo antes de explicar o jogo.

Joana desenrolou a espada dos panos lentamente. A certa distância, Mary pôde observar que a espada não fora tão usada como havia imaginado. A lâmina da arma era fina como gostava e, apesar do punho ser um pouco largo demais, teve sua aprovação.

Após uma explicação verborrágica sobre como a brincadeira funcionaria, Joana cravou a espada no chão do campo. Em suas palavras, a espada era somente um item decorativo, com isso, não ocorreriam problemas em utilizá-la na brincadeira.

Ela tirou uma moeda do bolso, colocou-a sobre o dedão e deu um peteleco. A moeda girou três vezes no ar e caiu em sua mão. Joana finalizou o sorteio fechando o punho, e logo em seguida pediu para Dante escolher entre cara e cruz. Reclamações inundaram a mente de Mary, mas preferiu ficar calada. Outra censura da mulher, e seu desgosto por estaria declarado. O irmão escolheu cara, e Joana pediu para ele pegar a espada.

O sorriso dele era aflito.

— Na verdade, Joana — começou ele. — Eu prefiro que Mary fique com a espada, já que ela tem afinidade com lâmina finas. Fico com o bastão sem problemas.

— Achei que tivesse sido clara ao dizer que a espada é decorativa. — Apoiou as mãos sobre o cabo. — É inofensiva. Sua irmã ficará segura. Mas, se não estiverem dispostos a brincar, conhecem o caminho até o portão.

Mary notou uma impaciência aflorando no irmão. Segurou sua mão e disse:

— Tá tudo bem, Dante. Vamos fazer o que ela pede. Vai ser difícil você ganhar de mim do mesmo jeito.

O irmão sorriu.

— Quando deixará de contar mentiras a si mesma? — Entregou o bastão a Mary e foi buscar a espada.

Os irmãos estavam frente a frente, ambos com as armas em mãos. Ao sinal de Joana, eles teriam que tentar derrubar um ao outro. Perderia quem sofresse duas quedas primeiro.

Um jogo idiota, para uma mulher idiota. Mary não achou sentido na brincadeira, e menos ainda em Joana estar olhando feito uma maníaca para Dante. A vontade que teve foi de arremessar o bastão em sua cara. Imaginou que talvez assim ela perdesse a postura travada.

Mary foi a primeira a sair do lugar depois que o sinal foi dado. Se permitisse que o irmão atacasse primeiro, o jogo acabaria antes de Joana fazer alguma reclamação. Não estava entusiasmada com a luta, mas se perdesse entregaria uma grande regalia para Joana. Precisa vencer, e assim faria.

Conseguiu golpear o irmão quatro vezes com o bastão, e quase o derrubou em certo momento. Ele estava facilitando, mas isso não era problema dela.

— Dante! — gritou Joana de repente. — Ataque sua irmã! — A observação pegou ambos de surpresa. — Leve o jogo a sério, ou encerremos agora!

O garoto apertou com força o cabo da espada e encarou Mary.

— Mas... — Mudou o olhar para Joana. — Meu estilo de luta é mais defensivo, Joana.

— Estou mandando atacá-la! — ela berrou e Mary se perguntou se teria algum problema mandá-la calar a boca. — Está segurando uma espada, não um escudo. Lute!

— Faça o que ela diz — disse Mary. Confiança radiava de seu olhar. — Vem com tudo. — Piscou com um olho só.

Mary sabia o motivo da hesitação do irmão desde o começo da luta. Apesar de Joana ter jurado a inofensividade da espada, sangue começava a surgir nos pequenos cortes espalhados por ambos os seus braços.

— Se você diz — respondeu Dante e correu em direção à irmã, mantendo a espada pronta para ataque.

O plano de Mary deu início quando Dante a encurralou na parede da área externa. Tentou fugir de seu avanço, mas quando menos percebeu, tombava ao chão. Dante fazia seu primeiro ponto, e se Mary não se apressasse em levantar, o jogo acabaria ali mesmo. Uma nova regra era implementada por Joana: “o oponente que não se erguer do chão dez segundos após a primeira queda, perderá a disputa.”

Nenhuma oportunidade escaparia. Mary aproveitou a abertura que a queda lhe trouxe e deu sinal a Dante. O bastão de madeira, levantado um pouco acima de seu peito, a protegeu do iminente ataque de espada do Irmão. Funcionou, pensou com a grama do campo pinicando suas costas.

A espada cravou na madeira grossa e não saiu mais. Súbita como um naufrágio, Mary girou o bastão para a esquerda e, com grande força, arremessou-o para longe, perdendo seu bastão, assim como Dante perdia a espada. Levantou-se depressa, pois faltavam poucos segundos para Joana a desclassificar e, ao se erguer, pôde vislumbrar o escárnio no rosto da mulher.

A luta prosseguiu em uma troca de socos. A velocidade de Mary sobressaiu a força de Dante em determinado momento, e o resultado disso foi o garoto se encontrando com o chão pela primeira vez.

Após empatarem, Mary sabia que era só questão de tempo para Dante a derrubar de novo e levar a vitória. Só não imaginou que aconteceria segundos após ele se erguer do chão. Mary caiu como uma maçã podre cai do galho de uma árvore, e mais tarde, poderia jurar que um gorila a tinha atacado. Depois disso, teve a certeza de que Dante não era tão legal como as pessoas costumavam dizer.

 



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