Malkiur Brasileira

Autor(a): Kamonohashi


Volume 1

ONDE O MEDO COMEÇA?

 

Era noite. Daquelas que pareciam mais longas do que deveriam ser.

O garoto seguia sua mestra em silêncio, mal conseguindo manter-se de pé. Seus passos eram arrastados — o corpo ainda doía do treino daquela manhã. O cansaço e o sono pesavam como armaduras velhas em seus ombros jovens.

À sua volta, a floresta parecia ter engolido a própria luz.

As árvores, altas e imóveis, formavam colunas negras que se estendiam até o céu apagado. O cheiro da terra úmida, misturado ao mofo das folhas caídas, envolvia tudo como um sussurro velho e abafado.

O garoto sentiu o medo se insinuar entre suas costelas.

Ali, os sons sumiam. Nem o vento se atrevia a passar.

 "Por que viemos por este caminho?" — ele pensou. A direção era oposta ao acampamento. Totalmente.

A mulher parou diante de um barranco. Um abismo se abria diante deles, escuro como a boca de um animal adormecido. Ela manteve as mãos nos bolsos e falou sem olhar para ele:

— Sabe onde estamos?

Ele hesitou. Os joelhos cederam quase imperceptivelmente.

— A-acho que sim…

Ela semicerrrou os olhos, em silêncio. O garoto se aproximou, tentando enxergar o fundo da queda.

— Então sabe o que existe lá embaixo — disse ela, com voz neutra.

Ele engoliu seco. Suas mãos tremiam. As histórias voltaram à mente: vozes noturnas, criaturas sem forma, sombras que seguiam cavaleiros sem som.

Nenhuma daquelas histórias terminava bem.

— Nos treinos… você melhorou. Mas continua travando diante do perigo.

A voz dela era calma, mas cortava como aço polido.

— E não há feitiço ou espada que resolva isso. A batalha… não espera seu tempo.

O menino olhou para o chão. Queria negar, mas não havia como. Ele sabia que, no fundo, algo em si congelava quando mais precisava se mover.

— É por isso que estamos aqui.

— E… o que falta em mim? — sua voz mal saiu. Parecia mais medo da resposta do que da pergunta.

Ela então o olhou, pela primeira vez. Seus olhos não carregavam raiva. Nem piedade. Apenas verdade.

— Aqui… você vai conhecer o que vive dentro de todos nós. O instinto que desperta quando tudo está prestes a acabar.

O garoto tentou recuar — mas os pés pesavam. Como se o chão soubesse o que viria.

A mestra deu um passo à frente. E, sem aviso, o empurrou.

Ele caiu.

Primeiro com um tropeço, depois com um grito que se perdeu na escuridão.

— Nããããão!

E então, silêncio.

A floresta, como antes, permaneceu quieta. Como se aquilo já tivesse acontecido mil vezes.

 

#Pesadelo... ou lembrança?#

Ele estava em uma vila. Não reconhecia o lugar, mas sabia que pertencia a ele.

As casas estavam em chamas. Crianças gritavam, mães corriam com seus filhos nos braços. O céu era vermelho como brasas sufocadas, e o chão tremia com cada passo das criaturas.

Eram demônios.

Sem forma definida. Alguns andavam sobre patas de ferro, outros rastejavam. Olhos como brasas. Garras que cortavam o ar.

Um velho tentou proteger um menino. Um demônio o rasgou ao meio.

Outro riu.

Roy correu. Gritava por ajuda. Mas ninguém escutava.

Quando olhou para o lado, viu uma criança em meio aos escombros.

Era ele mesmo.

Com olhos arregalados, trêmulo… e completamente só.

 

#Atualmente na floresta#

— Droga...

Roy abriu os olhos com um sobressalto. Tudo estava escuro, mas não como no sonho. Era a escuridão real da caverna. Mais fria, mais silenciosa. Mais verdadeira.

 — Capitã? Ainda está aí...?

Nenhuma resposta.

Ele se sentou devagar, ainda com o corpo dolorido da queda, e observou ao redor como se pudesse encontrar algo no breu. Estava em uma cavidade estreita, com pedras e raízes por todo canto.

Então percebeu: ela o havia deixado ali. Mas antes de ir, quebrara troncos e os jogara na queda. Era óbvio demais para ser acaso.

 “Ela já sabia… que esse barranco levava a uma caverna.”

Roy suspirou.

 — Ela é maluca. Mas… eu não conseguiria subir mesmo.

Franziu a testa, mordendo os lábios enquanto pensava. O chão era irregular, e ao tentar deitar novamente, bateu a cabeça em uma pedra.

— Ai...

Revirou-se com dor e, nesse movimento, algo pontudo cutucou suas costas.

Passou a mão sobre o objeto e o puxou.

Uma lâmina curta, com cabo de couro.

— Uma adaga?

Tocou a ponta e sentiu o fio cortante. Preso a ela havia um pequeno bilhete amassado.

Mas antes que pudesse abri-lo...

 — Ssshhhhhh…

O som surgiu das profundezas da caverna. Baixo, abafado… mas inconfundível. Roy paralisou. O som era úmido, arrastado. Como algo rastejando sobre pedras molhadas.

Ele não pensou. Correu.

Correu sem direção, sem planos, apenas se afastando do som.

Até que viu a luz da lua.

Saiu da caverna ofegante, os pulmões queimando, os olhos piscando para se adaptar à claridade suave. Estava em uma colina. Abaixo, uma parte da floresta se abria sob a luz prateada da noite.

 “Seria uma paisagem bonita… se não fosse a Floresta Negra.” Pensou consigo mesmo.

Ele ajeitou o casaco sujo de terra, passou a mão no cabelo e finalmente leu o bilhete.

 “Sobreviva até eu voltar, pirralho! Ou eu te mato!”

“Para não ser tão maldosa, deixei minha adaga com você. E mais duas dicas:

Procure pedras vermelhas — se esfregá-las, fazem fogo.

Monte acampamento perto do rio. Tem peixes, e animais. 

Boa sorte.”

Roy terminou a leitura com uma expressão amarga. Coçou a cabeça com a ponta da adaga.

  "Não serviu pra muita coisa… Por onde eu começo?"

Ele estava ferido. As roupas manchadas, alguns cortes ardiam com o vento frio.

Precisava encontrar o rio.

Mas o som voltou.

 — Ssssshhhhhh…

Agora mais alto. Mais próximo.

Roy se virou lentamente.

Diante dele, uma serpente gigantesca surgiu entre as árvores. Os olhos brilhavam como brasas líquidas. Sua boca se abria com dentes longos, pontiagudos, e de suas presas escorria um líquido púrpura que corroía o chão.

O corpo da criatura se erguia acima das árvores, escamas negras como obsidiana molhada, reluzindo à luz da lua. Um sibilo ensurdecedor dominou a noite.

Roy congelou.

— Merda...

 

#Em algum lugar na floresta#

 — Alonso… volte aqui! A capitã disse pra— Arf…!

Um homem gordo, de bochechas rubras, tentava acompanhar outro, mais magro e apressado. Ambos vestiam casacos brancos — cavaleiros.

 — A capitã disse para não irmos atrás deles…

— Ele é só uma criança, Sancho. Você sabe disso.

Eles pararam, ofegantes.

Sancho olhou para o chão.

— E sabemos que ele… não tem mana, mas a capitã...

— Então não vai durar muito tempo. Um cavaleiro lendário não abandona os seus.

Um vento cortante passou por eles. Em silêncio.

E então, Alonso sentiu um toque em seu ombro.

De relance, viu fios brancos flutuando ao seu lado. Um olho azul. Outro vermelho.

A capitã surgiu como uma sombra feita de vento e presença.

 — Quer dizer isso olhando pra mim, cavaleiro? — ela disse.

E os dois se calaram.

O ar ficou mais denso.

Um olhar. Só um. E os dois cavaleiros souberam.

Aquele era o instinto assassino de Yuki.

Não havia gritos. Apenas presença. Uma presença que pressionava o peito dos homens como se o ar tivesse deixado de existir.

O corpo de ambos estremeceu, como se fossem presas diante de um predador.

 — O que foi que eu disse a vocês dois? — perguntou a mulher, a voz baixa, porém afiada.

— Ca… Capitã Yuki… perdão, apenas…

 — O que eu disse? — ela repetiu, mais suave… e mais terrível.

Jeff tentou explicar, mas não conseguiu formular palavras. O suor frio escorria em sua nuca.

Foi Alonso quem, com a coragem trêmula de quem sabe que está prestes a apanhar, deu um passo à frente.

— Roy… é só uma criança. Ele vai morrer aqui. Eu não posso assistir isso em silêncio.

Silêncio.

Yuki apenas o encarou.

Jeff, vendo a ousadia do amigo, também se encheu de ar.

— Concordo. Ele é como um irmão mais novo pra gente. Não vamos deixá-lo morrer, mesmo que isso signifique ir contra suas ordens.

Yuki suspirou. Longo. Pesado.

 — Vocês são… idiotas.

E então se moveu.

Como o vento cortando uma flor.

Em um instante, os dois estavam sob ataque.

Nenhum feitiço funcionou. Nenhuma defesa mágica surgiu.

A floresta parecia ter sugado suas forças.

Golpes secos, diretos, certeiros.

Jeff tentou reagir, mas já estava no chão.

Alonso caiu pouco depois, com o peito arfando.

Yuki, em silêncio, se sentou na grama úmida e estalou os dedos. O som ecoou como um trovão abafado.

— Eu admiro a coragem de vocês. Mas não posso deixar que desobedeçam e saiam ilesos.

Alonso e Jeff se ergueram com esforço, sentando-se diante da capitã.

Aquela que possuía um olho da cor do céu e outro do sangue.

Seu semblante de raiva já havia se desfeito.

— Entendo a preocupação. Já esperava algo assim… só achei que fossem mais espertos.

— Mas, capitã…

— Silêncio. — disse ela, sem dureza, mas com uma autoridade inquestionável.

 — Acham que sou louca por deixar uma criança sozinha nesta floresta? Sentiram algo de diferente em suas magias?

Os dois não souberam o que responder rapidamente.

Jeff olhou para as próprias mãos.

— Minha magia… ela não funcionou.

— A minha também não. Como se tivesse sumido de dentro de mim.

Yuki então olhou para a floresta. Seus olhos se perderam entre as sombras das árvores.

 — Essa floresta é viva. Absorve mana de tudo que respira. Por isso, as criaturas aqui são… diferentes.

— As folhas alimentam os herbívoros. Os herbívoros fortalecem os predadores. Um ciclo que torna cada ser aqui mais poderoso do que deveria ser.

Ela bocejou, sem pressa, limpando um pouco da poeira do rosto.

— Roy não tem mana. Por isso… ele não será drenado. Seu corpo ainda tem tudo. É justo. Ele precisa lutar com o que tem.

— Mas… e se ele não conseguir?

Yuki olhou para ambos. Os olhos brilharam, e o calor do medo voltou aos corpos deles.

— Está duvidando de mim e de Johan? Do meu treinamento? — a voz dela desceu como um trovão contido. 

— …Não. — Alonso respondeu imediatamente.

Yuki se levantou em um salto. Seu manto esvoaçou levemente sob o vento da floresta.

— Uma coisa eu peço a vocês dois… — disse ela, sem tom de ordem, mas com firmeza. — Tenham fé no Roy. Ele é mais resistente do que parece.

Alonso e Jeff se ergueram. Os uniformes brancos estavam cobertos de poeira, folhas e sangue seco. Mas havia algo nos olhos deles agora… algo que não havia antes: decisão.

Jeff limpou o canto da boca com o dorso da mão. O sangue ainda escorria.

— "Eu vou ser o mais forte do mundo… mesmo que nem eu acredite nisso." — murmurou, repetindo as palavras do garoto. Lembrou-se de sua risada curta e sem graça depois de dizer aquilo.

— Dom. Ele é seu fiel escudeiro, não é? — continuou. — Vai voltar pra nós.

Alonso olhou para a escuridão da floresta por longos segundos, depois assentiu com a cabeça.

Yuki esboçou um breve sorriso. Pequeno. Quase imperceptível.

— Muito bem. Agora que tudo está resolvido… temos outra missão a cumprir.

 

#Na floresta#

 — Droga…

Roy corria.

Os galhos chicoteavam seu rosto. O chão era um emaranhado de raízes, pedras e lama. Atrás dele, a serpente.

Um corpo longo, escuro e flamejante que engolia a floresta com seu avanço. Tudo era destruído em seu rastro: árvores partidas, folhas incineradas, o ar tomado por cinzas.

"Pra onde eu vou…?"

Mudou de direção. Um erro.

Um tronco voando o atingiu pelas costas. O corpo foi arremessado, rolando no chão como um boneco de trapo. Algo cravou-se em suas costas. Madeira. Dura. Dolorosa.

— KIIIIIR!

O som da serpente cortou o silêncio da floresta como uma lâmina viva.

Ela parou. Ergueu o corpo imenso.

Roy viu seu tamanho real.

Era como uma montanha viva. Um pesadelo que tivera forma.

"É matar ou morrer." — a voz de Yuki ecoou em sua mente, calma e cruel como sempre.

Roy se ergueu com esforço. Sacou a adaga.

Suas mãos tremiam. O medo estava em cada parte de seu corpo. Seus músculos doíam, os olhos ardiam, e a respiração era irregular.

Mesmo assim… ficou de pé.

A serpente chacoalhou a cauda. Um brilho alaranjado tomou conta da ponta, que começou a pegar fogo. As escamas vibravam como lâminas vivas.

Roy não conseguiu se mover.

"É assim que acaba? Aqui? Sozinho?"

O réptil avançou.

Sua boca se abriu, revelando dentes como adagas, e um veneno roxo escorria das presas.

"Eu não quero morrer."

 "Mas eu tenho tanto medo…"

No último instante, ele fechou os olhos.

A morte nunca parece tão próxima quanto quando se aceita.

Mas ela não veio.

Nada veio.

Roy abriu os olhos devagar. Estava alguns metros adiante.

O chão atrás dele estava destruído. E ele… estava inteiro.

Havia vapor saindo de suas pernas.

— Eu… consegui me mover?

Ele olhou para o próprio corpo, surpreso. A fumaça subia da pele como se algo tivesse queimado de dentro para fora.

— Desviei? Mesmo assim?

Uma chama nasceu em seu peito. Um sentimento que ele não conhecia: orgulho.

Mas durou pouco.

A serpente ergueu a cabeça da terra novamente. Ainda mais furiosa.

 — Que droga…

Ele apertou a adaga com mais força, mas não se mexeu.

Roy travou, por medo

 

 

 

 

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