Volume 1
E SE ELE ME ODIAR?
A alguns quilômetros da Floresta Negra, o Esquadrão Feras Brancas, liderado por Yuki, havia montado acampamento numa cidade fronteiriça. Era uma vila simples, construída em pedra escura e madeira seca, iluminada por poucas tochas e pelo brilho opaco da lua. Soldados se espalhavam pelas vielas e tavernas, misturando tensão e cansaço.
Entre todos, um cavaleiro corpulento, com armadura esticando nos limites, caminhava com dois enormes pratos de comida equilibrados como se fossem parte dele.
— Tome. Tem que comer alguma coisa, Dom. — disse Jeff, entregando um dos pratos para seu companheiro.
Alonso pegou, mas não tirou os olhos da fogueira. Seu olhar perdido nas chamas, como se buscasse respostas.
Jeff sentou-se ao lado dele e começou a devorar o próprio prato.
— Ainda preocupado com ele?
— Mas é claro! Eu, como cavaleiro, poderia entrar naquela floresta e matar qualquer monstro idiota que ousasse encostar um dedo nele! — disse com voz firme, inflando o peito com orgulho.
— É, eu sei... Mas se a capitã disse pra confiar... — Jeff terminou seu prato e, sem cerimônia, pegou o de Alonso, que nem reagiu.
— Roy vai ficar forte.
— Mas, e se...
Jeff parou. O prato ficou em silêncio nas mãos. “E se”... era a dúvida proibida.
— Estão aí. Fiquei sabendo que desobedeceram a cabeça oca da Yuki.
Uma voz grave e arrastada soou atrás deles.
Os dois reconheceram na hora.
— Vice-capitão Johan... — disseram juntos, como se estivessem diante de seu próprio enterro.
O homem se aproximou. Alto, de músculos esculpidos pelo tempo e pela guerra. O cabelo negro, amarrado num rabo de cavalo bagunçado. Seu braço esquerdo? Ausente. Em seu lugar, uma antiga cicatriz coberta por tecido escuro. Trazia um cigarro entre os dedos da mão direita, que acendeu com um movimento casual na fogueira.
— Que clima é esse? Vocês sempre estão rindo, cantando, ou dizendo asneiras... — sentou-se à frente dos dois, encarando-os com olhos semicerrados.
— Estamos preocupados com Roy — disse Jeff, finalmente.
— Mas... se a capitã disse pra confiar, a gente tenta. Só que...
Johan tragou fundo. Seus olhos pareceram mais duros com a fumaça que exalava devagar.
— Ouçam aqui, seus dois palermas... A pessoa que mais tá preocupada com o pirralho... é a própria Yuki.
Jeff e Alonso arregalaram os olhos.
— Ela...?
— Ela não é uma deusa. Não tem todas as respostas. E essa ideia maluca que teve... é só um tiro no escuro. — Johan soltou o cigarro e esmagou a ponta com a sola da bota. — Paramos nesta vila não só pra descansar. Ela quer conversar com alguém importante. Vocês não notaram os Cavaleiros da Capital andando por aí?
Ambos olharam ao redor. Soldados com armaduras douradas marchavam e organizavam os arredores. Diferente do tom despreocupado do Esquadrão da capital, aqueles homens agiam com severidade, quase sem respirar.
— Ela veio se encontrar com um deles?
— Sinceramente eu não sei, não dá para saber o que passa na cabeça da Yuki. É só um palpite meu.
Jeff apertou os punhos.
— Então ela acredita de verdade nele...
— Ela não treinou aquele pirralho por nada.
Alonso bateu com força o prato vazio no chão, se levantando com pose dramática.
— HOHO! E o senhor? Está ensinando alguma lição também ao meu fiel escudeiro?
— EI, EI, De La Mancha! Fica gritando não, porra! — Johan ergueu o punho ameaçadoramente. — Tudo vai depender dele.
Do outro lado da vila, no alto de um prédio, Yuki observava a conversa com uma expressão pensativa. Os olhos heterocromáticos brilharam com a luz da lua. Ela segurava nas mãos um pequeno broche em forma de flor, manchado de terra.
— Ainda tá vivo, pirralho?
O vento soprou com cheiro de floresta úmida. Ela fechou os olhos.
— Espero que sim.
E então pulou do telhado, desaparecendo na sombra das construções.
#NA TORRE CENTRAL DA CIDADE#
O som suave dos passos ecoava pelo corredor de pedra, abafado pelas chamas tênues das tochas fixadas nas paredes.
Yuki caminhava em silêncio, seguindo o cavaleiro que a guiava. Pararam diante de uma porta de madeira reforçada. O soldado bateu duas vezes antes de abri-la com lentidão.
— General... a Capitã Yuki Bonnie, dos Feras Brancas, está aqui.
— Deixe-a entrar — respondeu uma voz calma, carregada de autoridade.
O cavaleiro prestou continência, se afastando em seguida.
Yuki entrou. A sala não era luxuosa, apenas funcional. Um espaço improvisado de estudos. No centro, uma mesa desorganizada coberta de mapas, relatórios e cartas. Mais adiante, uma varanda aberta onde a brisa da noite entrava livre. Lá estava ele.
— Continua bagunceiro como sempre, Zaratrás — comentou ela, com um meio sorriso.
O general virou-se devagar ao ouvir sua voz. Seus cabelos ruivos desarrumados refletiam a luz do ambiente. Pele pálida, sardas discretas e olhos azuis intensos, que se iluminaram ao vê-la. Endireitou o uniforme dourado antes de caminhar em sua direção.
— Yuki... Que bom te ver. O que a traz aqui? Aceita um chá?
— Sabe que detesto formalidades — disse, sem esconder o tédio na voz.
— Eu sei. Mas... — Zaratrás serviu dois copos de vinho, colocando-os sobre a mesa. — ...às vezes elas ainda têm valor. Além disso, sinto algo diferente em você. Está hesitante.
Ela cruzou os braços, sem responder de imediato.
— Tsc... — estalou a língua, irritada por se sentir tão exposta.
— É por causa do garoto? O tal de Roy, que você mencionou nas cartas?
Ela pegou o copo, tomou um gole lento. Seus olhos pareciam buscar alguma resposta dentro do líquido escuro.
— Acho que ontem cometi um erro maior que todos os outros — murmurou, por fim.
Zaratrás se sentou em silêncio. Esperou.
Yuki o acompanhou. Quando se acomodou, os ombros finalmente relaxaram um pouco.
— Eu o deixei sozinho na Floresta Negra... Pedi que sobrevivesse até minha volta.
O general engasgou com a bebida, tossindo discretamente. Limpou a boca com as costas da mão e encarou a mulher.
— Você fez... o quê?
— Eu quero que ele desperte o instinto de sobrevivência — continuou, ainda sem olhar nos olhos do outro. — Num combate real, só um lado sai vivo. Se continuar agindo como uma criança, vai morrer. Só que... não sei mais se fiz o certo.
Zaratrás permaneceu calado por um instante, avaliando as palavras.
— Uma criança, num lugar como aquele... é um risco grande demais. Mas você é a mestra dele. Acha mesmo que isso vai ajudá-lo a crescer?
Ela demorou para responder. Seus olhos vagaram até a varanda. Pensou em sua infância — nos dias em que não havia ninguém para protegê-la. Era cruel, mas ela sabia: ninguém estaria lá para sempre. Nem mesmo ela.
— Eu tenho certeza — respondeu, firme.
O sorriso discreto de Zaratrás surgiu.
— Então não se culpe. Bons mestres não ensinam a sobreviver... ensinam a viver, mesmo na dor.
— E se ele me odiar por isso?
— Ele é seu aluno, não seu filho — disse o general com uma risada baixa. — E se te odiar, vai passar. O que importa é que você fez o melhor.
Ela permaneceu em silêncio.
— Está igual a ele — continuou, depois de um gole. — Sempre com essas ideias absurdas de treinamento.
— AHAHAHA! Eu nunca vou chegar aos pés dele.
Ambos sabiam de quem falavam. Do homem que fora mestre de Yuki, e companheiro de batalhas de Zaratrás.
Eles brindaram com um olhar de cumplicidade. O vinho desceu devagar.
— Onde achou esse garoto? — perguntou o general.
— Ele é neto de Thomas Grey. A fazenda que abrigava refugiados foi atacada por um Anjo Caído. O velho segurou a criatura tempo suficiente para nosso esquadrão chegar. Morreu fazendo isso.
Zaratrás arregalou os olhos.
— Thomas? Então ele... Ah, agora faz sentido. Um Grey. — Riu, melancólico. — Então não se preocupe. Ele não vai morrer fácil.
Yuki ainda não disse nada. Zaratrás se levantou, encheu mais vinho em seu copo.
— Engraçado. Você nunca se incomodou em pegar pesado com seus cavaleiros. Mas com esse menino... está agindo como uma mãe.
Ela esboçou um sorriso. Lembrou-se de um momento recente:
— CAPITÃ! Viu? Saiu fumaça do meu corpo!
Roy gritava animado, com os olhos brilhando.
Johan apareceu por trás, rindo alto:
— Isso não foi nada, pirralho! Foi uma merda!
— CALA BOCA!
Yuki, observando os dois discutirem, sentiu algo aquecer dentro do peito.
— E pensar que ele quase morreu no dia em que o encontrei...
#Naquela noite, naquela vila#
Lembrou da missão. Dos estrondos à distância. Dos demônios pelas ruas.
E daquele som — um zumbido que arrepiava a espinha.
Foi sozinha, guiada pelo instinto, até um vilarejo devastado próximo. Casas em ruínas, sangue nas paredes.
Encontrou um menino. Corpo partido, olhos vazios.
Ele apenas repetia uma palavra fraca, quase sem som:
— Vô...
Ignorava tudo ao redor, caminhando de forma obstinada até os escombros.
Yuki o impediu de prosseguir, mas ele apenas apontou.
Ali, entre cinzas e pedras queimadas, jazia o corpo de Thomas Grey.
Ela não gritou. Apenas olhou. Entendeu. E se ajoelhou ao lado do menino desacordado.
— Você não é fraco, pirralho...
# Na torre #
Na sala, Yuki havia adormecido sobre a mesa. Zaratrás a observava com um sorriso discreto.
— Bebeu até apagar... Igualzinha ao mestre dela.
Foi até a varanda. O céu estrelado se estendia acima da cidade.
“O pequeno Roy... encontrou Yuki.
Thomas ignorou todas as minhas cartas. Achei que nunca deixaria o menino seguir o sonho do pai.
Mas o destino... é curioso.”
— Ele está em boas mãos, amigo. Pode descansar em paz.
Um corvo vermelho pousou em seu ombro. Seu olhar inteligente refletia a luz.
— CRÁ! CRÁ! Estou de olho nele! CRÁ!
— Tão ansioso quanto sempre... — disse o general, sem se abalar.
O pássaro alçou voo, deixando uma pena cair.
Zaratrás a segurou entre os dedos, com um sorriso leve.
— Teimosos... todos vocês.
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