Volume 1
Capítulo 7: A clareira
Thales descobriu que a garota chamada Ellin vivia somente com a mãe e, para ajudá-la, trabalhava n’O Mago Embriagado como copeira e cozinheira há alguns anos, o que, teoricamente, a transformava num tipo de amiga de infância.
Depois do banho, jantou depressa sob a companhia mal-humorada da jovem. Em seguida, Claus indicou o quarto de Thales, que subiu sem dizer uma palavra. Ele ainda pensava naquele soco, recusando-se a elogiar a comida de Ellin, por mais que estivesse tão saborosa que quase foi às lágrimas.
Em verdade, tinha questões bem mais importantes a pensar do que ficar preocupado com cara feia, ao passo que a lua já subia no céu noturno quando ouviu duas batidas na porta do quarto, arrancando Thales daquela digressão.
— Tá aberto — avisou ele.
A garota de cabelos vermelhos entrou no aposento trazendo uma lamparina numa mão e uma xícara sobre um pires na outra. Mostrou um sorriso a contragosto antes de anunciar:
— Vim trazer um chá.
Respirando fundo, Thales precisou admitir suas suspeitas: ela ficava bem mais bonita quando não estava carrancuda, mas jamais confessaria em voz alta. De toda forma, ergueu uma sobrancelha antes de rebater:
— Mas eu não pedi nada.
Foi o suficiente para ela fechar a carranca outra vez. Uma veia pulsou em sua têmpora.
— É pra melhorar mais rápido, idiota, assim para de me encher o saco. É chá de Viçosa Azul. Colhi sob a lua pra aumentar os efeitos curativos. Deve ter passado umas poucas e boas na floresta.
Thales coçou a bochecha. — Mais poucas que boas.
Com as duas mãos ocupadas, Ellin não conseguiu disfarçar o sorriso que a tomou de assalto. Tentou se manter irritada, mas deixou escapar uma gargalhada sincera.
— Q-que droga, Thales. Desde quando você faz piada?
— Eu… não fazia antes?
Sem responder, a garota depositou a lanterna sobre a cômoda e proferiu segurando a xícara com firmeza:
— Fervor. — De repente, o anel que ela trazia no dedo médio, um pequeno objeto com um cristal alaranjado no centro, cintilou brevemente, fazendo o líquido da xícara borbulhar por alguns segundos, entregando a bebida fumegante para Thales.
— Incrível… — Ele ainda não havia se acostumado ao fato de estar num mundo em que a magia era real.
Ela sorriu mais uma vez e, não fosse a pouca luz do quarto, Thales podia jurar que a garota corara.
— Isso mesmo — tornou Ellin. — Não me lembro de você fazer piadas nem desse brilho de curiosidade no seu olhar. Parece até… outra pessoa. O que aconteceu na floresta? Aliás, o que foi fazer lá, pra começo de conversa?! Sabe o quanto a Floresta da Caveira é perigosa?
Quase respondeu contando tudo o que havia sofrido na luta contra Kalyna, mas algo o refreou, pensando no Thales daquele mundo e em como ele agia com aquelas pessoas. Não parecia a coisa certa a se fazer.
— Quando abri os olhos, já estava na floresta. É tudo o que consigo dizer.
— Seu pai comentou que você não se lembrava nem do seu quarto. — Ellin soou intrigada. — Sua memória está tão ruim desse jeito?
— Parece que sim…
— Você pode ter batido a cabeça em algum lugar, sabia? Deixa eu dar uma olhada.
Antes que Thales pudesse argumentar, ela o agarrou de supetão e o enfiou no meio dos seios, procurando qualquer sinal de ferimento entre as madeixas do amigo.
— Mfpfmp! — Ele tentou respirar. Em vão.
— O que foi? — Ellin travou no mesmo segundo da pergunta, dando-se conta da situação. Uma vermelhidão abrasiva tomou sua pele, afastando o amigo do decote ao se levantar de uma vez. — DE-DEPRAVADO!
Thales achou que receberia outro soco, mas a garota ficou ali, paralisada, olhando para ele enquanto estremecia. — Você tá bem?
— T-termine seu chá e vai dormir logo! — Ellin forçou o corpo a se mexer, batendo a porta na cara dele.
— Essa menina… Falta uns parafusos nela.
*******
O chá de Viçosa Azul o golpeou com força, nocauteando Thales em menos de cinco minutos após Ellin o deixá-lo.
No outro dia, despertou devagar, sentindo-se mais descansado do que se lembrava em vários anos. Os pássaros cantavam do outro lado da janela fechada, e o quarto se enchia com o cheiro de relva úmida.
Jamais se considerou um grande fã do campo, mas sentiu uma agradável paz de espírito ao acordar daquela forma, pelo menos até uma nova mensagem de Mitty surgir diante dos olhos.
«!»
Missão Comum: Trabalhe os gambitos
Requisitos: Esteja numa área ampla e seca.
Recompensas: Orbe de Teleporte – Biblioteca da Tábula.
>Iniciar<
Bocejando, apertou sem pensar na opção de início, mas nada aconteceu além de avermelhar o aviso do sistema.
«!»
Esteja numa área ampla e seca!
— Tá certo! Já entendi.
Enxotando a tela com a mão, Thales se aprontou e desceu as escadas até o andar de baixo, encontrando o salão com uma dúzia de hóspedes tomando o desjejum, sentados nas mesas retangulares. Ellin deslizava por entre os clientes, servindo uma jarra de vinho sob o olhar bondoso de Claus, que limpava o balcão das bebidas.
Encontrar a garota trabalhando ali fez Thales pensar nos detalhes da missão. A recompensa oferecia algo relacionado a uma “Biblioteca”, e bibliotecas significavam informações, um recurso que ele havia decidido a adquirir naquele mundo.
Agora só precisava investigar sobre a “Tábula”, mas a barriga roncou mais forte.
Podia perguntar a Ellin depois do café-da-manhã.
*******
— Queria falar comigo? — Ellin se aproximou ajeitando o cabelo. — Seu pai me disse que você veio pra cá.
Com as costas apoiadas sobre um tronco de macieira, o olhar de Thales divagava sobre a entrada do estábulo. Virou o rosto para ela e disse em tom sincero:
— Queria agradecer pelo chá. Acordei revigorado.
Pega de surpresa, começou a torcer um pedacinho do vestido.
— N-não foi nada de mais, mas v-você não pode ter me chamado só pra isso, né? Você nunca foi de agradecer ninguém.
O jovem cruzou os braços, aborrecido. Caramba, o quão cuzão era o Thales desse mundo?
— Você tá certa — pigarreou ele —, não era só pra isso. Por causa da minha memória, preciso de ajuda com algumas informações.
— Ah… — soou um tanto desapontada. — O que quer saber?
— Você conhece alguma área grande e vazia? Um lugar que ninguém use?
A garota estreitou os olhos e pensou um pouco. — Bem, eu sei de um lugar… mas por que assim do nada?
— Só curiosidade. — Thales esfregou uma mão na outra. — Pode me levar até lá? No caminho, vou te explicando
Ellin ergueu uma sobrancelha.
— Você realmente anda muito estranho… — A observação veio acompanhada de uma sacudida de ombros. — Mas se é o que quer, eu te levo.
Fazendo menção de que ela fosse na frente, Thales e a garota começaram a andar, adentrando numa trilha secreta da floresta que se abria pelos fundos da estalagem.
— Então… — Ellin cortou o silêncio. — O que ia me explicar?
Thales comentou sem rodeios:
— Já ouviu falar de uma tal… “Biblioteca da Tábula”?
— Com certeza! É a biblioteca da Magna Ordem. As pessoas chamam o castelo de “A Tábula”.
Erguendo uma sobrancelha, lembrou-se de um comentário feito por Claus ainda no dia anterior. — Essa Magna Ordem… Você estava quase desistindo dela, não é?
O rosto de Ellin se tornou um pimentão de tão vermelho.
— A-até parece que eu ia desistir. O alistamento já é na semana que vem!
— Mas que Ordem é essa, afinal? O que ela faz?
— Caramba, Thales, sua memória tá realmente um cocô. A Magna Ordem Militar… — declamou com importância. — É uma academia que forma os guerreiros mais poderosos de Cablanc. Quando éramos pequenos, você vivia dizendo que se tornaria um cavaleiro pra me proteger. — Ela sorriu com gentileza. — Era fofo.
Thales fez uma negativa incrédula. Não se imaginava fazendo aquele tipo de declaração. Desconversou: — Mas e a tal biblioteca? O que mais tem sobre ela?
A jovem chutou uma pedrinha.
— Bem, ouvi dizer que é a maior do continente, contendo um acervo que ultrapassa a biblioteca do Palácio Imperial. Um dos meus sonhos, inclusive, é ler os grimórios raros que têm por lá. Seria tão legal se você entrasse na Magna Ordem comigo… Se me pegassem lendo um livro proibido, poderia só jogar a culpa em você. — Ellin riu da própria piada. — É realmente uma pena que a sua Classe seja um Peão…
Pensando na quantidade de informações que poderia obter caso visitasse um lugar como aquele, Thales ergueu uma sobrancelha.
— O que tem a ver a minha classe?
— Bem, é que… — Ela voltou a torcer um pedaço do vestido, mais encabulada que antes. — Peões são f-fracos, não são? Por causa da Barreira de Elo, eles não conseguem atingir o valor da Elevação, então não se graduam para Ouro. É por isso que a Magna Ordem não aceita o alistamento de Peões, mas vou repetir o que já disse: você não precisa se importar com isso. Vou me formar como Cavaleira Magna e proteger todo mundo da vila!
Ele sentiu a inocência sonhadora nas palavras de Ellin, mas aquele era o tipo de comentário que feria no ego. Ninguém gostava de ser lembrado o tempo inteiro das próprias fraquezas. Seria, daquele modo, um dos motivos da ranzinza do Thales daquele mundo?
Respirou fundo, compreendendo algumas coisas enquanto refletia sobre a afirmação da garota. Se ela dizia a verdade — o que parecia ser o caso —, de que forma ele podia ser Ouro? Era algo que precisava investigar mais a fundo; outro motivo para uma visita àquela biblioteca. Para isso, contudo, precisava primeiro completar a missão.
— Ta-dá! — Ellin parou de repente, anunciando a paisagem com entusiasmo.
Sem esconder o assombro, Thales admirou o local: um lago pequeno e cristalino enfiado numa clareira, rodeado por pinheiros grossos o suficiente para envolver o abraço de quatro ou cinco pessoas. Ele repassou a mensagem de Mitty na cabeça: “Área ampla e seca”, o que significa que, apesar de muito bonito, o lugar não atendia aos requisitos.
— A gente vinha aqui brincar quando criança. — Corou Ellin, mas ficou irritada de repente: — Se lembra disso, pelo menos?
Parecia importante para ela, então meteu o louco:
— É-é claro. Tô começando a lembrar de algumas coisas.
Ela voltou a sorrir, mas Thales olhou para outro lugar, estudando o perímetro com interesse. Aproximou-se da maior árvore que encontrou e passou a mão sobre o tronco escamoso — sólido como aço —, mesmo assim, fechou o punho direito, escolhendo a promoção da Força.
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Força: 170 (+1164) Destreza: 130
Resistência: 145 Magia: 135
Cansaço: 10 Promo (Rainha)
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Boom!
Lascas voaram para todos os lados em meio ao grito assustado de Ellin, destruindo a base inteira de um pinheiro com apenas um golpe. O garoto correu para a próxima árvore e… Boom! Socou de novo, levantando ainda mais poeira.
— O que tá fazendo, seu maluco?! — ela berrou ainda mais amalucada.
— Fica aí, é perigoso! — Thales parou e se afastou, assistindo ao efeito dominó derrubar as árvores menores logo abaixo, criando uma clareira pequena, mas ampla o suficiente para achar que cumpriria o requisito da missão.
Baixado a poeira, Ellin se aproximou atônita, emparelhando com ele.
— Como… como você fez isso? — Ela tinha o olhar vago e o cabelo sujo de madeira. — Nem eu conseguiria derrubá-las num único ataque.
Ele a olhou de canto, imaginando se devia explicar sua Graduação. Ainda não sabia o quanto podia confiar naquela garota, e uma informação daquele porte poderia trazer problemas. Fosse em qualquer época ou ajuntamento humano, o diferente era sempre tratado como ameaça.
— Vai saber, não é? — Thales tentou sorrir, coçando a bochecha enquanto invocava a janela da missão.
A resposta não pareceu convencer Ellin, mas a atenção do garoto já havia migrado para a mensagem da tela, prestes a clicar em Iniciar quando ambos ouviram um ruído muito alto. Um urro animalesco atravessou a clareira.
— O que é isso? — exasperou-se ele.
— Ai, Thales… Deve ter acordado um guardião da floresta!
A vibração pesada tremia sob os pés e, das profundezas sombrias do arvoredo, avistaram um par de olhos enormes se aproximando alucinadamente.