Volume 1
Capítulo 6: Lar
Thales piscou várias vezes, sentindo a realidade surgir diante de si.
Na expectativa de ser golpeado pelo barulho dos carros e pelo cheiro da poluição, foi recepcionado por uma macieza inesperada e pelo fedor de esterco.
— Mas que…? — Sentou-se de chofre, tapando o nariz.
De repente, um relincho. Thales mal teve tempo de processar os arredores quando um cavalo tascou a língua em sua cara, correndo-a do queixo até o topo de seus cabelos. Surpreso, saltou do fardo de feno e encarou os detalhes do perímetro.
— Eu tô… num estábulo?
A resposta surgiu através de um brilho que destruiu o otimismo de Thales.
«!»
Localização atual:
Império de Sucill > Vila Patzer > Estalagem «O Mago Embriagado»
O suspiro de Thales brotou da alma, dando vazão à canseira. Um RPG honesto sempre obedecia às próprias regras. O que aconteceu pra falhar dessa vez? Pensou ele. Sentindo-se nocauteado pela frustração, acabou se deparando com o próprio reflexo num caco de espelho pendurado na divisa entre as baias.
Ali, Thales notou que, apesar de possuir o mesmo rosto de seu mundo original, devia estar uns dez quilos mais pesado, detalhe que despertou sua curiosidade, abrindo os botões da jaqueta para encarar a definição muscular por baixo dela.
Com uma expressão de descrença, perguntou-se em que momento deixou de ser um jogador de Xadrez sedentário para obter o corpo de um praticante de calistenia.
Entrementes, aquele estranho cabelo cor de neve continuava ali, conferindo que as raízes realmente brotavam da própria cabeça. Porém, o que realmente o abalou foi encontrar dois olhos dourados piscando de volta para ele.
— Doideira.
Outro relincho. Thales se virou até o bicho, flagrando-o com os dentes à mostra numa careta ridícula. Sua única reação foi suspirar.
— Até o cavalo me zoando…
O animal estava contido pela baia, mas tentava se aproximar do garoto, querendo abocanhar algo em suas vestes.
— O que tá fazendo, cara? — Afastando-lhe o focinho, Thales encontrou o detalhe que chamara atenção do bicho: uma cintilação em seu bolso. Ao puxar o objeto, surpreendeu-se com o velho presente de seu pai brilhando como uma lâmpada em formato de Rei de Xadrez.
A janela de Mitty ressurgiu sobre a peça; estranhamente morna.
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Item
«Autoridade do Rei»
Classe: Error
Tipo: Divino
Atributos: Error
Descrição: Uma arma criada por um rei e abençoada por um deus. Sua aura arrasadora parece capaz de abrir a terra e rasgar os céus. Sua verdadeira forma é desconhecida.
Restrição de uso: O Jogador precisa estar diante do Grande Impasse.
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A mente de Thales repetiu aquele “Grande Impasse”, mas considerou curiosa toda a descrição do item, como se Kalyna tivesse transformado a peça em outra coisa. Apesar disso, sentia o espírito tão abalado que não conseguia pensar a fundo sobre nada em particular.
Guardou o item no Tabuleiro, que diminuiu para 61 espaços, e finalmente deixou o estábulo.
Do lado de fora, o sol gentil do entardecer o golpeou, recepcionado por uma paisagem campesina. Caminhou um pouco até dar a volta pelo local, observando que o estábulo ficava aos fundos de uma estalagem cuja entrada era adornada por uma placa de madeira com a figura de um mago de chapéu — em sua mão direita, carregava um cajado, na esquerda, um copo de cerveja; o tal do Mago Embriagado.
Em tempo, a estalagem era circundada por uma cerca baixa, enfiada numa grande clareira de floresta acessada por uma bifurcação de trilha que, pouco ao longe, seguia até o início de uma pequena vila.
Decidido a reunir mais informações que o ajudassem, Thales adentrou na construção, surgindo num salão amplo e medieval, iluminado por lanternas de parede a velas e uma porção de mesas retangulares e redondas, circundadas por bancos de madeira, além de uma lareira mais ao canto, que provavelmente era acesa nos meses de inverno.
Concluiu que, ali, funcionava a taverna onde eram servidas as refeições aos hóspedes, incluindo até mesmo a figura do homem que ficava atrás do balcão enxugando os copos.
Como o espaço se encontrava sem clientes naquele horário, o sujeito se voltou de imediato para Thales ao ouvir a porta, congelando a ponto de deixar o copo se espatifar no chão.
— THALES! — O homem não apenas berrou, como abandonou o posto e correu como um doido na direção do jovem.
— Pai?! — Arregalou as órbitas.
Recebeu o abraço forte de um senhor com o mesmo rosto de seu pai do mundo real, mas de cabeleira branca, bigode farto e olhos dourados como o seu eu daquele lugar.
— O que aconteceu com você, meu filho? — perguntou o sósia, entre lágrimas e soluços. — Cinco dias na floresta! P-pensei que… Eu pensei…
— T-tá tudo bem, pai. Tá me apertando pra caramba. — Thales não achou difícil chamar de pai um homem que tinha praticamente a mesma aparência de Camilo, emocionado ao perceber que possuía até a mesma voz e o abraço caloroso.
— Por Roia, filho! Me empolguei demais. Me desculpe — O sujeito se afastou, em dúvida se devia gargalhar ou ficar preocupado. — Deve ter passado um perrengue danado… Veja só essas roupas! É quase um milagre não estar ferido ou algo mais grave. A graça dos seis divinos intercedeu grandemente por ti.
Thales abriu um sorriso incerto, conferindo as informações do homem com o Malandro.
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Status
Nome: Claus Belacruz Elo: 15%
Idade: 46 Classe: Peão
Raça: Humano Graduação: Prata
Título: Proprietário d'O Mago Embriagado
Vida: 398 Mana: 4
Força: 105 Destreza: 95
Resistência: 100 Magia: 90
Cansaço: 32
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Claus… O nome não era mais Camilo, mas o sobrenome permanecia igual. Thales cogitou a hipótese de estar num mundo paralelo ao seu, mas baseado num misto de Idade Média e Xadrez que fazia seu cérebro rodopiar tentando achar sentido na loucura. Gradualmente, porém, começava a aceitá-la um pouco mais a cada novidade, com todos os seus mistérios e bizarrices.
Como esperado, conferiu que os atributos de seu novo pai — também um Peão — eram ainda mais fracos que os de Arell d’Artamis.
O esquisito da situação acontecia quando Thales, cujo Elo se encontrava em patéticos 2%, comparava seus próprios números aos do homem, ultrapassando-o em Mana, Força, Resistência, Destreza e Magia, além, é claro, de possuir a habilidade da promoção.
Thales cruzou os braços, concluindo que aquela diferença toda só podia estar atrelada à sua Graduação de Ouro. Não podia haver outra explicação.
Que coisa, raciocinou de repente, erguendo uma sobrancelha. Será que todos são Peões nesse mundo? Recordou-se, no entanto, de Kalyna, então não devia ser o caso.
— Eu tô bem, pai… Acho que só preciso de um banho.
— Com certeza, meu filho. Vá se lavar. Mais tarde conversamos sobre o que houve. — Claus cheirou sobre a jaqueta de Thales. — Você tá mesmo cheirando esterco.
O sorriso do garoto se abriu abatido. — O lavatório fica pra que lado mesmo?
Claus ergueu uma sobrancelha com desconfiança, prestes a responder quando um estrondo vindo da porta da estalagem desviou a atenção de ambos.
— Thales! — Uma jovem surgiu sob a entrada escancarada, enfiada num vestido simples.
Baixinha, de cabelos vermelhos até os ombros, olhos verdes e um rosto bonito não fosse a carranca de mau humor, atravessou o local numa passada veloz, fulminando-o com o olhar.
Por um momento, a velocidade com que a garota se aproximou fez Thales considerar a ideia de estar prestes a levar uma voadora, mas foi surpreendido ao vê-la frear o ritmo, atirando-se para cima dele num abraço impensado.
— Por que você sumiu, droga?! — Ela fungou fundo para não chorar. — Sabe o quanto preocupou o seu pai?
Tenho uma vaga ideia pelo contexto, respondeu mentalmente, tentando disfarçar a falta de jeito — jamais tinha abraçado uma garota na vida. No entanto, ela exalava um cheiro tão bom de sua pele macia, que a sensação o entorpeceu mais rápido do que desejava admitir.
Thales não tinha amigas nem namorada em seu mundo original, então quem era ela? Talvez aquele mundo não fosse tão paralelo quanto teorizou, começando a retribuir o abraço involuntariamente…
Pow!
O ar fugiu dos pulmões de Thales, dobrando o corpo ao meio ante o punho da garota na altura de seu estômago.
«!»
Dano «3%»
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Vida: >>>349/360 Mana: 280/280
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— Não faz mais isso, idiota! — Ela voltou a trucidá-lo com o olhar. — Vou preparar algo pra você comer, então vá tomar banho porque você tá cheirando bosta!
Tentando se recuperar do soco, Thales a viu sair dali revoltada, enxugando o rosto e sumindo na direção da cozinha.
— Ellin estava muito preocupada com você. — Claus comentou com um sorriso paternal, quase achando graça da situação. — Ontem à tarde, percebi que ela estava chorando no seu quarto quando foi limpar.
— Q-quem é essa maluca? — Ainda massageava o estômago.
— Não fale assim dela, Thales. Ellin estava tão desanimada com seu sumiço que parecia balançada a desistir do alistamento para a Magna Ordem. Que tipo de amigo se preocupa com o outro a este ponto hoje em dia?
Uma amiga? Me batendo assim do nada?
— Vá se lavar de uma vez e trocar essas roupas, sim? — enxotou Claus. — Vai acabar levando outro cascudo se ela voltar e você ainda estiver sujo.
Depois de uma rápida indicação do pai com a desculpa de estar com a memória fraca, Thales seguiu até a casa de banhos ao fundo da propriedade, construída ao redor de uma fonte termal.
Mergulhando na piscina aquecida, o garoto chegou a duas conclusões. A primeira se relacionava com as semelhanças que Thales notou entre seu mundo original e aquele dali, mas Cablanc parecia conter muito mais diferenças, a começar pelo fato de jamais ter conhecido uma Ellin até então.
A segunda tinha a ver com as Classes das pessoas. Relanceando o Status da garota, vislumbrou que ela era um Bispo e não um Peão como seu pai, Arell d’Artamis e ele próprio, acabando de vez com outra de suas teorias.
Respirou fundo. Um Bispo com um puta socão de direita…
Thales fechou os olhos enquanto afundava a cabeça para dentro da fonte, deixando que o cansaço e o estresse se dissipassem através das bolhas e da água morna.
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Status
Nome: Ellin Olaster Elo: 30%
Idade: 16 Classe: Bispo
Raça: Humano Graduação: Prata
Título: Nenhum
Vida: 875 Mana: 1100
Força: 645 Destreza: 720
Resistência: 675 Magia: 1005
Cansaço: 68
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