Magna Ordem Brasileira

Autor(a): Tomas Rohga


Volume 1

Capítulo 11: Através do tabuleiro

Quando Thales abriu os olhos, ele viu que caía. Caía muito depressa.

— Uaaaaaaaahhhh! — Só existia névoa ao redor de si e, a muitos quilômetros de distância, um solo bizarramente quadriculado, como se mergulhasse de cabeça na direção de um enorme tabuleiro de xadrez. — Eu vou morrer!

 

«!»

O Jogador está diante de um «Problema». Caso não encontre a solução antes de alcançar o solo, será declarado «Game Over».

Dungeon Secreta: Os deuses te desafiam para uma partida

Requisitos: Escolha a «Peça» que avançará no tabuleiro e o protegerá da morte.

Recompensas: ???

 

Peças:

>deusa-Guerreira [Rainha] / deus-Guardião [Torre] / deus-Mago [Bispo] / deusa-Caçadora [Corcel] / deus-Aldeão [Peão]

 

— Tá zoando com a minha cara, Mitty!

Tentando pensar mais rápido que a gravidade, resistir à queda era a única forma de sobreviver na opinião de Thales. Daquela forma, escolheu a resposta baseado na estatística que sempre o protegera das pancadas.

Sendo a Resistência a promoção da Torre; ele afundou o dedo na opção do deus-Guardião, encarando o solo quadriculado se aproximar assustadoramente mais depressa.

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Resistência: Error        Promo (Torre)

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Em meio ao turbilhão de eventos, Thales notou um detalhe ainda mais aleatório: apesar da certeza de ter guardado o Cajado do Dragão Hiperacelerado no Tabuleiro, por algum motivo o objeto se encontrava em sua mão. Surpreso com aquilo, tentou invocar uma magia para amortecer a queda, pensando na possibilidade de o Bispo ter sido uma escolha mais acertada que a Torre.

Ele trincou os dentes e rugiu: — Amortecedor de vento!

 

«!»

O Jogador já foi promovido à Classe «Torre», impedindo-o de utilizar habilidades de outras Classes. A intenção inicial do Jogador era enviar o Cajado do Dragão Hiperacelerado como um presente, portanto ele será cordialmente despachado.

 

— O que quer dizer?! — Em resposta ao tom incrédulo, o objeto começou a desaparecer diante de si, lentamente, até se evaporar em grânulos de luz.

De repente, o pânico se instalou no espírito de Thales. Não havia sobrado ação alguma além de proteger os olhos do vento intenso e, como no Xadrez, aguardar a revisão de sua jogada esperando ter feito a coisa certa. Também notou que, quanto mais se aproximava do chão, mais distinguia alguns pontos se mexendo lá embaixo. Eram…

Monstros?

O rosto de Thales se transformou numa careta de pânico e aflição. Uma centena de criaturas se acotovelava de um lado a outro do tabuleiro, como peças de um jogo absurdo. Algumas carregavam machados, outras lanças; outras espadas e escudos.

Entretanto, ele sentia o corpo aquecer de um jeito esquisito conforme ganhava velocidade…

 

«!»

Devido à energia acumulada pela queda, a habilidade ofensiva da «Torre» foi carregada em 100%. Se desejar, o Jogador pode ativar o «Canhão».

 

Thales esbugalhou os olhos, lembrando-se das ocasiões em que Mitty o havia salvado com uma dica inesperada. Sem enxergar mais opções, ele simplesmente bradou um segundo antes de atingir o tabuleiro e despencar em meio àquela horda de seres:

— CANHÃO!

As pernas de Thales atingiram o solo com tanta força que tudo abaixo foi irreversivelmente arrasado numa onda de energia bruta, abrindo um círculo colossal de destruição que levou todas as criaturas com ele.

Gritos de morte e terror ecoaram pela imensidão enevoada, mas o estrago não cessou por ali. Como num colapso da realidade, Thales atravessou o chão abaixo de si e adentrou num espaço obscuro — uma espécie de abismo infinito — ao mesmo tempo em que uma chuva bizarra de destroços em preto e branco e pedaços de criaturas caía junto a ele.

 

«!»

O Jogador escolheu a peça certa.

Dungeon «Os deuses te desafiam para uma partida» concluída.

As «Recompensas» estão sendo processadas.

 

E Thales continuou a despencar no vazio, sentindo a consciência lentamente lhe deixar o corpo. Começou a fechar os olhos contra a sua vontade, tomado por uma sonolência inexplicável, o que o impediu de ler a mensagem brilhante de Mitty que apareceu diante de si:

 

«!»

Parabéns Jogador! Você finalizou o «Prólogo»

Título adquirido:

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Senhor da Oitava Fileira

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Avançando para o próximo estágio…

 

*******

 

O barulho da porta batendo ecoou pela casa humilde.

— Mãe! Mãe! Fui aprovada! — Ellin agitava uma carta com o selo de uma coroa.

Uma senhora rechonchuda e de cabelos vermelhos surgiu da cozinha em seu vestido simples, um tanto severa, um tanto divertida.

— E precisa desse estardalhaço todo, menina? — Ela abriu os braços e sorriu amorosa, quase emocionada. — Vem cá, vem. A minha filhota vai se tornar uma Cavaleira Magna!

Ellin se atirou sobre os ombros da mulher, apertando-a com uma ternura que não cabia em si.

— Mas como conseguiu sem um canalizador, filha?

Corando ao soltar a mãe, a garota explicou:

— Os examinadores… Bem, eles me emprestaram um cetro, mas disseram que preciso conseguir meu próprio canalizador até o início das aulas.

— Então nós vamos dar um jeito.

— Como todas as vezes, mãe. — Ellin sorriu com gentileza. — Vou precisar fazer mais horas extras. Amanhã cedo vou correndo me gabar pro Thales e já converso com o Sr. Belacruz.

O sorriso da mulher sumiu de repente; o aspecto tomado por um ar súbito de perturbação. Ela começou a torcer um pedacinho do vestido.

— Olha, filha… Você acabou de chegar, então ainda não está sabendo…

— O-o que aconteceu, mãe? — Ellin deu dois passos para trás.

— O Thales sumiu de novo.

— O quê?!

— Já tem uns três dias, na verdade. O pai dele passou aqui ontem à noite buscando informações sobre ele.

— De novo? — irritou-se ela, dando meia-volta em direção à porta. — O que o Thales tem na cabeça? Eu vou lá e…

— Descanse, minha filha. — A mulher agarrou a jovem pelo braço. — A viagem foi cansativa e de nada vai adiantar ir lá agora. O Sr. Belacruz já está perturbado o suficiente.

— Mas…

— “Mas” nada. Vá tomar um banho e descanse. Ouça sua mãe.

Vencida pelo tom de ponto final, Ellin deixou a cabeça pender, escondendo metade do semblante sob a cortina vermelha dos cabelos. Ela amassou o pedaço da carta que segurava, irritada, e deixou que as pernas a carregassem até o quarto.

Lá dentro, atirou o pergaminho de lado e pulou sobre a cama, agarrando o travesseiro com muita força.

— O que… — Um fio inesperado de lágrima lhe escapou pelos olhos. — O que tá acontecendo com você, Thales? Pra onde você tanto foge?

Sozinha no cômodo, ela deixou que as emoções aflorassem, chorando baixinho enquanto socava o travesseiro. Ellin sequer percebeu o momento em que pegou no sono, tampouco o instante que começou a sonhar…

Naquele lugar, ela percebeu que o chão era estranhamente quadriculado. Encarou o local, percebendo que tudo era ermo e vazio, incapaz de enxergar o fim por causa da névoa espessa ao redor.

— Ellin Olaster — chamou uma voz grave.

Ela girou as vistas, até depositá-las sobre a silhueta de um… gato? Foi a melhor conclusão a que chegou, embora só fosse possível distinguir os contornos do bicho. Sentado de frente para Ellin, a criatura não tinha boca nem olhos, como se feita unicamente de chamas brancas, como neve em combustão.

— Foi você quem me chamou? — perguntou ela.

O gato fez que sim, tremeluzindo as labaredas que formavam seu pequeno corpo.

— Não se preocupe com Thales Belacruz. — falou sem rodeios. Aquela voz bizarramente grave não concordava em nada com seu tamanho. — Ele está bem. Você o encontrará no amanhecer do seu segundo dia na Tábula, dentro da biblioteca.

— Em trinta dias?!

Fazendo outro gesto afirmativo, a criatura flamejante prosseguiu:

— Um presente dele foi deixado para você. Quando abrir os olhos, procure embaixo de sua cama.

— Um presente? — Ela repetiu ao arregalar os olhos verdes.

Em vez de responder, o gato virou-se agilmente e começou a andar na direção da névoa.

— Espera! Me diga onde o Thales está?

Sem se abalar com a questão, a criatura simplesmente desapareceu, como se um vento forte soprasse seu corpo para longe.

Na manhã seguinte, Ellin acordou ofegante e sua primeira reação foi colocar a cabeça embaixo da cama. Bem lá no fundo, encontrou o Cajado do Dragão Hiperacelerado.

 

*******

 

Não foi nada fácil abrir os olhos.

Imaginando a semelhança entre aquela sensação e a de receber uma massagem vinda de um rolo compressor, a consciência de Thales começou a retornar, gradualmente trazendo foco aos contornos da realidade.

Ele piscou duas vezes, um tanto zonzo e com uma expressão idiota na face, demorando a assimilar que estava dentro de um móvel de madeira com alguns livros a seus pés.

Ele coçou o cocuruto e empurrou as portas, tendo o semblante tomado pelo assombro ao dar de cara com a enorme biblioteca em que saiu.

Inesperadamente, ele captou uma voz conhecida soando à distância:

— Thales? — O tom mandão era inconfundível após levar tantas broncas. — Você tá aqui?

— Ellin? — chamou de volta.

Perplexa, a garota se materializou de trás de um belo pilar, escondendo a boca com as mãos. — Não acredito. Você realmente tá aqui!

— Onde é aqui…? — perguntou ele, ainda meio zonzo.

— I-isso é muita maluquice. — Ela passou a mão pelo rosto, incrédula, depois sacudiu o amigo pelo pescoço. — POR QUE VOCÊ SUMIU POR UM MÊS INTEIRO?

— Eu… — Ele tossia em meio à fala — sumi…?

Ellin se afastou, ofegante.

— Explique pra mim… O que tá acontecendo, afinal? Como nós derrotamos aquele guardião na floresta? Que cajado é aquele que me deixou? Por que desapareceu do nada e, sem mais nem menos, você me aparece aqui, no meio da biblioteca da Magna Ordem, e de uniforme ainda por cima!

Tanto Ellin quanto Thales de fato usavam o mesmo traje — uma espécie de uniforme militar na cor branca com detalhes em cinza —, embora as vestes da garota se diferissem um pouco por causa da saia comprida em vez da calça do rapaz.

— V-você recebeu o Cajado do Dragão? — Foi a primeira pergunta de Thales em meio ao turbilhão de questionamentos.

— Não adianta desconversar. Eu preciso de respostas. Você não imagina como o seu pai ficou de novo, Thales. Como eu fiquei nesse mês! — Os olhos dela umedeceram.

— A minha vida tá uma loucura ultimamente. Nem eu sei direito… Pra mim, eu acabei de acordar aqui.

Ela estreitou os olhos, enxugando as pálpebras com ferocidade.

— Bem… Um gato branco apareceu num dos meus sonhos. — Havia importância no tom da garota. — Foi ele quem me avisou sobre o cajado e que você estaria aqui nessa manhã. Nunca fui muito de acreditar em magias de presságio, mas… parece que ele estava certo, afinal. Por isso que estou confusa, Thales. É como se agora existisse um monte de segredos ao seu redor.

O jovem processou as palavras de Ellin em silêncio, imaginando que Mitty pudesse ter algo a ver com aquela história.

Apesar de ter passado por aquela dungeon secreta maluca, ele realmente fora teleportado para a biblioteca da Tábula como anunciado pelo orbe. Estava no prédio da Magna Ordem no fim das contas, mas não nas circunstâncias que imaginava.

Encarando a mescla de irritação e preocupação no rosto de Ellin, e depois de tudo o que haviam passado até ali, Thales achou que a garota, afinal, merecesse confiança. Respirou fundo.

— Eu…

— Você aí! — Mas foram interrompidos por uma mulher de meia idade trajando um uniforme parecido com o deles. — O que estão fazendo? A aula de você está prestes a começar. Vão já pra sala.

— Droga. — Ellin agarrou o amigo pelo pulso, carregando-o para fora da biblioteca. — Vem comigo. Tenho que te levar pra fora daqui. Tá cheio de gente importante e perigosa neste lugar. Se alguém souber que você invadiu a Tábula, podem te jogar no fundo de uma prisão.

— Isto não acontecerá, minha jovem. — Uma voz digna e paciente ecoou pelo corredor.

Thales e Ellin pararam no meio do corredor, encarando um homem cuja presença rugia seu porte militar em cada ruga da face. Devia estar na casa dos sessenta; rosto forte, uma barba cinzenta e quadrada avançando além do queixo e se unindo ao cabelo da mesma cor, preso num rabo de cavalo curto.

Seu traje branco e dourado era repleto de insígnias no peito, incapaz de esconder o corpo musculoso, além de um elegante sobretudo militar atirado por sobre os ombros.

— D-diretor Darius? — Ellin engoliu em seco, apertando o pulso de Thales.

O homem os encarou através do olho direito — algo azulado e profundo —, uma vez que o esquerdo era coberto por um tapa-olho, e então sorriu gentilmente.

— Está tudo bem, minha jovem. Leve o seu amigo até a sala de aula.

— S-senhor, ele não estuda aqui. Deve ter vindo me pregar uma peça, por isso está usando o uniforme da Ordem. — Ellin fez uma leve reverência. — Humildemente solicito sua permissão para escoltá-lo até a saída.

O diretor sorriu novamente, mas dessa vez havia algo de perigoso por trás do gesto, fazendo Thales e Ellin sentiram o mesmo calafrio subir pela espinha.

— Está tudo bem, Srta. Olaster. — A voz grave de Darius era inegociável, quase assustadora. — Leve o Sr. Belacruz à sua sala.

— S-sim, senhor. Agora mesmo.

O homem voltou a caminhar, mas, antes de se afastar por completo, ergueu a mão num sinal amigável de despedida.

— Parece que, pela primeira vez em sua história, a Tábula terá um Peão graduado como Ouro, então… seja bem-vindo à Magna Ordem, Thales Belacruz. Passe em minha sala depois das aulas, sim?

— Certo, senhor… — balbuciou ele.

Assobiando sem qualquer preocupação, Darius deixou uma atônita Ellin encarando das costas de seu sobretudo para a expressão desconcertada de Thales.

— Era uma das coisas que eu ia te explicar…

A expressão de Ellin, no entanto, transformou-se num enigma. Quando falou, o tom dela foi indistinguível:

— Vamos. Estamos atrasados para aula.

E seguiu à frente de Thales, sem olhar para ele.

 

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Diretor Viktor Darius:



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