Volume 1
Capítulo 12: A Primeira Turma
Enquanto seguia o percurso de Ellin — ainda calada — pelos enormes corredores da sede da Magna Ordem, Thales aproveitou para conferir a janela do sistema, dando de cara com a recompensa da dungeon secreta no formato de um aviso:
«!»
O Jogador adquiriu um «Título»
-------------------------------
Senhor da Oitava Fileira
-------------------------------
Descrição: o Jogador será capaz de utilizar duas «Promoções» ao mesmo tempo.
Custo: 9 pontos de «Cansaço»
Thales teve que se segurar para não deixar o queixo bater no chão. Uma habilidade como aquela seria extremamente útil!
— Ellin?
— Estamos quase chegando na sala — respondeu ela, sem olhar para trás.
— Precisamos conversar…
— Sobre o quê? — Ela girou nos calcanhares. — Não quis compartilhar algo tão importante comigo. O que precisa dizer agora?
O rapaz coçou atrás da orelha, um tanto encabulado. — Tive meus motivos…
— Quais motivos, Thales? Pensei que confiasse na sua melhor amiga.
— Eu confio… Quero dizer, agora confio.
— Agora? — Ellin inflou as bochechas. — Sabe o que vai acontecer daqui pra frente? A notícia sobre um Peão graduado vai se espalhar e o Império vai ficar uma loucura por causa disso. Como aconteceu? O seu pai sabe sobre isso?
Thales abriu a boca sentindo que devia contar toda a verdade, mas um aviso repentino de Mitty o deteve.
«!»
O Jogador não deve revelar que veio de outro mundo.
E se eu contar? Perguntou Thales em desafio. Vai me ameaçar com outro Game Over?
Sem esperar pela resposta, suspirou longamente. Não tinha a mínima vontade de testar sua teoria.
— Meu pai não sabe de nada… Aliás, ninguém deveria saber. Não contei pra ninguém.
— Mas o diretor sabia.
Thales deu de ombros.
— Não sei como ele descobriu. A verdade é que tem muita coisa que não consigo entender. Só sei que, quando despertei na Floresta da Caveira, a minha graduação já aparecia como Ouro.
— Será que você…? — Ellin estreitou os olhos. — Não. Não pode ser.
— O que foi?
— Pensei na possibilidade de uma Elevação Divina. Li uma vez a respeito, mas pra mim era conversa.
Thales ergueu uma sobrancelha. — Elevação Divina?
— Não passa de teoria. Ela fala que os deuses podem Elevar um fiel, mas não existe nenhuma prova concreta sobre isso. — O aspecto da garota tornou-se repentinamente mais preocupado. — Nossa… Parando pra pensar, isso pode atrair a atenção da Igreja pra cima de você.
Curioso com a nova informação, o rapaz estava prestes a pedir mais explicações sobre a tal Igreja e os deuses daquele mundo, mas alcançaram a sala de aula naquele exato momento.
— Tome cuidado com as pessoas deste lugar, Thales — avisou Ellin, com o rosto verdadeiramente aflito. Sem olhar para ninguém, ela se adiantou pelo local e se sentou ligeira numa carteira vaga.
Indagando-se de que modo o sistema conseguira a proeza de transformar seu teleporte até a biblioteca numa admissão a uma academia militar, Thales estava incerto se devia mesmo entrar naquela sala.
A possibilidade de adquirir mais informações sobre Cablanc, no entanto, funcionava como um tipo de incentivo, além do mais, havia todos aqueles livros na biblioteca a serem investigados e o fato inexplicável de que Darius, o diretor da Magna Ordem, conhecia o seu nome e sua condição como um Peão de Ouro.
Ele precisava de respostas, então tinha de prosseguir pelas fases do jogo, argumento que o convenceu a finalmente atravessar a porta, sendo recebido pela frieza típica de um estranho invadindo um local particular.
— Com licença — disse o rapaz, timidamente.
— Apenas entre, jovem — disse a mulher à frente da turma. Era loura e forte, com uma grande cicatriz atravessada na bochecha e o semblante um pouco irônico, embora o detalhe pouco atrapalhasse sua beleza. — Eu sou a instrutora Belonna. O diretor me avisou sobre você. Se apresente para a turma e escolha um lugar, sim?
— Pensei que a academia fosse mais criteriosa. Temos um retardatário? — O comentário partira de um rapaz sentado ao fundo. O longo cabelo escuro era frouxamente amarrado, deixando uma franja lateral cair em torno dos olhos vermelhos e arrogantes.
A mulher sorriu. — A verdade é que temos um Recruta muito especial este ano. Diga o seu nome e a Classe a que pertence, meu jovem.
O completo interesse dos alunos pareceu, enfim, ser capturado; crescendo no formato de cochichos e risadinhas. Em contrapartida, o nervosismo de Ellin era visível de sua carteira.
— Thales Belacruz. — O rapaz engoliu em seco, imaginando o tipo de reação que sua próxima frase causaria: — Sou um Peão.
O silêncio se alastrou pela sala como um maestro cortando a música. De repente, Thales se imaginou ao centro de uma plateia cheia de olhos, encarando-o das mais variadas maneiras: alguns com incredulidade, outros com divertimento, frieza, indiferença e até mesmo raiva…
Sob a mescla de caretas, a instrutora Belonna bateu uma mão na outra, quebrando aquela estranha atmosfera. — Não apenas um Peão, estou certa? Segundo o diretor, você já foi Elevado.
— Isso é absurdo! É impossível! — O ruído do soco na carteira ecoou pela sala. — Que tipo de piada é essa?
O tom de revolta partiu daquele jovem de cabelo escuro, o que fez muitos estudantes se encolheram no lugar, inclusive Ellin. Curioso com o sujeito, Thales o analisou rapidamente com o Malandro, deparando-se com estatísticas bem mais poderosas que as suas — o rapaz estava no Elo 39, pertencia à Classe Rainha e se chamava Kalan Von Drakandor.
Von Drakandor… Achou o sobrenome vagamente familiar, mas Thales não conseguia se lembrar de onde.
— Vamos aguardar a explicação da instrutora — disse uma voz sem emoção.
— Ninguém te chamou pra conversa, d’Artamis.
Apesar da grosseria de Kalan, Thales se lembrava muito bem daquele sobrenome, o que lhe captou a atenção.
A garota — que devia ser aparentada de Arell d’Artamis, o darkizoologista que encontrou no castelo da floresta — tinha traços asiáticos, um cabelo profundamente preto que lhe descia até o meio das costas e um rosto tão belo quanto frio, parecendo pouco abalada com o tom de Kalan.
Entrementes, sua classe também era Rainha e, ao correr as vistas sobre os demais, Thales logo notou que a jovem era a pessoa mais forte daquela sala com exceção da instrutora. Ayane d’Artamis estava com 42 de Elo e a graduação de Ouro, o que fazia dela e de Thales, os únicos que haviam passado pela Elevação.
Novamente, Belonna bateu as mãos, chamando a atenção da sala para si e sorrindo em desafio.
— Pois pode nos dizer, senhor Drakandor, por qual motivo estamos diante de uma situação aparentemente impossível?
Kalan trincou os dentes. Seu olhar estremecia quando começou a explicar; cada palavra expelida parecendo intensificar a sua fúria.
— A Barreira de Elo… — Outro soco na mesa. — Ela impede que Peões atinjam o valor da Elevação. Esses malditos não se graduam para Ouro.
— Está correto, senhor Drakandor — assumiu a instrutora, depois apontou para Thales —, mas este rapaz aqui é bastante real. Por intermédio do diretor Darius, a Magna Ordem treinará um Peão pela primeira vez e, diante de um momento histórico como esse, espero que a Primeira Turma de Recrutas receba seu novo colega com entusiasmo. Algo a dizer antes de se sentar, senhor Belacruz?
— A-acho que não — agradeceu Thales, que avistou um lugar vago próximo a Ellin e a um garoto franzino.
— Eu não aceito isso… — disse Kalan, friamente. — Exijo um duelo com esse maldito!
— Recrutas não podem duelar — rebateu a instrutora, serenamente.
— Sabe com quem está falando, mulher? Sabe quem é meu pai?
— Conheço muito bem o seu pai, senhor Drakandor, mas abaixo destas paredes milenares, todos estão sob as leis da Magna Ordem.
Kalan estremecia de raiva, encarando do sorriso confiante da instrutora para a figura encabulada de Thales.
— Mas já que nenhum de vocês pode resolver as coisas desse modo — prosseguiu Belonna, ainda mais resoluta —, proponho a realização de outra atividade… Um teste, pra ser mais exata. Algum Recruta sabe me explicar o que é o Valor do Peixeiro?
Ellin ergueu a mão timidamente. — É o valor numérico mínimo para se adentrar numa dungeon.
— Muito bem, senhorita…?
— Olaster — respondeu a amiga de Thales, cuja face se encontrava perigosamente escarlate.
— Como bem resumido pela Recruta, o Valor do Peixeiro se refere a uma soma numérica que torna possível atravessar os portais de dungeon, domínios normalmente impenetráveis para os humanos. — A instrutora pigarreou. — Isso ocorre devido à magia que protege esses locais, que são sempre comandados por um darkinus poderoso denominado “guardião”. O dito valor? Exatamente vinte pontos, distribuídos através da Classe Rainha, que vale nove pontos; a Torre que vale cinco, o Bispo que vale três, e o Corcel, que também vale três pontos. Essa formação clássica, inclusive, é considerada a mais balanceada para se explorar uma dungeon. — De repente, a mulher se voltou para Thales, mostrando certo pesar no semblante. — Infelizmente, Peões valem apenas um ponto e não entram na soma.
Um coro de risadinhas soou pela sala, mas Kalan não acompanhou o gracejo. Estava sério, como se tentasse dominar a própria raiva. Ele cruzou os braços e disparou impaciente:
— E daí? Tá repetindo conhecimento básico de qualquer aspirante a Cavaleiro Magno.
Com uma veia pulsando na têmpora, Belonna prosseguiu calmamente:
— Daí que a atividade se consistirá do seguinte: tendo em mente o Valor do Peixeiro, vocês formação grupos para adentrarem numa dungeon. A equipe cuja pontuação for a menor ao fim do teste estará prontamente expulsa da Magna Ordem.
O burburinho recomeçou, mas dessa vez o temor e o nervosismo tomaram conta do vozerio. Kalan fitou Thales e sorriu sem mostrar os dentes.
— Assim fica óbvio o resultado…
— Primeira Turma — invocou Belonna. — Agora formem os grupos!
Finalmente acomodado em sua carteira, Thales mergulhou o rosto nas mãos, imaginando quem seria burro o bastante de se juntar a ele. Se era necessário chegar ao valor numérico de vinte para se adentrar numa dungeon e um Peão valia miseravelmente apenas um ponto, ele falharia antes mesmo de começar. Ninguém se arriscaria a colocá-lo em sua equipe diante de uma condição tão absurda quanto expulsão.
— Vamos fazer isso juntos, Thales — disse Ellin, de repente.
O rapaz ergueu os olhos devagar, encarando o semblante decidido da amiga.
— Mas…
— Garoto-Peão. — O chamado partiu de alguém ao pé da carteira de Thales que, diante de todo o desânimo que sentia, mal percebeu o momento em Ayane d’Artamis se materializou ao lado dele. — Me deixe entrar no seu time.
O silêncio retornou à sala e todos se voltaram igualmente assombrados para a jovem Rainha. Ellin ficou muda de perplexidade.
— Largou sua honra para trás, Ayane? — rugiu Kalan, indignado.
A garota piscou algumas vezes; o rosto continuava neutro. — Eu tenho interesse no garoto Peão.
— P-p-pera aí! — A voz de Ellin retornou de súbito. — Que história é essa?
— Besteira! Entre na minha equipe e respeite seu sobrenome.
— Hm — murmurou Ayane, deixando Kalan para lá. Voltou-se outra vez ao rapaz e perguntou: — Posso entrar no seu time ou não?
— Mas é claro… — Thales engasgou. — É claro que pode.
Ellin cruzou os braços e fungou, olhando para o outro lado.
— P-posso entrar também? — perguntou o garoto franzino sentado próximo. Usava óculos de armação redonda sobre a face amorenada, emoldurada por um cabelo curto. — Meu nome é Caleb Ilukke. S-sou Classe Torre.
— Dessa forma, a equipe está com dezoito pontos — observou Ayane, monocórdia. — Chamem mais alguém até o teste.
Sem dizer mais nada, ela simplesmente deu as costas aos demais, retornando em silêncio à sua carteira.
— Quem ela pensa que é? — irritou-se Ellin.
— V-você é um Peão de verdade? — perguntou Caleb, nervoso.
Voltando-se para o garoto franzino e cheio de curiosidade, Thales chegou à conclusão que todos daquela sala deviam se fazer a mesma pergunta.
Ele suspirou. Havia muito a enfrentar antes mesmo da próxima dungeon.
*******
Instrutora Portia Belonna: