Volume 2
Capítulo 40: No limiar do caos
Varbbek não teve tempo para se despedir. As palavras estavam entaladas na garganta, presas por um nó sufocante. Pela primeira vez, ele não lançou sarcasmos nem sorrisos debochados. Seu amigo partiu, deixando apenas uma explicação inacabada. Varbbek não esperava por isso, e o vazio que ficou parecia maior do que gostaria de admitir. Os demais permaneciam atônitos, sem saber como reagir ao que acabara de acontecer.
Ao ver os olhos opacos do líder druida, ainda abraçado ao corpo do amigo, Lenna sentiu uma tristeza profunda misturada a uma frustração esmagadora. O líquido viscoso e lamacento ainda escorria. Algo nele provocava um desconforto instintivo em todos os presentes. E não demorou para que o pressentimento se confirmasse. Segundos depois, uma explosão estrondosa ecoou. Pela direção, parecia ter vindo da entrada da sede. Foi então que um guarda entrou às pressas, visivelmente abalado.
— Estamos sob ataque, senhor! — anunciou, ofegante.
Os demônios haviam encontrado a sede. E não estavam mais apenas à espreita. Estavam dentro. O rugido distante de combate já ecoava pelos corredores, e os gritos abafados dos primeiros guardas surpreendidos eram como se afogassem em desespero.
Do lado de fora, a neve caía com uma fúria anormal. Flocos pesados e cortantes como lâminas cobriam os pátios externos da fortaleza. O vento uivava como um animal ferido, carregando consigo o cheiro de sangue e podridão. Sombras distorcidas se moviam velozes, como se a própria noite tivesse ganhado forma, tal como Thorm nas cavernas do templo de Fazhar.
O semblante de Varbbek se transformou. Para ele, agora, aquilo era pessoal. Mesmo com o corpo do amigo aos seus pés, mesmo com a dor ainda latejando em sua expressão, o druida permanecia forte, disposto a vingar seu amigo.
Estava claro por que os demônios vieram só agora. O grupo, enfim reunido e fragilizado, era um alvo fácil. Um ataque planejado, que esperava apenas o melhor momento.
— O senhor vai deixá-lo aqui, assim? Disse Lenna, com a voz trêmula e os olhos marejados.
Varbbek parou. O olhar pousou uma última vez sobre o corpo do amigo. O silêncio entre eles pesava mais do que qualquer resposta.
— Como líder, não posso e nem vou deixar de assumir a responsabilidade pela segurança do meu povo. Não sei como Gutter deixou chegar a essa situação — ele cerrava os punhos, os olhos ainda fixos no rosto pálido do companheiro — mas não vou ficar de braços cruzados vendo mais gente morrer.
Antes mesmo que pensasse em ordenar que os outros se escondessem, que ficassem fora da luta, o som metálico do machado de Ector rasgando o silêncio já lhe dizia tudo. O comandante segurava a arma com firmeza, os olhos faiscando com o brilho selvagem de quem não temia a morte. Os demais também já se moviam. Mãos encontravam o arco e a espada, reforçando defesas e planejando encantamentos. Nenhum deles hesitou.
— Creio que não vai adiantar nada eu dizer para ficarem aqui... — Varbbek parou no batente da porta. O calor da sala atrás dele contrastava com o frio cortante do corredor à frente.
— Nem tente! — rosnou o comandante, passando por ele com passos firmes, seguido pelo restante do grupo.
A batalha havia começado. E, sobre as muralhas tomadas pela neve, os demônios sorriam.
Ao chegar à entrada, a cena era estarrecedora. Em tão pouco tempo, o vermelho já cobria o chão, que aos poucos se tornava rosado sobre a neve. Nas paredes, vísceras escorriam lentamente. A força com que foram arremessadas as fez grudar como se fossem parte do cenário. Guardas mutilados se misturavam aos que ainda tentavam resistir. A situação era de embrulhar o estômago. E tudo o que se passava na mente daqueles que viam isso pela primeira vez era um único sentimento: impotência.
Eram mais de vinte criaturas demoníacas. Grotescas e mal formadas, semelhantes às que viram na floresta carregando os cristais. Não buscavam a vantagem do ataque surpresa, queriam ser vistos. Exibiam-se com arrogância, como se o próprio massacre fosse um ritual de poder.
Os olhares se voltaram de forma esmagadora para os escolhidos de Fazhar. Abandonando seus alvos iniciais, as criaturas dispararam em um galope frenético na direção do grupo. Varbbek ergueu os braços e, com um estalo de dedos, sua armadura tomou forma ao redor do corpo. Avançou sem hesitar, assumindo a liderança da defesa com a fúria de quem já vira demais para recuar.
A neve se agitava com a investida das criaturas, formando redemoinhos brancos sob os pés das bestas deformadas. Garras enormes riscavam as pedras cinzentas da entrada da sede, como se quisessem despedaçar o próprio chão. Rostos humanos fundidos com focinhos de fera urravam em agonia constante, exalando uma mana escura e sufocante.
Ector foi o segundo a colidir com a linha inimiga. Seu machado, manchado pelo tempo, desceu em um arco violento, partindo carne e ossos com um poderoso impacto. O corpo retalhado da criatura foi arremessado contra a muralha, deixando um rastro negro na neve.
— Segurem a linha! — gritou o comandante, girando seu machado para decapitar outro demônio que saltava com as presas arreganhadas.
Vladmyr avançou entre os corpos com a precisão de um predador. Cada golpe de sua espada era limpo, certeiro e fatal. Quando uma das criaturas tentou agarrá-lo pelos flancos, ele rolou para o lado, sentindo o frio da neve misturado ao sangue que já empapava o solo. Levantou-se com um grito rouco e cravou a lâmina na lateral da besta, torcendo-a até ouvir o estalo seco dos ossos partindo.
Lenna ergueu o braço com firmeza, e uma barreira translúcida irrompeu diante dela, surgindo a tempo de deter uma das aberrações. A criatura colidiu com violência contra o escudo mágico, que estremeceu e rachou parcialmente, mas resistiu, repelindo o ataque com força brutal. Com a outra mão, Lenna liberou uma rajada pulsante de energia, lançando o inimigo pelos ares como um boneco de pano. Ela havia assumido o papel de escudo do grupo e agora usava tudo o que aprendera com Galgard, moldando o fluxo de mana para drenar o impacto dos golpes inimigos e desferir um poderoso contragolpe.
Eduardh movia-se com uma agilidade quase sobrenatural, saltando e deslizando entre os blocos de pedra da entrada com a leveza de uma sombra. A marca ardente da maldição deixada por Thorm queimava, uma ferida esculpida em alto-relevo sobre a pele, que drenava sua mana a cada movimento. Ainda assim, ele seguia firme, como se nada pudesse detê-lo. Suas acrobacias eram precisas, quase dançadas, enquanto disparava flechas numa cadência impossível de acompanhar a olho nu. Cada uma vinha envolta por uma aura esverdeada pulsante, rasgando o ar como lâminas encantadas, perfurando crânios e espinhas com precisão cirúrgica, pregando corpos contra as pedras geladas.
Varbbek lutava contra o peso do cansaço, tanto físico quanto mental. Não teve tempo de se recuperar depois do alto consumo de mana na expedição e na fuga. Suas mãos tremiam, mas Gaia ainda respondia ao seu chamado.
Raízes grossas e vivas irromperam da base da fortaleza, quebrando o espesso chão coberto de neve e gelo. Elas se enroscaram nos tornozelos das criaturas e as puxaram para cima com força brutal. Erguidas no ar, foram lançadas contra a muralha de pedra com violência. Outras tiveram as costelas perfuradas por espinhos que brotavam das próprias raízes. E, em uma explosão de mana, os tentáculos se abriram como bocas famintas, rasgando os corpos de dentro para fora.
As criaturas se contorciam, mas sua resistência era sobre-humana. Mesmo assim, Varbbek mantinha o domínio. O solo ao redor parecia tremer com seus passos vacilantes. O esforço de invocar tamanho poder em área já teria destruído qualquer druida comum. Mas ele continuava, seu posto de líder do reino não era à toa. A terra sussurrava sob seus pés. Sua mente, à beira do colapso, persistia com puro instinto e vontade.
Mais demônios surgiam das sombras, brotando como capim em dias chuvosos, escalando as pedras cinzentas com patas tortas e bocas repletas de dentes serrilhados. Cázhor não gostava de admitir, mas suas magias de área exigiam um grande consumo de mana, e ele ainda tentava se recuperar do desgaste do último combate. Mesmo assim, sabia que precisava agir. Em uma invocação silenciosa, conjurou um círculo flamejante à sua frente. Em instantes, chamas irromperam, varrendo os flancos inimigos e deixando um corredor de corpos carbonizados.
Mas a mana negra não recuava. As criaturas pareciam se alimentar da própria dor. Cada uma que caía era substituída por outra, mais grotesca, mais faminta. E, sob a neve agora tingida de vermelho, os druidas e seus aliados lutavam para não serem engolidos pela escuridão.
Varbbek deu mais um passo à frente, os pés afundando na neve tingida de sangue. As raízes ao seu redor começaram a responder mais lentamente, como se a natureza sentisse a fragilidade do druida que a comandava. Um filete de sangue escorreu de seu nariz, e sua visão oscilou por um breve segundo. Ele tentou ignorar.
Mas o inimigo percebeu.
Uma das criaturas, algo como um lobo de patas longas demais, com escamas negras pelo corpo e um rabo espinhento, farejou a fraqueza. Com um guincho distorcido, agudo e cortante, correu em quatro patas, abrindo caminho por entre as demais, amigos e inimigos, como um predador em frenesi. Seus olhos, dois buracos negros, pulsavam mana negra e focavam em Varbbek.
— Senhor Beothoro!
Ela ergueu um novo escudo, mas outra criatura, igualmente monstruosa, colidiu contra a barreira mágica, rachando-a parcialmente. O impacto quase a fez cair de joelhos; os braços formigavam pela força do golpe. Ainda assim, Lenna permaneceu firme, com confiança suficiente para enfrentar a ameaça sozinha. Porém, o druida ainda precisava de apoio.
— Ed! — chamou a maga com urgência — Ajude ele!
Eduardh respondeu prontamente, virando-se com agilidade e disparando três flechas, envoltas em mana, em sequência. Cada projétil cortou o ar com precisão, estourando as articulações do ombro esquerdo da criatura, o suficiente para desequilibrá-la e interromper sua investida por um breve momento.
Varbbek reuniu forças para conjurar, mas a pressão dos ataques por todos os lados exigia sua atenção completa. Enquanto sustentava as defesas e protegia seus companheiros com raízes que brotavam e esmagavam as criaturas ao redor, não teve tempo de se defender da nova ameaça. As raízes se retraíram momentaneamente, desviando-se para conter outra investida, e a neve cedeu sob seus pés, afundando-o até os joelhos. O monstro já estava a dois passos dele.
Então, Ector surgiu. Como um colosso atravessando a tormenta, sua silhueta irrompeu por entre a neve e o caos, firme como uma muralha. Em um único movimento fluido, ele girou o corpo e ergueu o enorme machado acima da cabeça, canalizando todo o impulso em um golpe lateral devastador. A lâmina reluziu, cortando o ar com um rugido ancestral antes de arrancar o braço da criatura em pleno salto. O monstro foi lançado para o lado, rolando pela neve manchada de sangue, urrando em agonia.
— Aguente firme, jovem! — Ector bradou, girando o machado e se pondo à frente de Varbbek.
— Estou só começando — respondeu ele, notoriamente fadigado.
Duas outras criaturas já se aproximavam pelas laterais. Eram menores que a anterior, mas exalavam a mesma ameaça selvagem. Uma delas, de membros longos, dentes protuberantes e pontiagudos que lembravam um primata deformado, saltou em direção a Ector.
O comandante ergueu o cabo do machado num reflexo preciso e bloqueou o impacto, mas a força bruta do monstro o empurrou dois passos para trás, fazendo seus calcanhares afundarem na neve. Mesmo assim, ele não vacilou. Firmou os pés, já preparando o contragolpe.
A segunda criatura tentou contornar pela lateral, mirando o druida ainda sob pressão. Mas antes que avançasse mais, uma lâmina cruzou seu caminho. Vladmyr surgiu como uma sombra veloz, e sua espada girou com precisão letal. O aço rasgou carne e osso, decepando a perna da criatura e parte do tronco com um único golpe. Ela caiu, gorgolejando.
Sem dizer uma palavra, o jovem guerreiro se colocou ao lado de Ector. Um único olhar bastava. Firme, atento. Vladmyr entendeu exatamente onde deveria estar. A experiência de um veterano encontrou a intuição de um prodígio. Juntos, formavam uma muralha diante da ameaça.
Lenna se recuperou e correu até Varbbek. Com um gesto rápido, formou uma cúpula mágica ao redor dele, protegendo-o dos ataques por alguns instantes. Mas, diferente das criaturas que Cázhor enfrentara em sua última batalha, essas demonstravam traços de inteligência. Isso ficou claro quando começaram a flanquear a maga, percebendo que seus escudos devolviam boa parte da força dos ataques. A cada golpe absorvido, a magia reagia com violência, causando danos severos a quem a atingia.
Eduardh prestava um suporte preciso, quase instintivo. Suas flechas cortavam o ar com velocidade impiedosa, eliminando, uma a uma, as criaturas que cercavam Lenna e o druida. Não havia hesitação em seus movimentos, apenas foco. Sua fonte de mana parecia inesgotável. A cada disparo, energia mágica era exigida para amplificar os ataques, e o selo amaldiçoado em seu corpo seguia drenando parte vital de sua força. Ainda assim, ele mantinha o ritmo, frenético. Letal. Sem espaço para erros.
Do alto da escadaria, próximo ao portão principal da sede, Cázhor ergueu seu braço, seus dedos enrijecidos pela concentração. Runas brotavam como desenhos em sua pele. Brilhando como brasas vivas, pulsando com poder bruto. Um círculo flamejante se formou no ar à sua frente, girando como uma engrenagem. Então, com um estalo seco, uma rajada de fogo desceu em linha reta, como um golpe de espada, abrindo um corredor ardente que dividiu o campo de batalha. A neve evaporou num sopro, e o cheiro de carne queimada se espalhou novamente pelo ar, denso, sufocante.
Pela primeira vez desde o início do confronto, a maré começou a virar. O que antes parecia um massacre inevitável agora se erguia como um sopro de esperança para Cázhor e seus companheiros. As criaturas recuavam, ainda que por instinto, e os combatentes podiam respirar por alguns segundos a mais.
Mas não havia glória naquele avanço. Nenhum grito de vitória. A mana escura ainda não havia cessado. Praticamente todos estavam exauridos, arranhando os últimos resquícios de força. E pior, para cada criatura abatida, surgiam três no lugar. Descartáveis. Marionetes. Empurradas por uma fome cega, como se um véu de escuridão inesgotável as vomitasse sem fim.
Toda fonte de mana tem um limite, isso é inevitável, mas a questão era se o grupo aguentaria por muito mais tempo sem ceder. Varbbek sabia disso, e por mais difícil que fosse aceitar, a segurança do grupo era prioridade acima de seu reino. Eles carregavam a chance de acabar com toda essa loucura. Não era hora de arriscar ainda mais.
— Não temos mais tempo! Vocês precisam ir, agora! — disse o druida, sem ao menos olhar para o grupo.
De repente, do fundo das sombras, ecoaram palmas secas, seguidas por uma risada fria, macabra e carregada de desprezo. No meio do caos, um brilho púrpura irrompeu, cortando a escuridão como uma lâmina afiada. As criaturas recuaram, agitadas e inquietas, como se pressentissem um poder muito maior do que qualquer coisa que já haviam enfrentado. O grupo congelou por um instante, os olhos fixos naquele sinal sombrio que todos logo reconheceram: Thorm!
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