Volume 2
Capítulo 37: A segunda chance
Ector encostou-se lentamente na ampla poltrona adornada com madeira escura e detalhes em couro, posicionada num ponto ligeiramente mais alto da arena. A cadeira foi colocada ali especialmente para ele, já que ainda enfrentava certa dificuldade em apoiar a perna lesionada. Seus olhos permaneciam atentos, era impossível esconder a centelha de curiosidade em seu semblante. Queria ver o que Lenna havia preparado desta vez e, acima de tudo, se ela estava realmente pronta para surpreender.
Vladmyr estava visivelmente inquieto, escorado contra uma das colunas próximas, de braços cruzados e o olhar fixo em Lenna. Desde o incidente no último combate, ainda não tivera a chance de sequer trocar algumas palavras com ela. Já Eduardh mantinha a postura ereta, com as mãos para trás. Sua pele pálida e delicada quase o fazia parecer uma peça decorativa do cenário; somente a pequena barbicha e a vermelhidão na bochecha inchada, onde Vladmyr havia desferido o golpe, destoavam de sua impecável aparência.
Os garotos estavam quase lado a lado. Hora ou outra, um olhar escapava e se encaravam brevemente, como se esperassem uma nova provocação. Mas, para surpresa de ambos, nada veio. O silêncio entre eles não era amistoso, mas, por ora, era suficiente.
— Ela vai conseguir! — comentou Eduardh, quebrando o silêncio num sussurro quase inaudível, sem tirar os olhos da arena.
Vladmyr arqueou uma sobrancelha, hesitante, ainda com o olhar fixo em Lenna. As palavras do elfo, por mais inesperadas que fossem, carregavam um peso reconfortante e isso o inquietava. Ele não sabia explicar o porquê daquela sensação. Mas, por ora, havia algo mais importante que dominava seus pensamentos: torcer por ela.
— Como todos já devem saber — começou Ector, sua voz grave atravessando o campo e silenciando de vez os cochichos — teremos mais uma batalha de treino. E desta vez, espero que todos respeitem o resultado... seja ele qual for. Sem contestações.
Ector olhava na direção de Galgard e, em seguida, de Lenna, assegurando que ambos haviam entendido o recado. Suas palavras saíram secas e imponentes.
O público permanecia em silêncio, mas os olhares lançados à maga eram carregados de incredulidade e reprovação. Para muitos, sua presença ali era uma afronta ao exército. Um insulto aos que lutavam pelo reino. Aos olhos da maioria, ela era uma traidora, e nada no mundo explicaria sua permanência entre os que ali estavam. Todos sabiam o que estava em jogo. Não era apenas um treino. Era um teste. Um momento decisivo. E, para muitos dos presentes, a chance de encerrar de vez a farsa de alguém que nunca deveria ter pisado naquela arena.
Lenna sentia o peso dos olhares sobre ela. Já não havia risos nem provocações, mas a rejeição ainda estava ali, presente no silêncio, nos rostos que preferiam não demonstrar apoio. Ela sabia que todos esperavam por algo. E sabia, mais do que ninguém, que aquela era sua última chance. Se falhasse, não haveria outra. Ector não toleraria mais repetições. Uma escolha dela.
Após o enunciado, Ector sentou-se novamente em sua poltrona, conferindo, sem desviar o olhar da arena, se seu machado ainda estava ao seu lado. Com o passar dos anos, adquiriu a mania de sempre se certificar de que sua arma estivesse ao alcance.
Seus olhos seguiam Lenna com atenção, passo a passo. Estava curioso para saber qual seria o plano dela, dessa vez. Ela era esperta, criativa. Mas Galgard era um oponente formidável e já havia enfrentado a garota antes. Talvez esse fosse o maior problema para a maga.
Lenna respirou fundo, sentindo o frio cortar o ar. Seu olhar buscava o chão por breves segundos, depois o horizonte, como se tentasse encontrar ali uma certeza que não vinha. Os ombros estavam tensos, a respiração medida demais para ser natural. Cada passo era calculado, não por confiança, mas por necessidade.
— Prontos? — ecoou a voz do comandante, erguendo a mão.
Lenna não respondeu com palavras. Apenas assentiu com firmeza. Galgard sorriu de lado, como quem aceita um desafio divertido, e girou os ombros, preparando-se.
“É como se a essência de Gaia fluísse pelos canais da terra e, de alguma forma, eu consigo absorver essa essência e usá-la ao meu favor...” A frase do druida, agora, ecoava na mente de Lenna.
— Mesmas regras; acaba em cinco minutos ou se a garota receber um golpe direto — reforçou, ele — Comecem!
No instante seguinte, os pensamentos de Lenna foram engolidos pelo som de passos velozes em sua direção. Dessa vez, ela não recuou. Lenna lembrou das palavras do druida. Mesmo sem ser capaz de conjurar magia da forma tradicional, ele usava o próprio corpo como canalizador da essência da terra. Talvez aquilo nem fosse magia no sentido comum, mas era energia, e tanta energia acumulada tornava difícil de ignorar. Era algo que podia ser sentido e talvez, até mesmo visto. Lenna tentava agarrar essa ideia. Tinha que usá-la a seu favor.
“Enfrentá-lo de igual para igual?” Ela se questionava, sentindo a pressão crescer. “O poder que usei contra o Cérbero...”
As peças estavam ali. Ela só precisava encaixá-las.
— No que você está prestando atenção?! — esbravejou o druida, sua voz cortando o ar como um estalo.
O grito despertou Lenna no instante certo. Ela ergueu seu escudo com um gesto rápido das mãos e, no último segundo, concentrou energia nele. Galgard não se conteve, seu punho desferiu o golpe com precisão, atingindo o pequeno cristal em cheio.
O impacto lançou Lenna para longe. Seus olhos se arregalaram. O mundo girou. Ela voou metros, quicando no chão como uma bola de elásticos arremessada com força. Fragmentos do escudo tilintaram pelo ar. A força do golpe levantou uma nuvem de areia e lançou detritos por todos os lados.
Na arquibancada, Vladmyr engoliu seco. Suas narinas arfavam de ansiedade e seus olhos no centro da arena. Eduardh, por sua vez, ainda mantinha as mãos para trás, mas as pressionava com tanta força que as juntas chegavam a estalar. Ainda assim, não se moveu. Aguardava rangendo os dentes o desfecho.
“Ainda não acabou!” Mesmo em silêncio, seu olhar dizia tudo.
A garota, mesmo depois do forte golpe, se levantava. Os olhares preocupados de seu grupo logo deram lugar a contidos suspiros de alívio ao ver que, dessa vez, Lenna havia conseguido algo novo. Pequenos fragmentos do escudo que ainda a envolviam, formando uma armadura quase invisível, que provavelmente a protegera de receber todo o impacto e ajudara a amortecer a queda. Ela sentiu o golpe, é claro. Galgard havia deixado evidente que não estava ali para brincar. Mas, dessa vez, ela ainda tinha forças para continuar.
— Ora, ora... parece que alguém ainda tem cartas na manga, não é mesmo? — ironizou Galgard, com os olhos atentos. — Mas vai ter que me mostrar mais do que isso se quiser ter alguma chance.
Ele partiu novamente para cima da maga. Lenna, mesmo ainda se recuperando, se reergueu com velocidade. Estava concentrada na luta, observando cada movimento, se esquivando, defendendo... mas era só isso.
“Só isso? Só isso que vou fazer?” O pensamento pesava como chumbo.
Nenhuma brecha. Nenhuma chance. Enquanto isso, seu escudo rangia. O estalar agudo da estrutura se fragmentando tornava-se mais rápido, mais constante.
— Estou decepcionado — disse Galgard, com os olhos semicerrados. — Você não merece essa chance!
Após, por alguns instantes, concentrar e canalizar a essência da terra, ele avançou.
Aos olhos de todos, foi questão de segundos. Mas, para Lenna, o tempo desacelerou de repente, como se tudo se passasse em câmera lenta. Ela o encarava, imóvel, como se aceitasse o golpe que viria. Como se o desafiasse.
“O que você está fazendo, Lenna? Saia daí. Desvie!” Os pensamentos de Vladmyr eram tão intensos que pareciam quase audíveis.
Eduardh prendeu a respiração sem perceber.
E então... o silêncio. Nenhum som. Nenhum movimento. Nada além de escuridão e um borrão indistinto.
Lenna não via mais nada até que uma pequena luz surgiu diante dela, dançando no ar. Era ao mesmo tempo, verde e azulada, pulsante e constante. Saía do chão como um fio de fumaça luminosa, se enrolando no ar até se concentrar bem à frente de seu rosto. Era real. Quase palpável.
A garota estendeu a mão por impulso, tentando tocar aquela forma etérea. Tudo ao seu redor havia desaparecido, mas ela parecia não se importar. Sua mente estava limpa. Havia apenas ela e aquela estranha massa disforme.
Quando a ponta dos dedos encostou na energia, ela fluiu por seu corpo. Não doía. Ao contrário, era prazerosa. Familiar. Como se aquela essência sempre tivesse sido parte dela, mas estivesse perdida, e agora, finalmente, voltasse para casa.
Na arquibancada, a tensão era insuportável. A visão de Lenna parada, prestes a ser atingida sem qualquer defesa, era agoniante. Até Ector demonstrava preocupação. Aquele golpe seria o fim. Mas para Lenna, o tempo ainda passava devagar. Ela sentia cada partícula de energia fluindo por seus dedos finos, como uma lufada de vento quente invadindo seu corpo.
— Sim... agora eu consigo ver...
Seus olhos brilharam, e uma chama viva acendeu ali. Intensa. Como se tivesse sido alimentada pelo mais inflamável dos combustíveis. A marca em sua mão brilhou como um cristal de mana em uma sala escura, radiante e impossível de ignorar.
O escudo formou-se à frente de seus dedos. O que antes era translúcido agora tomava as cores que ela vira naquela luz: o azul e o verde entrelaçados, vivos, vibrantes.
E, simples como um estalar de dedos, o tempo voltou a correr. O golpe de Galgard atingiu o escudo em cheio, e um estrondo ensurdecedor ecoou pela arena. Segundos depois, uma onda de energia se espalhou como uma explosão contida, fazendo o chão tremer e estilhaçando várias vidraças. Galgard, com os olhos arregalados, desviou por instinto no último segundo. O escudo, até então criado apenas para defender, havia refletido parte da força do ataque de volta.
— Por essa eu não esperava! — disse Galgard, soltando um assobio, ainda surpreso. — Agora sim... vamos lutar a sério.
Apesar das ironias e provocações, Galgard reconhecia que o contra-ataque de Lenna fora poderoso. Ele sabia que, após o reflexo do golpe, não seria prudente atacar sem uma estratégia mais cautelosa. Porém, seu instinto de guerreiro não permitia hesitação. Sem perder tempo, ele continuou a pressioná-la, desferindo golpes rápidos, precisos e potentes.
Lenna se defendia com tudo o que tinha. A cada impacto, seu escudo trincava, mas ao contrário do que acontecera anteriormente, ele estava muito mais sólido e resistente. Cada defesa vinha com um custo, uma pressão crescente em seu corpo e mente, mas ela não recuava. Mesmo quando o cansaço começava a pesar, a garota não deixava de lutar. A hesitação em lançar um novo ataque reflexivo fez Galgard acreditar que o que acontecera antes fora um golpe de sorte. No entanto, ele sabia que não podia subestimá-la, mesmo que as circunstâncias parecessem favoráveis a ele, a luta ainda não estava decidida.
Enquanto Galgard se preparava para um novo ataque, Lenna observava atentamente. A pequena linha de luz que se projetava em torno dos punhos do druida não passava despercebida. Ela sabia que ele estava reunindo novamente a essência da terra para mais um golpe devastador.
“Eu posso fazer isso”, pensou Lenna, com os olhos fixos na tênue linha de energia.
Os olhos dela brilharam novamente, como uma chama dançando sobre o pavio de uma vela. A marca de Fazhar em sua mão ressoava, intensificando a energia que agora fluía por seu corpo. Era como uma dança, e Lenna conduzia a energia que o druida havia acumulado graciosamente, trazendo-a para si e aplicando-a em seu escudo.
Quando o golpe de Galgard chegou, o escudo refletiu a energia de volta para ele com uma força avassaladora.
— Impressionante, mas eu já estava esperando… — Galgard se interrompeu, surpreso.
Lenna, com rapidez e precisão, dividiu seu ataque, criando um novo escudo atrás de Galgard e lançando o restante da energia refletida. O druida, pego de surpresa, não esperava que ela fosse capaz de fazer isso. Mesmo assim, Galgard, com sua habilidade, girou seu corpo no ar, esquivando-se do segundo golpe com precisão. O impacto reverberou pela arena, fazendo estragos visíveis nos muros de contenção da sede. Galgard olhou ao redor, procurando por outro escudo que Lenna pudesse ter conjurado, mas logo percebeu que, apesar da surpresa, ela ainda não dominava completamente a habilidade. A exaustão era clara. Ela não podia manter esse ritmo por muito mais tempo.
— Você não usa palavras de encantamento como muitos magos que conheci. Isso pode ser bom a curto prazo, mas em uma batalha longa, mesmo que tenha muita mana guardada aí, duvido que mantenha o ritmo — disse Galgard com um sorriso nos lábios.
Os olhos dos espectadores estavam fixos e todos observavam a batalha com tensão crescente. Galgard se aproximava novamente de Lenna, preparando-se para seu próximo movimento.
“Verdade! Entrei em tão poucas batalhas e fiquei tão fissurada em impressionar meu mestre que me esqueci de que encantamentos potencializam as magias...” Lenna achou estranho ele a alertar, mas sabia que o que Galgard dizia fazia todo sentido.
O tempo estava se esgotando, e ela sabia estar próxima da vitória. Mas antes que pudesse comemorar, Galgard, que também sabia que seu tempo era limitado, partiu para uma última investida. Em vez de usar seu ataque de energia absorvida da natureza e correr o risco de ser refletido novamente, ele optou por ataques físicos, rápidos e em grande quantidade. Menos devastadores, mas ainda assim perigosos. A velocidade de Galgard era impressionante, e Lenna estava visivelmente fatigada. Cada golpe a pressionava, fazendo seu escudo vacilar.
“É mínimo, mas ainda consigo ver…” Lenna focou sua visão na linha de energia que emanava de Galgard.
O corpo do jovem se conectava tão bem à energia de Gaia que era capaz de absorver sua essência quase sem perceber. Mas ela estava lá, uma linha tênue e translúcida, sempre presente. Cada golpe era um impacto preciso, pequenas bombas que explodiam a cada movimento. Apesar de seus escudos se quebrarem, Lenna sempre conseguia recriá-los antes de um novo golpe. Mas estava sendo pressionada. A resistência de Galgard era muito superior à dela.
“Mais um pouco… só mais um pouco…” Lenna se esforçava para acompanhar a linha de energia.
Seu último escudo finalmente se partiu. Ela percebeu que, mesmo que conseguisse conjurar outro a tempo, ele não resistiria ao golpe final do druida. Galgard também sabia disso. Com um último e poderoso movimento, avançou em sua direção, em um ataque direto e implacável, a queima-roupa.
Lenna, com a adrenalina pulsando em suas veias, soltou algumas palavras rápidas em um dialeto antigo. Galgard franziu o cenho, confuso, mas logo percebeu que se tratava de um encantamento. Só que já era tarde demais. Ele já estava muito perto. O escudo de Lenna não teria tempo de refletir o golpe. E, para piorar, a proximidade dos ataques e o desgaste das magias fizeram com que ela perdesse o equilíbrio e seu corpo começasse a tombar, indo em direção ao chão.
O tempo se esgotou junto com o último ataque. Vladmyr e Eduardh estavam tão afoitos que quase se dependuraram no pequeno muro que separava os espectadores da arena, como se isso pudesse aproximá-los do desfecho daquela batalha.
— Parabéns! — disse Galgard, com um sorriso malicioso e debochado, mas claramente satisfeito com o desfecho da luta — Se não fosse por isso, você teria perdido.
Ele impediu que Lenna caísse, segurando-a pela cintura. O sangue escorria pelo rosto do druida, resultado de um longo corte em sua bochecha, causado pela lâmina maleável de partículas de luz que a maga conjurara. Tão fina quanto letal, a lâmina se estendia por alguns metros ao lado de Galgard, dissolvendo-se lentamente enquanto as gotas de sangue manchavam suas roupas. Quando Lenna percebeu que o combate havia chegado ao fim, ela soltou uma longa arfada de alívio e, no mesmo instante, a lâmina desapareceu por completo, deixando apenas a marca do golpe no rosto do druida.
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